Em agosto de 2005 eu voltava da hoje infelizmente extinta Distrivídeo com dois DVDs de dois dos filmes mais importantes sobre Joana D’Arc, O PROCESSO DE JOANA D’ARC, de Robert Bresson, e este maravilhoso A PAIXÃO DE JOANA D’ARC (1928), também conhecido como O MARTÍRIO DE JOANA D’ARC, do mestre dinamarquês Carl Theodor Dreyer. Na época, embora tenha achado o filme incrível, não me envolvi totalmente, tanto que até preferi o do Bresson. Por isso sabia que a experiência de revê-lo na telona, numa cópia nova remasterizada, faria toda a diferença. Seria um desses momentos históricos de minha cinefilia.
Mas eu não tinha como saber que o filme chegaria ao meu topo de favoritos da vida, não sabia que se mostraria uma obra tão imensa e tão impactante, a ponto de eu não saber como explicar em palavras o que senti, o que aquelas imagens me disseram. O evento foi especial também por ter sido uma sessão de um filme mudo com música ao vivo. E muito do prazer de vê-lo veio do excelente trabalho dos músicos que acompanharam esta obra-prima, Clau Aniz, Marta Aurélia, Victor Cozilos e Rudriquix. A música usada foi mais moderna, com sintetizador, bateria, vocal e um instrumento de sopro (a identificar) e pra mim funcionou muito bem, tanto para atribuir ruídos deliberadamente incômodos nas primeiras horas de projeção, nos questionamentos dos inquisidores, quanto para subir em tom na catártica conclusão.
Houve um probleminha técnico, com a ausência de legendas em português, mas depois nem senti falta, já que a força das imagens do Dreyer é coisa de outro mundo. Tanto Maria Falconetti, que interpreta Joana, quanto os atores que vivem os homens da inquisição estão excelentes, com uma expressividade que os transforma em fantasmas ou espíritos bizarros – um deles parece até possuir chifres. A quase completa falta de cenários ao fundo é proposital: as paredes do cenário foram pintadas de cor-de-rosa para remoção do brilho, de modo que não houvesse interferência no rosto de Falconetti. O cenógrafo do filme, Herman Warm, havia trabalhado em O GABINETE DO DR. CALIGARI, de Robert Wiene, obra essencial para quem quiser entender o expressionismo alemão.
Os momentos em que Joana prefere ir para a fogueira do que ficar na prisão para o resto da vida traduzem uma espiritualidade poucas vezes vista no cinema (talvez só o próprio Dreyer tenha conseguido algo parecido com seu A PALAVRA, 1955). Difícil conter as lágrimas nos instantes finais, com aquelas tomadas da fogueira, dos pássaros, das pessoas que assistem ao crime (muitas delas em prantos), das crianças (uma delas mamando). Sem dúvida alguma, um dos maiores filmes de todos os tempos, visto junto a uma experiência sonora que faz questão de marcar seu lugar em nosso tempo presente.
Sobre Joana d’Arc, ela é possivelmente uma das figuras femininas mais importantes da História – só consigo me lembrar de outras duas tão celebradas: Maria, mãe de Jesus, e Cleópatra. E justamente por isso, sua história já foi contada em inúmeros filmes. Lá na aurora do cinema, em 1900, George Méliès já havia feito um filme sobre ela (disponível no YouTube). Na Hollywood dos anos 1910, Cecil B. De Mille fez o épico JOANA D’ARC, A DONZELA DE ORLÉANS, que consta no box Joana d’Arc no Cinema, lançado pela Versátil.
No mesmo box, há JOANA NA FOGUEIRA, de Roberto Rosselini, com Ingrid Bergman (que já havia interpretado Joana em Hollywood em 1948, em filme de Victor Fleming); SANTA JOANA D’ARC, de Gustav Ucicky; o já citado filme de Bresson; e os filmes de Jacques Rivette JOANA, A VIRGEM I – AS BATALHAS e JOANA, A VIRGEM II – AS PRISÕES. Além do mais, todos devem lembrar de JOANA D’ARC, de Luc Besson, e talvez até da minissérie para a televisão estrelada por Leelee Sobieski. Há ainda SANTA JOANA, de Otto Preminger, e o mais recente JOANA D’ARC, de Bruno Dumont. Enfim, há ainda muitos, mas talvez eu tenha listado os mais importantes ou mais famosos.
Na história incrível de Joana, ela é uma jovem que diz ter visões do Arcanjo Miguel, de Santa Catarina e de Santa Margarida. Ao 16 anos, ela resolve se alistar e tomar parte na guerra (dos cem anos), de modo a ajudar a França a enfrentar a Inglaterra e diminuir a miséria, a fome e as doenças que o conflito estava trazendo. Depois de conseguir liderar exércitos e vencer várias batalhas (outra coisa incrível é imaginar o Rei Carlos VII ter aceitado essa proposta de Joana), a jovem foi capturada pelos borguinhões durante a batalha de Compiègne e vendida para os ingleses. Não demorou para ela ser acusada como bruxa pela inquisição.
Na época do lançamento de A PAIXÃO DE JOANA D’ARC, a Igreja Católica havia há pouco tempo canonizado Joana (em 1920, pelo Papa Bento XV). O filme é a única obra de Dreyer que não é baseada em um escrito literário, mas nos registros do processo.
+ DOIS FILMES
CARTA DA SIBÉRIA (Lettre de Sibérie)
Antes de trabalhar em outros filmes-ensaio mais famosos, como A SEXTA FACE DO PENTÁGONO (1968) e SEM SOL (1983), Chris Marker já fazia na década de 1950 esse tipo de documentário muito ligado à espirituosidade do texto e com um olhar antropológico apaixonado. Em CARTA DA SIBÉRIA (1958), vemos o diretor olhando para os habitantes de uma das regiões mais frias do planeta, seus costumes, suas heranças políticas (vindas da União Soviética e da China), sua geografia, suas vestimentas, a relação com os animais (por vezes cruel, segundo o pensamento do narrador), a extração do ouro etc. O filme faz parte de uma série de trabalhos dedicados à União Soviética num momento em que o regime socialista ainda seguia forte, inclusive tendo seu cinema premiado em festivais internacionais. Acontece que Marker não entrega, pelo menos não neste filme, a União Soviética como uma espécie de salvadora daquele povo. Tanto que CARTA DA SIBÉRIA não agradou nem à direita nem à esquerda.
MANDABI
Uma oportunidade e tanto essa que o cinéfilo de Fortaleza está tendo de ver no cinema alguns, ainda que poucos, clássicos do cinema africano, infelizmente invisibilizado pela dominação europeia e hollywoodiana. Poder ver MANDABI (1968), de Ousmane Sembène, em cópia remasterizada é uma beleza, tanto para termos acesso a uma estética nova quanto pelo seu valor antropológico. O filme acompanha a jornada de um homem casado com duas mulheres e que mora numa área extremamente pobre de Dakar, Senegal. Ele recebe uma ordem de pagamento pelo correio endereçada a seu nome de um sobrinho que está trabalhando na França. Aquilo parece ser uma alegria para ele e para as esposas, mas é também o começo de várias situações que parecem saídas de O Processo, de Kafka. A diferença é que o personagem é alguém despido de documentação básica e também de instrução, o que torna sua jornada para conseguir o dinheiro no mínimo complicada. MANDABI também tem um valor histórico: foi o primeiro filme feito numa língua africana, no caso, o uólofe.
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