domingo, setembro 08, 2024

FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE



O cinema que reflete sobre a vida e sobre a própria arte. Que reflete sobre a vida de uma mulher, como artista e como pessoa, e no caso de Fernanda Young essas duas coisas não são exatamente separadas. Pelo menos, é a impressão que fica depois que vemos FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE (2024), de Susanna Lira. No IMDB também consta o nome de Clara Eyer como codiretora, mas nem todos os sites apresentam o nome de Clara nessa função. De todo modo, o fato de termos um documentário sobre uma mulher e dirigido por uma mulher faz toda a diferença aqui.

Conhecia muito pouco o trabalho de Young. Só havia visto alguns episódios soltos de OS NORMAIS (2001-2003), série que ela escreveu com o marido Alexandre Machado. Também percebo que vi alguns filmes que ela assinou o roteiro, como BOSSA NOVA, de Bruno Barreto e MUITO GELO E DOIS DEDOS D’ÁGUA, de Daniel Filho, mas o grosso do trabalho dela dentro do audiovisual foi para a televisão, principalmente para a Rede Globo.

Vendo o documentário fica claro que ela se via como escritora e ficava um pouco triste de ver que sua obra literária não era devidamente valorizada pelos seus colegas escritores, talvez por seu envolvimento com a televisão ou por seu visual tatuado. Ou quem sabe até por seu ensaio para a revista Playboy. Vendo o filme também percebemos o quanto se desnudar era natural para Young, que achava que o desnudar-se através da poesia era muito mais difícil, ainda que uma necessidade de seu espírito.

A grandeza de FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE está no fato de que é mais do que um filme-ensaio de apresentação de uma artista: é também um filme sobre amor, dor, dislexia, atitude punk, depressão, ansiedade e ser mulher neste mundo. Inclusive, um dos momentos que mais me chamou atenção é sua participação no programa SAIA JUSTA. Ela fez parte da primeira formação do programa, de 2002, junto com Rita Lee e Marisa Orth. Chamou-me a atenção o modo como ela trouxe, com muita sensibilidade, uma canção de Madonna, “What it feels like for a girl”, de modo que nos convida a tentar entender ou refletir sobre o que a letra diz. Outro trecho de música que ela traz – e traz para si, para sua própria vivência – é “Os Cegos do Castelo”, dos Titãs (composição de Nando Reis), uma canção um tanto cifrada, e que ganha um novo olhar com sua tradução, por assim dizer.

O primeiro tópico que o filme traz é o amor. E acredito que Fernanda Young teria aprovado essa opção de Susanna Lira. E ouvir a escritora cantando o clássico de Roberto Carlos “As Canções Que Você Fez pra Mim” no karaokê, depois de ouvirmos na gravação original, é o pontapé inicial desse capítulo do filme, onde vemos trechos de programas de TV que ela roteirizou, como SHIPPADOS, ODEIO SEGUNDAS ou OS NORMAIS, um convite a percebermos em criações artísticas geralmente menos valorizadas sua autoria. Tanto, talvez, quanto em seus livros (de prosa e poesia), vários deles citados na voz de Maria Ribeiro e que se mostram um verdadeiro convite a adquiri-los, como A Sombra das Vossas Asas (2011), Dores do Amor Romântico (2012), Vergonha dos Pés (2012), A Mão Esquerda de Vênus (2016), Pós-F: Para Além do Masculino e do Feminino (2019), Posso Pedir Perdão, Só Não Posso Deixar de Pecar (2019), entre outros.

Inclusive, eu diria que um dos motivos de nos apaixonarmos por Fernanda Young e pelo filme está nos excertos desses livros, desses escritos, dos trechos pungentes que queremos fixar, anotar em algum lugar. Quando saí do cinema, aliás, vi uma das espectadoras dizendo que pretende ver o filme novamente, e isso realmente é uma vontade que temos. Vontade de abraçar o filme, abraçar aquela mulher, abraçar a artista que ficou e o quanto soube falar tão bem das dores e das perturbações provocadas pela depressão e pela ansiedade. Mas ela fala tudo de maneira tão apaixonada que é difícil não se pegar também apaixonado.

Achei muito interessante quando ela falou que usava a depressão como agente para que ela trabalhasse e saísse pra correr, se exercitar. Não como algo que paralisa, embora ela deixe claro que a doença chega nas pessoas de maneira muito diferente. Uma coisa que adorei foi a ideia que ela teve de colocar um aviso com uma luz escrito “divina” na porta de seu quarto, para acender nos momentos que estivesse trabalhando, nos momentos que estivesse inspirada e colocando pra fora essa inspiração.

O documentário usa vários trechos de filmes para ilustrar suas obras literárias e para entrecortar imagens de arquivo, como que colocando num plano onírico as suas falas, os seus pensamentos. Como se esses pensamentos fluíssem para muito além do nosso plano terreno. As imagens em preto e branco de filmes variados, de artistas como Man Ray, Maya Deren, Joseph Losey e Dziga Vertov, entre outros, se harmonizam com seus poemas e trechos de prosa.

Fiquei muito feliz de ter visto esse filme. E ainda saí do cinema escutando no carro Madonna e Roberta Miranda.

+ TRÊS FILMES

NADA SERÁ COMO ANTES – A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA

Tenho que confessar que até hoje não consegui entrar no clássico álbum Clube da Esquina. Por entrar, quero dizer compreendê-lo mais profundamente, principalmente pelo caminho das emoções (que é o que mais faz sentido pra mim, em se tratando de música). Certamente me faltou dedicação, mas também faltou, até o momento, uma identificação maior. Junte-se a isso, no caso da sessão, um sono proveniente da crise alérgica no horário tradicional das 18h e eis que o resultado foi uma sessão bem ruim. A impressão que ficou de NADA SERÁ COMO ANTES – A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA (2023), de Ana Rieper, foi de um especial para a televisão, com entrevistas dos envolvidos no disco. Há poucas imagens de arquivo e mais uma busca de reconstituição através de depoimentos muitas vezes apaixonados, especialmente de Lô Borges. Não entendi a escolha da diretora por uma janela scope para um documentário quadrado como este.

TODAS AS VIDAS DE TELMA

Temos aqui mais um filme que me enganou direitinho. TODAS AS VIDAS DE TELMA (2022), de Adriana Botelho, pega uma história real (de uma mulher chamada Telma Saraiva) e a partir daí cria uma narrativa de ficção com características de documentário de busca. Até mesmo a personagem que manipula a câmera é uma criação da diretora e roteirista. O filme foi rodado em 16 mm e depois convertido em digital com som adicionado e esse formato causa uma agradável estranheza. Faz lembrar VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO, de Aïnouz e Gomes, inclusive nas cenas em que a protagonista está na estrada, se dirigindo à cidade de Crato-Ce, local onde viveu a mulher que fazia fotopinturas (lembro que o costume dessas fotos pintadas chegou a minha casa na minha infância; hoje parece artigo de museu, pouca gente quer exibir nas paredes). Para completar, a história acontece durante a pandemia, mas com as pessoas viajando e fazendo turismo com certa leveza. Acho que me perdi um pouco lá perto do final, com o filme trazendo outras questões também, como o machismo em todos os lugares públicos e a invisibilidade do legado de Telma e a lembrança da cidade do Crato de décadas atrás.

INCOMPATÍVEL COM A VIDA

Eis um filme que nasce não apenas de uma dor, mas de várias. Afinal, o assunto que a diretora Eliza Capai traz para INCOMPATÍVEL COM A VIDA (2023) é o das gestações interrompidas, por má formação do feto, ou perda da criança bem no inicio do nascimento. Perdi no cinema, mas o filme entrou na MUBI, em glorioso 4K, que valoriza as cenas que envolvem mares ou rios. Afinal, o simbolismo da água ainda é algo forte quando se fala sobre maternidade e funciona muito bem, tanto para momentos de respiro das histórias quanto para enfatizar a dor das mulheres. O flme também traz à tona a questão da proibição do aborto no Brasil em comparação com o Portugal, que está bem mais adiantado na questão. Achei corajosa a proposta de Capai em mostrar a si mesma naquela situação, e também muito inteligente em trazer paralelismos com casos similares de outras mulheres, fazendo com que essas experiências ganhem mais força e voz. Uma das coisas que me pegou muito foi uma cena de despedida, cheia de amor. Não estava esperando, e, nesse sentido, a montagem é crucial para que o momento certo de certas partes seja anunciado num instante mais sábio.

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