segunda-feira, novembro 10, 2025

O AGENTE SECRETO



Acho difícil falar sobre O AGENTE SECRETO (2025). Não por não ter o que dizer, mas justamente o contrário: sobre ter tanto a se observar, tanta coisa que o filme traz, carrega, mostra e muitas vezes não mostra. Aliás, trata-se de um filme em que o não-dito tem uma força quase tão grande quanto aquilo que é dito. E isso tem absolutamente tudo a ver com aquele Brasil da ditadura militar, em que as verdades eram escondidas, ou deveriam ser lidas de outra maneira na imprensa, em que a perna cabeluda, lenda urbana absurda nascida no Recife, entrava no jornal na mesma seção policial de outras notícias, como se o choque entre o real e o surreal fosse algo que a elite e os poderosos assim preferissem. Não à toa, foi na América do Sul de regimes ditatoriais que o realismo mágico criou asas.

O novo filme de Kleber Mendonça Filho é talvez seu melhor trabalho, seu filme mais maduro, em que cada cena tem sua própria força, que tem um rigor formal aliado a um tipo de humor muito próprio, a certa suavidade na condução narrativa. Afinal, o Brasil é o país do carnaval. E nesse mesmo Brasil um deputado de polícia anticomunista e corrupto comemora a morte de quase 100 pessoas no Carnaval, momento em que se passa boa parte da história. Nesse mesmo Brasil, um policial rodoviário busca minuciosamente algum problema no carro do protagonista para extorqui-lo.

Wagner Moura vive outro grande papel da sua vida. Marcelo/Armando, dentre os personagens vividos pelo ator no cinema e na televisão, é tão (ou mais) importante quanto o Capitão Nascimento de TROPA DE ELITE e o Pablo Escobar de NARCOS. Aqui ele não é nem polícial (apesar de ter “uma pinta de policial”, como diz o delegado vivido por Robério Diógenes) nem traficante. E não é nem mesmo um agente secreto. Marcelo/Armando são duas faces da mesma moeda, como o gato de dois rostos que vive na pensão da Dona Sebastiana (Tânia Maria, uma simpatia de senhora). E o herói só se sente bem em determinado momento quando assume seu nome de batismo: o mesmo nome que poderia significar sua morte nas mãos de um matador barato de aluguel, na tensa cena no instituto de identificação.

Falando em tensão, é lindo como essa tensão é criada de maneira tão singular, tão longe do estilo hollywoodiano, e talvez um pouco mais próxima do adotado no cinema policial europeu (o italiano, o francês), com poucas mas brutais sequências de ação.

KMF também não consegue simplesmente contar uma história sem colocar muito de si naquele trabalho. Sua cinefilia aparece na citação a filmes populares da época, como TUBARÃO e A PROFECIA, e uma homenagem ao próprio cinema São Luiz do Recife, e nas citações menos óbvias, como a música de Ennio Morricone que já aparecia nos trailers, “Guerra e pace, pollo e brace”, do filme OBRIGADO, TIA, ou citações a O MAGNÍFICO, com Jean-Paul Belmondo.

Há também o desejo de Kleber de ser uma espécie de curador musical do cancioneiro popular brasileiro e internacional – até em RETRATOS FANTASMAS (2023) isso se vê. Algo que é muito digno de nota é que em O AGENTE SECRETO o cineasta consegue superar BACURAU (2019) na condução de um número considerável de personagens, sendo que cada um deles traz uma contribuição memorável, a ponto de não querermos nos despedir daquele universo, daquelas pessoas saídas da mente de Kleber.

Augusto (Roney Villela) e Bobbi (Gabriel Leone), a dupla de matadores contratados, são personagens incríveis. Inclusive, deixo registrada minha admiração por Villela, que em A MORTE HABITA À NOITE já havia me conquistado como um Bukowski dos trópicos num filme tão lindo quanto triste. O ator tem um quê de Paulo César Pereio no tipo físico, mas que bom que está sendo valorizado e em filmes imensos como esses dois.

Destaco também Alice Carvalho como Fátima, esposa de Armando, e que aparece apenas em flashbacks. Ela simboliza um tipo de força e indignação tipicamente nordestina, frente à canalhice de um empresário macomunado com a ditadura, que é não apenas anticiência, mas também entreguista. Qualquer semelhança com certos tipos da contemporaneidade brasileira não são mera coincidência, principalmente sabendo a militância política de Kleber desde pelo menos sua participação no Festival de Cannes com AQUARIUS (2016), quando denunciou para o mundo inteiro o golpe sofrido por Dilma Rousseff. E há Carlos Francisco. Que ator incrível. Ele é uma espécie de coração do filme. Ver seus olhos lacrimejando ao ouvir de Armando o que a filha dissera a seu respeito só não é tão emotiva quanto a cena da cadeira em MARTE UM pois Kleber prefere um registro menos sentimental.

O que deixa muitos espectadores surpresos, e às vezes pouco entusiasmados com o filme, são as escolhas narrativas do diretor e roteirista. Não apenas pelo embaralhamento dos fatos, mas principalmente pelo que não é contado, pelas peças que precisamos juntar sozinhos no quebra-cabeças da trama, que fica incompleta. Mas nada mais justo. Afinal, o período da ditadura no Brasil foi o período dos desaparecidos políticos, e lá fora quem viu AINDA ESTOU AQUI, de Walter Salles, terá outro filme sobre o assunto pra chamar de seu. Só que um filme menos clássico e mais moderno (ou pós-moderno), mais sujo e mais complexo em sua estrutura e aspecto visual, mais desconstruído como trama policial, mais borrado quando se pensa em gêneros cinematográficos – desde O SOM AO REDOR (2012), para citar só os longas de ficção, Kleber sempre gostou de trazer um pouco do cinema de gênero para seus dramas, como pesadelos que invadem a vida real, por assim dizer.

Aqui o terror está presente menos na perna cabeluda ou nos tubarões do Recife e mais no próprio Brasil, no estado-violência. Como diz a personagem de Maria Fernanda Cândido noutro momento memorável do filme sobre as intenções do grupo que apoia os perseguidos pela ditadura: é “pra te proteger do Brasil”.

+ TRÊS FILMES

A BATALHA DA RUA MARIA ANTÔNIA

Eis mais um desses filmes imprescindíveis, especialmente por fazer uma intersecção entre um momento histórico particular do Brasil, mas também pelas ousadias formais de Vera Egito, aqui mais uma vez trazendo o plano-sequência como recurso eficiente para colocar o espectador no olho do furacão. A BATALHA DA RUA MARIA ANTÔNIA (2023) retrata uma situação ocorrida entre alunos esquerdistas da Faculdade de Filosofia da USP e alunos fascistas do Mackenzie, pertencentes ao CCC, Comando de Caça aos Comunistas. A situação é representativa daquele momento em que o Brasil havia sofrido o Golpe, em 1968, ainda sem a assinatura do AI-5, mas é difícil não fazer paralelos com a situação social e político do Brasil de hoje. Assim como é difícil não ficar empolgado e preocupado com o drama desses alunos e professores que se armam e se defendem como podem num país que não se pode contar com a polícia - ao contrário: a polícia estava ali para aproveitar qualquer gesto desses militantes para agir com violência. Há dois atores de AINDA ESTOU AQUI no elenco, o que só reforça a ideia de que uma dobradinha com os dois filmes seria uma boa para retratar dois momentos tensos da ditadura no Brasil. O filme foi rodado em 16mm e com 21 planos-sequência, emulando um tom documental e urgente à história apresentada, uma história vista sob múltiplos pontos de vista, já que há vários personagens e alguns deles encontram, inclusive, espaço para o amor e o sexo no meio daquelas horas tensas. Filmaço.

O ÚLTIMO AZUL

Junto com BOI NEON (2015), este premiado O ÚLTIMO AZUL (2025) está entre os grandes filmes de Gabriel Mascaro. Desta vez o cineasta se aventura pela Amazônia e cria uma realidade distópica em que a pessoa que completar 75 anos de idade já deverá ser obrigatoriamente encaminhada a uma colônia, para que os filhos possam produzir sem prejuízo para o governo. E somos apresentados a Tereza, a ótima personagem de Denise Weinberg (A METADE DE NÓS), uma mulher que se recusa a aceitar as imposições desse governo e assim tenta escapar a todo custo desse destino, em busca de realizar coisas que ainda pretende fazer na vida, como andar de avião, por exemplo. Com isso, ela entra clandestinamente no barco do personagem de Rodrigo Santoro e depois na vida de outros personagens, sendo que o barco é o meio de transporte mais usado. Aqui, Mascaro transforma um road movie num boat movie, o que é outro diferencial muito bem-vindo. Sem falar que é muito fácil se solidarizar e torcer por Tereza, que vai conhecendo novas pessoas nessa sua trajetória e experienciando coisas que jamais imaginaria. Adoro a cena em que Tereza toma umas com uma mulher idosa que vende bíblias e sente uma alegria imensa de viver. Em certo momento, lembrei-me de HISTÓRIA REAL, de David Lynch, também sobre um idoso andando por um vasto trecho com um objetivo, só que num carrinho de cortar grama. É uma beleza ver o cinema brasileiro ganhando tanta força e ainda tendo uma ótima repercussão internacional: O ÚLTIMO AZUL ganhou o Urso de Prata em Berlim. Que sua trajetória pelo mundo seja igualmente gloriosa. Sem falar que Mascaro nos apresenta a lugares de beleza inimaginável. Dá vontade de comprar uma passagem para conhecer a Amazônia.

MALÊS

Certos filmes são necessários. Não por sua importância na forma, no que se refere à linguagem cinematográfica, mas no que tange à nossa história brasileira, mais especificamente à história do povo negro brasileiro. E é muito bom que este projeto tenha partido de um dos maiores atores negros brasileiros, Antônio Pitanga, aqui em seu segundo filme na direção, sendo que o primeiro foi em 1978, o quase invisível NA BOCA DO MUNDO. Sendo um filme de ator, MALÊS (2024) tem toda uma preocupação com as performances de seu elenco, que traz dois filhos de Pitanga, Camila e Rocco em papéis importantes. O filme trata de um levante citado de maneira tímida nos livros de história, a Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador, Bahia, em 1835, ainda primeiro reinado. O filme nos apresenta a homens letrados e sofisticados da religião islamita que foram capturados e levados para o Brasil e viverem como pessoas que não têm mais nação – “negro não tem nação”, diz em tom duro e perverso a personagem de Patricia Pillar a um de seus escravos. Falar de escravidão no cinema parece ter diminuído consideravelmente, e é compreensível que isso tenha acontecido, mas é importante que esse período seja trazido com a força que este filme de Pitanga impõe, fazendo com que não apenas nos solidarizemos com esse grupo de pessoas, mas como tomemos como nossas também a sua luta contra os brancos escravocratas. Além do mais, o retrato de um Brasil com três religiões distintas, islamismo, catolicismo e candomblé, apresenta um caldeirão cultural riquíssimo e complexo. E aqui há pouco espaço para os brancos na história, o que ajuda a enriquecer o ponto de vista dos negros em seus dramas cotidianos, em seus momentos de alegria na vida doméstica, na construção de seus sonhos de alcançarem a liberdade de professar suas fés. No fim das contas vemos um Brasil com um potencial de beleza incrível, mas que ainda demoraria a se tornar minimamente justo com quem tanto contribuiu e contribui para nossa riqueza cultural e nossa alegria.

Nenhum comentário: