sábado, março 26, 2022

A PIOR PESSOA DO MUNDO (Verdens Verste Menneske)



Uma das coisas que mais me dá prazer é poder acordar de manhã e verificar que tudo está em ordem – não muito cedo, de preferência, mas se o corpo não reclamar do sono, pode ser também. Minha mãe ainda dormindo, meu gato Jorginho deitado no chão da cozinha todo cheio de pose (ou em cima da mesa, às vezes), o silêncio do horário só interrompido pelo tráfego dos carros e motos e eu não precisando sair apressado para trabalhar ou para algum compromisso não muito agradável. E, assim, poder escrever com prazer para o blog. Quem acompanha este espaço aqui percebe que já faz mais de uma semana que não o atualizo, mas deixo claro que não é por falta de vontade, mas por falta de tempo, saúde (não vou falar das dores na lombar para não ficar parecendo ainda mais "blog de véio") e disposição. Mas tudo bem (eu acho). Afinal, é preciso trabalhar para garantir o pão de nosso de cada dia.

Quando vi A PIOR PESSOA DO MUNDO (2021), do norueguês Joachim Trier, sabia que precisaria tirar um tempo para escrever um pouco mais a respeito, nem que fosse um texto de natureza bem pessoal e mais confessional, já que é um filme que me pegou de maneira muito próxima, despertando vários gatilhos e trazendo à tona várias lembranças. Identifiquei-me, em dois momentos distintos, com dois personagens: inicialmente com a protagonista Julie (Renate Reinsve, melhor atriz em Cannes 2021), e posteriormente com o personagem do namorado dela, Aksel (Anders Danielsen Lie, presente em A ILHA DE BERGMAN).

Por mais que seja adepto da política dos autores e tenho por costume dar a maior parte do crédito para o diretor, é sempre bom perceber quem está assinando o roteiro com o realizador, principalmente quando o filme lida com diálogos delicados, sentimentos fortes e uma construção narrativa muito particular. No caso, o corroteirista aqui é Eskil Vogt, parceiro de Trier em todos os seus cinco longas-metragens e que tem alguns trabalhos na direção, entre eles o premiado BLIND (2014). Então, imagino que é preciso dar crédito a Vogt também, que inclusive está sendo indicado ao Oscar de roteiro original junto com Trier, já que A PIOR PESSOA DO MUNDO foi um dos poucos filmes estrangeiros – junto com DRIVE MY CAR e MÃES PARALELAS – que furou a bolha das produções faladas em língua inglesa.

A PIOR PESSOA DO MUNDO tem sido mencionado como o último da chamada "trilogia Oslo" do realizador, em que se incluem COMEÇAR DE NOVO (2006) e OSLO, 31 DE AGOSTO (2011). Como ainda não vi os referidos filmes, todos estrelados por Anders Danielsen Lie, não sei o que eles têm em comum, além do fato de se passarem na capital da Noruega. Pelo pouco que vi dos enredos, os três filmes lidam com dores espirituais.

A PIOR PESSOA DO MUNDO nos apresenta a uma personagem feminina que, apesar de se sentir angustiada com dúvidas sobre sua carreira profissional (ela já abandonou algumas faculdades e ainda não sabe direito o que quer da vida), ela se mostra constantemente sorridente. Aliás, eu diria que muito do que o filme nos ganha vem do sorriso lindo de Julie/Renate. E também de como a narrativa tem uma leveza e um senso de humor que a princípio torna situações que poderiam ser pesadas um pouquinho mais suportáveis. É o caso, por exemplo, da cena da transa de despedida de Julie com Aksel. Ela estava morando com ele já há algum tempo e tudo parecia normal, mas depois que ela conhece Eivind (Herbert Nordrum), ela passa a acreditar que deve partir para uma nova relação, impulsionada pela paixão.

E por mais que as cenas com Aksel até então vistas sejam muito bonitas – gosto muito de quando ela chega no apartamento apartamento dele para ficar e começa a negociar espaços de livros na estante –, é fácil compreender o que faz Julie se sentir balançada, já que a cena do encontro de Julie com Eivind é simplesmente uma das mais eróticas já produzidas nos últimos dez anos no cinema mainstream. Trata-se de uma cena que lida com um jogo delicioso sobre o que se constituiria ou não uma traição, dentro daquilo que eles desejam em suas intimidades.

A PIOR PESSOA DO MUNDO, como o próprio nome dá a entender, é justamente esse filme que lida com a dor que a pessoa que você ama é capaz de lhe inflingir. E Julie, por mais que jogue de maneira muito franca com seus namorados, às vezes até franca demais, como quando joga na cara de Eivind sua pouca cultura e sua ocupação profissional mais humilde (em comparação com Aksel), por mais que jogue de maneira muito franca, ela sabe o quanto é capaz de magoar alguém.

E isso se torna um fardo ainda muito mais pesado para Julie quando ela reencontra Aksel nos últimos capítulos da narrativa e vê seu estado físico e quando ouve dele que ela foi a mulher de sua vida, a pessoa que ele mais amou em toda sua existência. Foi nesse momento que o filme bateu forte em mim e eu me identifiquei muito com Aksel, embora quisesse aceitar também um abraço de Julie, já que já passei por situações similar. E por mais que o filme abrace o melodrama nesta conclusão, enfatizando a condição de Aksel, acredito que o sentimento sobre a relação dos dois consegue ganhar uma dimensão ainda mais importante do que a própria morte iminente.

Trier lida com esse carrossel de emoções de maneira muito inteligente e criativa. A cena de Julie pausando o tempo e o espaço para passar várias horas com o novo (e supostamente proibido, pois representativo de adultério) amor de sua vida é impressionante, mas também é digno de nota cada vez que o cineasta emoldura seus personagens de acordo com as emoções que eles sentem, seja um sentimento de manipulação, de culpa, de impulsividade, de solidão ou de desejo.

+ DOIS FILMES

SUMMER OF SOUL (...OU, QUANDO A REVOLUÇÃO NÃO PÔDE SER TELEVISIONADA) (Summer of Soul (...or, When the Revolution Could Not Be Televised))

Acredito que um dos "defeitos" que podemos atribuir a SUMMER OF SOUL (...OU, QUANDO A REVOLUÇÃO NÃO PÔDE SER TELEVISIONADA) (2021), de Ahmir 'Questlove' Thompson, seja o fato de ser um documentário mais quadrado para os padrões da atualidade. Mas talvez ele precisasse ser assim mesmo, para, além de nos apresentar a alguns dos melhores momentos dos shows do Harlem Cultural Festival de 1969, ainda nos situar dentro daquele caldeirão fervente que era os Estados Unidos (e o mundo) naquele ano. O que é impressionante é que um registro tão valioso e tão cheio de estrelas como esse tenha ficado guardado e praticamente esquecido por cerca de 50 anos. Entre os nomes presentes no festival, há Steve Wonder, Nina Simone, Sly and the Family Stone, B.B. King e tantos outros, numa celebração da diversidade da música e da cultura negra em um tempo de revolução cultural e autoafirmação da beleza do negro. Há espaço tanto para um dia dedicado ao gospel, quanto a números vindos direto da África, passando por grupos pop, artistas de jazz, blues, r&b, soul. Impressionante, de fato. Indicado ao Oscar na categoria documentário em longa-metragem.

BELFAST

Um filme tão simpático quanto ineficiente em tudo que tenta fazer. Não sei o que é mais incrível: Kenneth Branagh estar conseguindo tanto espaço para um filme como este ou ter voltado a parecer um cineasta importante após tantos trabalhos medíocres. A singularidade de BELFAST (2021) estaria no fato de ser um projeto mais pessoal do cineasta, retratando sua infância em Belfast aos nove anos de idade, quando sua cidade passou a ser palco de uma guerra entre católicos e protestantes. Como o filme tenta ser um olhar do protagonista infantil, não há muito interesse em tomar partido na situação, o que eu acho compreensível se pensarmos esse embate apenas como uma imbecilidade, sem explicar minimamente o porquê daqueles acontecimentos. Mas nem chega a ser esse o problema do filme e sim o quanto ele tenta emocionar e não consegue (pelo menos não a mim), como os diálogos são qualquer coisa, como as imagens procuram trazer algo de poético e bonito e não conseguem também. No meio disso tudo, porém, se destacam as performances do elenco, especialmente do menino Jude Hill e da atriz que faz sua mãe, Caitríona Balfe, hoje mais conhecida como a protagonista da série OUTLANDER. Indicado ao Oscar nas categorias de filme, direção, roteiro original, ator coadjuvante (Ciarán Hinds), atriz coadjuvante (Judi Dench), canção (“Down to Joy”, de Van Morrison) e som.

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