“A memória muitas vezes nos dá força”
(Haruki Murakami, no conto “Kino”)
Estou repetindo a experiência que EM CHAMAS, o maravilhoso filme de Lee Chang-dong, trouxe: entrando em contato com os contos de Haruki Murakami que deram origem à obra cinematográfica. Se no EM CHAMAS, os contos foram retirados do livro O Elefante Desaparece, DRIVE MY CAR (2021), de Ryûsuke Hamaguchi, tem por base os contos do livro Homens sem Mulheres, principalmente o conto que dá nome ao filme. Estou em processo de leitura ainda do livro e totalmente encantado com um conto em específico chamado “Kino”, possivelmente o mais misterioso do volume. Dele Hamaguchi toma emprestada a imagem do marido que chega em casa e vê a esposa transando com outro homem. E de “Sherazade” o cineasta toma emprestadas as cenas em que a esposa conta ao marido histórias na cama, após o sexo.
Quanto à inclusão do filme em quatro categorias no Oscar deste ano, eis é um feito e tanto. Principalmente se compararmos com as outras produções indicadas e mais convencionais, ver este filme arthouse de três horas de duração e andamento bem lento é ver um corpo estranho na premiação. Nem sei se todos os fiéis gabaritadores do Oscar conseguirão ver o filme. O próprio diretor não acreditou quando lhe deram a notícia das indicações. Muito provavelmente isso deu pelo efeito de ele ter conseguido emplacar dois sucessos em dois dos maiores festivais internacionais do ano passado, RODA DO DESTINO em Berlim (Urso de Prata) e DRIVE MY CAR em Cannes (melhor roteiro).
E falando em roteiro, a indicação para roteiro adaptado neste ano e o prêmio específico para o roteiro em Cannes deve ter muito a ver com o modo como o diretor (em parceria com Takamasa Oe) expande um conto bem pequeno de Murakami de maneira brilhante, modificando e acrescentando elementos extras e dando mais tempo e espaço para a peça Tio Vânia, de Anton Tchekhov. Além do mais, os diálogos são ditos, quase sempre, de maneira bem pausada.
Outra coisa: em DRIVE MY CAR, principalmente, Hamaguchi parece ser mais um diretor de rostos (seria um absurdo compará-lo a Bergman, nesse sentido?), dada a quantidade de cenas em que ele prefere ressaltar a expressão de seus atores e atrizes. Há um momento muito especial que reúne três personagens no carro conversando (um deles apenas ouvindo) sobre um assunto particularmente delicado. E essa tensão nos interiores é tanta que quando as imagens se abrem para planos gerais, principalmente diurnos, fica uma sensação de alívio no ar. Eu, particularmente, senti falta de me envolver mais com o drama dos personagens, mas isso tem sido quase uma constante comigo com os filmes dessa temporada de premiações.
Talvez a falta de uma familiaridade maior com o cinema japonês e com o tipo de interpretação mais particular deles tenha interferido um pouco em minha apreciação. Tanto que prefiro quando as interpretações são um pouco mais frias e estranho as interpretações mais catárticas, como acontece nos momentos finais – apesar de eu ter achado belíssima a cena da apresentação de Tio Vânia.
Uma coisa curiosa que eu tenho visto nas tentativas de criar uma sinopse para o filme é que ela pode ser feita de duas maneiras: ou contando o que acontece com Kafuku (Hidetoshi Nishijima) no prólogo de 40 minutos, ou seja, contando a situação entre ele e a esposa; ou indo direto para a espinha dorsal da narrativa, que é a relação entre Kafuku e a motorista Misaki (Tôko Miura). A opção de Hamaguchi de contar para o espectador a história pregressa do protagonista com a esposa em vez de usar flashbacks, como acontece no conto, tira um pouco do mistério em torno do protagonista, embora fiquem no ar ainda suas angústias e seu sentimento dúbio em relação à esposa. Aliás, a dubiedade parece ser algo muito comum na filmografia de Hamaguchi, a julgar pelo que vimos em suas obras anteriores, ASAKO I & II (2018) e RODA DO DESTINO.
E acredito que DRIVE MY CAR seja um filme que mereça revisões para que compreendamos melhor os detalhes, as entrelinhas, os sentimentos que podem ser compatíveis com os nossos e assim nos aproximar mais do filme. Conhecer a peça de Tchekhov pode ajudar também a compreender melhor o filme, já que muito do que aflige o personagem passa pelo que essa peça esbarra com sua vida. Além do mais, é uma maravilha quando duas ou três formas de arte se coadunam e uma ou outra oferece um convite para o nosso enriquecimento cultural.
+ DOIS FILMES
MADALENA
Foi muito bom ir ao cinema no finzinho do ano passado e ainda poder ver um filme tão poderoso quanto MADALENA (2021), de Madiano Marcheti, que escapou a todas as minhas expectativas quanto ao desenvolvimento do enredo. Na verdade, não é exatamente um filme de enredo; há muito mais interesse em aprofundar uma atmosfera e em apresentar personagens diferentes, que estão ligados, de alguma maneira, a uma mulher trans chamada Madalena, apresentada morta logo no prólogo. A personagem-título raramente aparece e talvez isso a torne uma espécie de fantasma assombrando (principalmente no caso da história do rapaz filho de um rico latifundiário) ou trazendo um sentimento forte de ausência. MADALENA é desses filmes que expandem a nossa compreensão da grandeza espacial de nosso país, ao apresentar uma área rural do Mato Grosso do Sul como uma das faces do Brasil, o país machista e recordista no assassinato de travestis e transexuais. Um grande longa-metragem de estreia.
TITANE
Terminei de ver TITANE (2021), de Julia Docournau, numa madrugaesta do ano pasasdo, mas precisei de um tempo para ruminar um pouco o que acabara de ver (no fim das contas acabei não escrevendo um texto maior a respeito, o que é uma pena). É curioso como dois dos maiores festivais de cinema do mundo optaram por filmes ousados (foi o caso de Berlim também). Docournau já diz a que veio no início da narrativa, quando vemos a protagonista ainda criança tendo um tipo de personalidade complicada. Na vida adulta, outra surpresa logo surge na cena do estacionamento, e mais ainda em outros momentos. Até a entrada em cena de Vincent Lindon, quando TITANE se transforma também em um filme sobre amor. O que é muito estranho, levando em consideração tudo o que havíamos visto até então, não apenas de violência, mas da opção por um estudo mais fantástico da personagem e o produto do sexo com um automóvel. Daí a entender a alegoria que o filme promove ter demorado um pouco pra mim. No mais, que bela estreia em longa da atriz Agathe Rouselle, hein!
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