domingo, abril 20, 2025

PECADORES (Sinners)



A música ocidental seria muito pobre se não fosse a contribuição dos negros. Na verdade, se pensarmos bem, a música que até hoje resiste é nascida da criatividade e inventividade negra: o jazz, o blues, o rock, o r&b, o soul, o funk, o reggae, o pop, o samba, o rap, e por aí vai. Até mesmo a música country parece ter também influências da música negra em sua gênese. Ou seja, de um povo criado na dor de ter sido sequestrado, açoitado e ter sido tratado muito menos do que um objeto, pois objetos não são açoitados, nasceu uma das mais ricas contribuições para a cultura contemporânea. No caso da música negra norte-americana, ela ainda teve o agravante de ter a restrição de não se poder usar instrumentos de percussão. No entanto, os negros americanos souberam usar essa restrição a seu favor e criaram uma das músicas mais sofisticadas do mundo.

A metáfora dos vampiros, por isso, parece genial no filme de Ryan Coogler, pois é mais uma tapa na cara dos racistas, dos brancos que se acham superiores. E se pensarmos que os Estados Unidos foram um país que criou uma organização como a Ku Klux Klan e que enforcou pessoas negras ao longo dos anos, sem falar nas proibições de se usar o mesmo banheiro ou de se sentar em espaços diferentes do mesmo ônibus em certos estados do sul, isso só torna a história desse país ainda mais complexa. Por isso que falar dos Estados Unidos é também sempre lembrar de um legado de horrores. E por isso falar dos Estados Unidos também é pensar na alegria que sua música e sua cultura nos trouxeram.

Vendo PECADORES é que passo a entender o jogo de Ryan Coogler em trazer para si, ou melhor, para o protagonista negro, o que geralmente era de um protagonista branco. Aconteceu com CREED – NASCIDO PARA LUTAR (2015), criado a partir da franquia Rocky, sobre um boxeador ítalo-americano, e com PANTERA NEGRA (2018), um filme de super-herói da Marvel que coloca a cultura africana como superior, inclusive do ponto de vista da tecnologia, mas eu não estava preparado para um salto tão gigante como este seu novo filme.

Seu quinto longa-metragem é não apenas um dos mais criativos filmes de vampiros de todos os tempos, mas vai muito além disso, ao retratar a luta do homem negro no sul dos Estados Unidos em tempos de KKK ainda em atividade e ao falar de apropriação cultural. Mas o que mais me encantou mesmo foi mostrar a música como uma espécie de mágica, e como uma mágica que veio com o povo africano escravizado, uma música que faz parte do negro americano; diferente da religião, que foi imposta, e isso é mencionado no filme.

Aliás, Coogler às vezes soa quase didático (no bom sentido do termo), mas há muitos simbolismos mais sutis que merecem um pouco mais de atenção. A própria necessidade do vampiro de precisar que a pessoa o convide para entrar é também representativo do quanto o artista negro americano foi perdendo sua preciosa música para os brancos, de olho no que havia de melhor e prontos também para usufruírem daquela arte incrível, como é o caso do blues e do jazz, e mais adiante do rock também.

Uma das melhores cenas do ano (ou do século) é aquela que vemos a magia do blues perpassando presente, passado e futuro. E não consigo ver outra arte que não o cinema para apresentar aquilo de tal maneira. E essa cena especificamente é talvez o maior flagrante do grande talento de Coogler, que aqui se mostra à altura de um Jordan Peele, para citar um dos grandes mestres do cinema de horror da atualidade – ainda considero NÃO, NÃO OLHE! o melhor filme de terror dirigido por um cineasta negro, mas sei que existem muitas lacunas em minha cultura cinéfila ainda.

Sobre a trama, Michael B. Jordan interpreta dois irmãos gêmeos que voltaram de Chicago para sua cidadezinha do interior do Mississipi em 1932,com muito dinheiro após um período trabalhando para a máfia de Al Capone. Aliás, até a discussão acerca de todo dinheiro ser roubado ali nos Estados Unidos é muito interessante. Esses dois irmãos visitam o primo mais novo, Sammy, chamado de pastorzinho (Miles Caton), por ser filho de pastor, para que ele toque na inauguração de uma casa de espetáculos de blues na cidade. Depois, como em OS SETE SAMURAIS, saem em busca de pessoas que os ajudem na organização do evento, como um homem grande para ser o leão de chácara (Omar Miller), ou um bom músico vivendo na pior (Delroy Lindo) para ajudar na banda, ou uma cantora jovem (Jayme Lawson) etc. O elenco ainda tem Hailee Steinfeld, atriz de ascendência filipina e por isso combina bem no papel de alguém que tem sangue negro nas veias, como o interesse amoroso de um dos irmãos.

O filme lembra UM DRINK NO INFERNO, de Robert Zemeckis, no momento que os vampiros chegam para invadir o espaço. Ou melhor, pedindo para entrar, pois há um jogo muito interessante da trama de aproveitar certos conceitos de filmes e de literatura sobre vampiros, como o alho como elemento que os espanta ou causa dor, a luz do sol como elemento que os mata, além do uso da estaca no peito também. Nesse sentido, a personagem de Wunmi Mosaku como uma espécie de feiticeira, uma mulher detentora da sabedoria de magia e sobrenatural, essencial para a condução desse segundo momento do filme. Mas claro: por mais memorável que seja o filme de Zemeckis com roteiro de Tarantino, Coogler faz aqui um trabalho muito mais respeitável e sofisticado. Desde já um dos melhores do ano.

Ah, e quem puder, veja o filme numa sala IMAX! Faz toda a diferença!

+ DOIS FILMES

DROP – AMEAÇA ANÔNIMA (Drop)

Não sei se já dá para dizer que este é o filme de maturidade de Christopher Landon, vindo ele de obras mais lúdicas como A MORTE TE DÁ PARABÉNS (2017), sua continuação (2019) e a comédia de terror FREAKY – NO CORPO DE UM ASSASSINO (2020). Em DROP – AMEAÇA ANÔNIMA (2025), seu trabalho formal chega a ser impressionante, lembrando muitas vezes Brian De Palma, no modo como lida tanto com o suspense quanto com a câmera nervosa, captando os vários espaços de um restaurante chique. Na trama, mulher traumatizada vai a um primeiro encontro com um rapaz que conhece num aplicativo de relacionamentos, mas as coisas começam a ficar muito tensas quando ela recebe mensagens perigosas em seu celular. Creio que o filme captura bem o mundo em que vivemos. Enquanto via o filme, inclusive, sentia as notificações no celular em meu bolso e percebia o quanto esse aparelhinho que carregamos o tempo todo nas mãos ou no bolso é tóxico. Não que isso seja a moral da história, mas certamente um lembrete para o presente e uma marca documental para o futuro. O que temos é principalmente um filme pra lá de eficiente na condução do suspense e que realmente provoca arrepios em determinados momentos de perigo e tensão. Acredito que o cineasta passará a ganhar mais atenção para os próximos trabalhos que virão, dada a direção elegante e a condução impressionante de DROP.

O MACACO (The Monkey)

Talvez O MACACO (2025) seja o menos interessante da filmografia de Osgood Perkins, mas ainda assim tem seus méritos e um diferencial. Difere dos filmes de brinquedos ou bonecas amaldiçoados que existem por aí, tanto no tom, com um tipo de humor prevalecendo, quanto na maneira como a morte é tratada como algo inescapável, como diz a personagem de Tatiana Maslany a seus filhos adolescentes, quando os dois perdem uma pessoa querida num acidente horrível, logo após o macaco ter sido usado. Esse tom de quase desistência perante a morte é tanto uma força (pela originalidade) quanto uma fraqueza (pela falta de temor de nossa parte). O filme também não explora jump scares e por isso acaba fugindo do terror mais vulgar. Talvez haja uma aproximação maior com a franquia Premonição, pelo modo como se começa a esperar a próxima situação. E algumas delas realmente são bem surpreendentes, como a morte da tia ou a do sujeito que fica viciado no macaco. O MACACO é também um filme sobre a dificuldade de comunicação entre os familiares e sobre a ausência paterna. Não é tão plasticamente bonito como MARIA E JOÃO – O CONTO DAS BRUXAS (2020) e LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL (2024), mas mantém o nome de Perkins como um dos principais do gênero da atualidade. Porém, é verdade que ainda falta a ele um grande filme no currículo.

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