domingo, dezembro 31, 2023

TOP 20 2023 E O BALANÇO DO ANO




1. TÁR, de Todd Field
2. OS BANSHEES DE INISHERIN, de Martin McDonagh
3. A CIDADE DOS ABISMOS, de Priscyla Bettim e Renato Coelho
4. JOHN WICK 4 – BABA YAGA, de Chad Stahelski




5. CAPITU E O CAPÍTULO, de Júlio Bressane
6. ASTEROID CITY, de Wes Anderson
7. MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO DE CONTAS – PARTE UM, de Christopher McQuarrie
8. NOSSO SONHO, de Eduardo Albergaria




9. OS DELINQUENTES, de Rodrigo Moreno
10. AS BESTAS, de Rodrigo Sorogoyen
11. ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES, de Martin Scorsese
12. RETRATOS FANTASMAS, de Kleber Mendonça Filho





13. O ASSASSINO, de David Fincher
14. ANATOMIA DE UMA QUEDA, de Justine Triet
15. CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA, de Emmanuel Mouret
16. GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3, de James Gunn




17. A PRAGA, de José Mojica Marins
18. LOBO E CÃO, de Cláudia Varejão
19. AFIRE, de Christian Petzold
20. FOLHAS DE OUTONO, de Aki Kaurismäki 

Menções honrosas

21. O SEQUESTRO DO VOO 375, de Marcus Baldini
22. BABILÔNIA, de Damien Chazelle
23. ARMAGEDDON TIME, de James Gray
24. BATEM À PORTA, de M. Night Shyamalan
25. MEDUSA, de Anita Rocha da Silveira
26. O CONTADOR DE CARTAS, de Paul Schrader
27. FALE COMIGO, de Danny e Michael Philippou
28. MARINHEIRO DAS MONTANHAS, de Karim Aïnouz
29. PRISCILLA, de Sofia Coppola
30. NOITES DE PARIS, de Mikhaël Hers

2023 foi um ano muito bom para mim. Um reencontro muito especial me trouxe fôlego novo, uma nova esperança de um futuro com “a paz de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida”, como diz a canção. É verdade que não tenho mais o vigor físico de quando estava na casa dos vinte e talvez por isso eu tenha achado o ano um pouco cansativo, talvez por causa da mudança de rotina no trabalho, com mais desafios. Mas os desafios trouxeram mais tempero e graça. Ou seja, tudo foi bom, no fim das contas. Não vi tantos filmes nem li tantos livros ou HQs quanto gostaria, mas o que eu vi/li já foi muito bom para os padrões de alguém da classe trabalhadora – vou tentar ler pelo menos um romance de alta literatura em 2024. Quanto às peregrinações, ainda nem consegui terminar a de Brian De Palma, mas pelo menos já ensaiei a do próximo ano, que será de Samuel Fuller. Também pude conhecer muitas pérolas que me deixaram bem empolgado. O melhor do cinema geralmente não está na sala de cinema, é verdade. 

Uma coisa que passamos a nos importar muito quando aprendemos a amar o cinema é valorizar a memória e os cineastas detentores de talento, da entrega e de uma sabedoria acumulada ao longo dos anos. Da lista dos cineastas que aparecem neste top 20, temos três artistas surgidos na década de 1960, sendo que dois deles são brasileiros. E esses brasileiros, José Mojica Marins e Júlio Bressane, são quase opostos. Mojica é mais primitivo, mais brutal, e é quase um milagre que um filme como A PRAGA tenha reaparecido em tão belo estado, como se saído de um túnel do tempo, como se fôssemos parar na virada para os anos 1980. Enquanto isso, o intelectual Bressane parece ser um senhor do tempo, ao adaptar Dom Casmurro à sua maneira no incrível CAPITU E O CAPÍTULO, filme que valoriza cada palavra dita, trazendo o sabor da palavra falada para nossos ouvidos, enquanto também nos deliciamos com as imagens. Quando esses dois filmes estavam em cartaz simultaneamente, eu sentia que estava acontecendo algum tipo de conjunção astral singular.

Já o outro cineasta surgido na década de ouro do século da contracultura é Martin Scorsese, que, contrariando o tempo implacável, segue fazendo filmes ainda maiores, mais ambiciosos, mais desejosos de explicitar a presença do mal (do pecado?) como elemento de construção da civilização americana. ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES é mais uma pedra fundamental nesta crônica de um país doente. Por esse olhar para o aspecto mais venenoso da alma humana, ter Scorsese conosco é essencial para nosso crescimento.

Enquanto isso, cineastas de outras gerações tratam de suas próprias obsessões em suas filmografias. É o caso de Wes Anderson, que se mostra em ASTEROID CITY como alguém que ameaça revelar seus mais profundos sentimentos, geralmente escondidos no interesse desmedido pela simetria perfeita e pela dramaturgia estranha. Seu contemporâneo, David Fincher, também um homem preocupado com a forma, faz em O ASSASSINO um filme sobre alguém com excesso de preocupações com a perfeição. Christian Petzold, por outro lado, nos faz pensar em seu próprio eu jovem, ao nos apresentar a um personagem tão pretensioso quanto equivocado em AFIRE. Já Emmanuel Mouret, que se tornou um dos mais queridos da casa nos últimos anos, segue com sua proposta de apresentar o amor romântico rodeado por obstáculos vindos principalmente das inseguranças no belo e divertido CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA.

Falando em obstáculos e inseguranças, tivemos também duas obras queer que podem ter passado desapercebidas por muitos. O português LOBO E CÃO é um filme sobre amadurecimento juvenil e necessidade de ousar numa comunidade bastante conservadora. Enquanto o brasileiro A CIDADE DOS ABISMOS é um convite a adentrarmos a noite, e isso me é muito atraente. Além do mais, é um filme sobre solidão e amizade.

Falando em amizade, muito provavelmente por ter perdido um grande amigo durante a pandemia, esse tema se tornou um bocado delicado para mim. Em OS BANSHEES DE INISHERIN, temos a brusca decisão de um dos amigos de encerrar definitivamente a relação de vários anos com o outro. E isso me foi muito doloroso, por mais que o filme também tenha seu aspecto simbólico relacionado à guerra. Ainda por cima, o trabalho de Martin McDonagh opta por caminhos tortuosos e surreais. Já NOSSO SONHO, que aparentemente seria apenas mais uma cinebiografia de uma dupla de artistas brasileiros, me pegou de surpresa com sua história de mistério, amizade e conflitos familiares, em especial com o pai. Que é outro ponto sensível de minha história pessoal de vida. Mas trata-se de um filme do bem, definitivamente. E quem também fala de família (família não-sanguínea) e emociona muito é GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3, aquele ponto fora da curva no atual momento decadente dos filmes de super-heróis. James Gunn fez um filme com muito coração.

Em se tratando de filmes com rigor formal magnífico, o ano contou com pelo menos dois exemplares extraordinários. JOHN WICK 4 – BABA YAGA é uma obra tão bonita em sua plasticidade, na condução das coreografias e na própria ambição de ser um grande épico sobre a luta de um homem, que é difícil não vê-lo como se não estivéssemos contemplando arte elevada. O mesmo pode ser dito de TÁR, possivelmente a obra máxima de Todd Field, sobre uma grande maestrina vivendo um momento de crise. Tudo no filme é monumental, da atuação de Cate Blanchett às longas primeiras sequências, passando pelos ângulos de câmera menos óbvios e o aprofundamento nos abismos da heroína, em seu temor de estar perdendo a capacidade de conduzir a vida.

No terreno dos filmes de gênero, tivemos o eletrizante MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO DE CONTAS – PARTE UM, perfeito em tudo que apresenta. O esforço e o sorriso de Tom Cruise costumam andar lado a lado em suas produções, mas nunca vi algo como este aqui antes. Ou talvez tenha visto há muito tempo. No território do suspense que deixa o coração batendo mais forte e uma sensação de impotência, tivemos AS BESTAS, de Rodrigo Sorogoyen. Um grande filme que precisa ser mais visto e comentado, especialmente quando entrar em circuito comercial.

Na linha mais arthouse, mas também tratando de crimes, tivemos o ambicioso argentino OS DELINQUENTES, que começa como um heist movie para depois ir se transformando noutra coisa: uma história de amor com dupla face. Já o vencedor de Cannes ANATOMIA DE UMA QUEDA é tão impressionante no modo como faz com que não acreditemos nem mesmo na heroína, que gera algum tipo de paranoia no espectador. Quem também voltou aos holofotes com força foi Aki Kaurismäki, com sua bela história de amor sobre gente sofrida da classe trabalhadora. FOLHAS DE OUTONO tem encantado muito gente. 

Correndo por fora, Kleber Mendonça Filho nos presenteou com um documentário sobre sua relação com os cinemas de rua do Recife, não sem antes deixar muito claro que se trata de algo muito pessoal, nos convidando para entrarmos em sua própria casa, espaço carregado de muitas memórias. RETRATOS FANTASMAS é um verdadeiro deleite para os cinéfilos.

Top 5 – Piores do Ano (ou aquela seção da retrospectiva que sempre penso em deixar de lado)

1. O EXORCISTA – O DEVOTO
2. AS MARVELS
3. A FREIRA 2
4. CREED III
5. SHAZAM! FÚRIA DOS DEUSES

Top 5 – Musas do Ano



Já faz um tempo que quase todo ano Margot Robbie aparece nesta seção. Além de brilhar no filme mais bem-sucedido do ano, BARBIE, ela ainda abrilhantou o deliciosamente aloucado BABILÔNIA e apareceu numa cena linda de ASTEROID CITY. A canceriana Margot é um encanto e por isso a frase da narradora Helen Mirren quando ela se diz feia em BARBIE representa muito.



A sagitariana de sobrenome complicado Adèle Exarchopoulos segue a linha de filmes para o circuito alternativo, mas com um leve apelo comercial. Ela brilha em OS CINCO DIABOS e PASSAGENS, dois filmes muito distintos, mas que curiosamente podem ser classificados como cinema queer. Tudo indica que Adèle é uma jovem ativista política.



A libriana de sardas no rosto Rebecca Ferguson talvez tenha começado a chamar a atenção e a ser amada pelo grande público pela sua primeira participação na franquia Missão: Impossível. Neste ano, sua presença valiosa em MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO DE CONTAS: PARTE UM reacendeu essa chama.



Outra libriana, Tessa Thompson, apareceu em dois filmes ruins, CREED III e numa cena "piscou-perdeu" de AS MARVELS. Mas é só ela aparecer que essas produções ganham em interesse. A atriz só precisa de um agente melhor, pois carisma, beleza e talento ela tem de sobra.



Nossa querida Sophie Charlotte, taurina, nascida na Alemanha, mas brasileira sim senhor, agora é atriz internacional, dada sua pequena participação em O ASSASSINO. Mas seus dois filmes mais importantes do ponto de vista de sua performance são brasileiros: O RIO DO DESEJO e MEU NOME É GAL, duas obras que acentuam sua versatilidade.

Clássicos revisitados ou vistos pela primeira vez no cinema

A PAIXÃO DE JOANA D’ARC / O MARTÍRIO DE JOANA D’ARC, de Carl Theodor Dreyer
A PEQUENA VENDEDORA DE SOL, de Djibril Diop Mambéty
A RAINHA DIABA, de Antonio Carlos da Fontoura
CÂMERA DA ÁFRICA, de Férid Boughedir
CARTA DA SIBÉRIA, de Chris Marker
CEDDO, de Ousmane Sembène
DOMINGO DESPERDIÇADO, de Drahomíra Vihanová
LE FRANC, de Djibril Diop Mambéty
MANDABI, de Ousmane Sembène
MOOLAADÉ, de Ousmane Sembène
O DEMÔNIO DAS ONZE HORAS, de Jean-Luc Godard
OLDBOY, de Park Chan-wook
OS GUARDA-CHUVAS DO AMOR, de Jacques Demy
SHORTBUS, de John Cameron Mitchell

Top 20 – Não-lançamentos vistos na telinha pela primeira vez

À PROCURA DE MR. GOODBAR, de Richard Brooks
A CURA, de Kiyoshi Kurosawa
A METAMORFOSE DOS PÁSSAROS, de Catarina Vasconcelos
A MORTE DE UM BOOKMAKER CHINÊS, de John Cassavetes
A SANGUE FRIO, de Richard Brooks
ANJO OU DEMÔNIO?, de Otto Preminger
A RAPOSA CINZENTA, de Phillip Borsos
AS DUAS FACES DA FELICIDADE, de Agnès Varda
CONTRASTES HUMANOS, de Preston Sturges
ENTRE DEUS E O PECADO, de Richard Brooks
MORTE AO VIVO, de Alejandro Amenábar
NUVENS FLUTUANTES, de Mikio Naruse
O PRANTO DE UM ÍDOLO, de Lindsay Anderson
OS COMPANHEIROS, de Mario Monicelli
OS NOVOS CENTURIÕES, de Richard Fleischer
PÂNICO AO ANOITECER, de Charles B. Pierce
PARCEIROS DA NOITE, de William Friedkin
PELOS CAMINHOS DO INFERNO, de Ted Kotcheff
UMA VEZ MAIS, de Paul Vecchiali
VIVER, de Akira Kurosawa

Revisões na Telinha

A MALDIÇÃO DE FRANKENSTEIN, de Terence Fisher
A MORTE NUM BEIJO, de Robert Aldrich
AUDIÇÃO, de Takashi Miike
CADA UM VIVE COMO QUER, de Bob Rafelson
DÁLIA NEGRA, de Brian De Palma
EU MATEI JESSE JAMES, de Samuel Fuller
FEMME FATALE, de Brian De Palma
GATA EM TETO DE ZINCO QUENTE, de Richard Brooks
GUERRA SEM CORTES, de Brian De Palma
MISSÃO: IMPOSSÍVEL, de Brian De Palma
MISSÃO: MARTE, de Brian De Palma
O EXORCISTA, de William Friedkin
O PAGAMENTO FINAL, de Brian De Palma
O PASSAGEIRO – PROFISSÃO: REPÓRTER, de Michelangelo Antonioni
O PÁSSARO SANGRENTO, de Michele Soavi
OLHOS DE SERPENTE, de Brian De Palma
VAMPIROS DE ALMAS, de Don Siegel

As séries e minisséries
(Quase não vi, é verdade, mas só pra não perder o costume mantenho a seção)

1. SERVANT – QUARTA TEMPORADA
2. AMOR & MORTE
3. LOKI – SEGUNDA TEMPORADA
4. BLACK MIRROR – SEXTA TEMPORADA
5. A QUEDA DA CASA DE USHER

Feliz Ano Novo!

Que o próximo ano seja de mais prosperidade, mais saúde, mais paz, mais amor e mais sabedoria de nossa parte para tomarmos as melhores decisões. Espero poder dar continuidade a esse trabalho no blog, por mais complicado que tenha se tornado nos últimos anos. O importante é que a paixão pelo cinema segue firme, assim como a vontade de pensar, pesquisar e escrever sobre os filmes. Até breve!

terça-feira, dezembro 26, 2023

O SEQUESTRO DO VOO 375



O cartaz do filme é horroroso, não há rostos muito bonitos no elenco e não houve dinheiro o suficiente para a publicidade, o que acabou por não chamar a atenção de muitos espectadores potenciais. Eu mesmo, por conta dessa enxurrada de filmes sendo lançados ao mesmo tempo, só fui ver o filme após umas críticas positivas de alguns amigos e logo na quarta-feira da primeira semana de exibição. Ou seja, eu estava subestimando esta pequena pérola, surgida neste fim de ano sem que eu soubesse muito bem do que se tratava, apesar do título já antecipar. Mas a alegria que O SEQUESTRO DO VOO 375 (2023) me proporcionou não está no gibi. A começar pela surpresa de uma história incrível como a contada pelo filme ser tão pouco conhecida. Aparentemente, só quem conhecia eram as pessoas ligadas a casos especiais de voos. O cinema brasileiro precisa contar esses impressionantes casos reais que não necessariamente fazem parte de uma história grande, de grandes eventos presentes nos livros de história.

O diretor Marcus Baldini, de BRUNA SURFISTINHA (2011), OS HOMENS SÃO DE MARTE... E É PRA LÁ QUE EU VOU! (2014) e UMA QUASE DUPLA (2018) aparentemente é um diretor sem uma marca autoral. Seus filmes são muito diferentes entre si e este suspense baseado numa história real se distingue dos demais por não ter rostos muito conhecidos (ao contrário de outros filmes que ele dirigiu). Mas isso é um acerto, pois ajuda a criar ainda mais o tom de realismo necessário para o melhor envolvimento por parte do espectador.

Na trama, homem revoltado com o governo Sarney e com as mazelas de sua vida, resolve sequestrar um avião e jogá-lo no Palácio do Planalto. Só esse ponto de partida já é incrível, mas o que vem ao longo da narrativa é ainda mais impressionante, tanto em se tratando de surpresas, quanto no modo acertado como Baldini vai nos introduzindo ao ambiente de uma aeronave dos anos 1980.

A aproximação com os personagens, em especial o piloto, o sequestrador e a operadora de voo, é feita com muita naturalidade, e chegamos ao fim de todas as intensas emoções mais próximos deles. O que dizer da cena em que o sequestrador comete seu primeiro ato fatal? Depois desse momento, não tive como desgrudar os olhos da tela e me segurando na cadeira como se estivesse dentro daquela aeronave (essa parte é só um exagero estilístico).

O SEQUESTRO DO VOO 375 não fica atrás de filmes como VOO UNITED 93, de Paul Greengrass, ou PLANO DE VOO, de Robert Schwentke, e está acima da grande maioria de outros filmes de pânico dentro de um avião feitos em Hollywood neste século, como é o caso do hoje pouco lembrado O VOO, de Robert Zemeckis. O próprio SULLY – O HERÓI DO RIO HUDSON, se não fosse visto à luz da poética de Clint Eastwood, não sei se daria tanto valor. Enquanto isso, temos uma produção com pouca grana, mas que ainda assim consegue ter esse impacto incrível. Inclusive, recomendo que quem for ver o filme (ainda em cartaz nos cinemas) vá sabendo o mínimo possível.

E é isso: temos um belo suspense dentro de um avião para chamar de nosso agora. O triste é que pouca gente está indo ver nos cinemas e deixando passar a experiência fantástica que é vê-lo.

+ DOIS FILMES

PEDÁGIO

Sou do time que curtiu CARVÃO (2022) e do quanto é um filme que funciona como thriller de horror com alguns momentos de humor. Em PEDÁGIO (2023), Carolina Markowicz fala de uma mãe que toma a decisão de levar o filho para um curso de "cura gay" é mostrado de forma quase desinteressada, em certo tom debochado. Mas entendo que é preciso comprar a proposta da diretora de se ter um filme sobre personagens dotadas de hipocrisia (Maeve Jinkings e Aline Marta Maia) e aqueles que sofrem com seus atos, como é o caso do filho que só quer ser ele mesmo (Kauan Alvarenga). Uma das coisas interessantes que achei foi o espaço onde a história se passa, em Cubatão, cidade que ganhou fama anos atrás por ser uma das mais poluídas do Brasil. A cidade comparece em tons rosados e gosto da plástica da fotografia, mas desgosto do tom de humor que também me incomodou um pouco com DIVINO AMOR, de Gabriel Mascaro. Além do mais, não trazer a personagem da mãe para um lugar de perigo (pelo menos não foi assim que ficou) tornou sua história um pouco fria e pouco interessante. Para completar, a história do rapaz e o desenvolvimento do personagem também se perde.

TRÊS TIGRES TRISTES

Do Gustavo Vinagre, gosto muito da trilogia de filmes de entrevista, LEMBRO MAIS DOS CORVOS (2018), A ROSA AZUL DE NOVALIS (2018) e VIL, MÁ (2020). Depois disso, ao assumir os longas de ficção, com exceção de DEUS TEM AIDS (2021), que é documentário, seus filmes foram ganhando mais gordura e menos interesse, por mais que tenham um cuidado visual, especialmente nas cenas em interiores. TRÊS TIGRES TRISTES (2022) se passa numa quarta onda da COVID, uma onda que também traz o esquecimento para as mentes. Gosto da primeira meia hora e da dinâmica dos três personagens caminhando pelas ruas de São Paulo, de como eles ganham personalidades próprias. Depois, em certo momento, ao abraçar mais fortemente a imaginação, o filme foi me perdendo, por algum motivo.

segunda-feira, dezembro 25, 2023

O MUNDO DEPOIS DE NÓS (Leave the World Behind)



Ainda lamento não estar podendo atualizar este blog como gostaria, mas a gente faz o que é possível. O lado positivo é que não tenho deixado de ver filmes. Tanto que, na hora que paro para escrever, tenho pelo menos cinco opções possíveis para escolher. Escolho O MUNDO DEPOIS DE NÓS (2023) por estar mais fresco na memória. E também por ser um convite à reflexão sobre o nosso mundo contemporâneo, sobre como a tecnologia modificou nossa rotina. Eu, por exemplo, que nunca fui muito bom de me localizar enquanto dirijo – ou mesmo a pé –, me identifiquei com o personagem de Ethan Hawke (mais uma vez): ele é o cara que reconhece depender muito do GPS. Em determinado momento ele se perde e fica em pânico, tanto que nega ajuda a uma senhora que fala uma língua que ele não entende.

O MUNDO DEPOIS DE NÓS pode ser visto como o BATEM À PORTA do Sam Esmail. Ambos são filmes sobre o apocalipse, ambos se passam na maior parte do tempo num ambiente fechado, mas Esmail opta por um registro mais realista do que o título de M. Night Shyamalan. Ou seja, dentro do fantástico, o filme se adequa mais como uma sci-fi do que como um terror, já que há explicações para o que está acontecendo ao longo da narrativa. Além do mais, as explicações são de natureza racional. E sobre o ambiente fechado, é bom destacar que, na divisão por capítulos do filme (não sei se é a mesma divisão feita no romance em que ele se baseia), o primeiro capítulo se chama “The House”. Ou seja, a apresentação daquele espaço é bem importante. Aliás, a divisão por capítulos também funciona como gerador de suspense. 

Sobre Sam Esmail, já era um cineasta que muito me agradava desde a primeira temporada de MR. ROBOT (2015-2019). Ficava impressionado com o quanto ele ousava estilisticamente em sua obra, colocando, por exemplo, personagens em cantos bem pequenos do quadro, como se estivesse intencionando apresentar sua obra numa sala de cinema, e não na televisão. Para o cinema mesmo, ele havia feito apenas uma comédia romântica com sua esposa, Emmy Rossum, que aqui no Brasil se chamou EU ESTAVA JUSTAMENTE PENSANDO EM VOCÊ (2014), tendo estreado por aqui depois do sucesso da primeira temporada de sua série mais famosa. Para o Prime Video, Esmail trouxe seu estilo para a série HOMECOMING (2018-2020), que contava com Julia Roberts na primeira temporada.

A parceria de Esmail com Roberts se repete em O MUNDO DEPOIS DE NÓS e a atriz interpreta uma pessoa que logo se apresenta como alguém que odeia as outras pessoas. Sair de Nova York por um fim de semana, portanto, tendo alugado uma casa afastada em Long Island, sem nem mesmo consultar o marido (Hawke), seria uma oportunidade e tanto de ficar livre das pessoas por alguns momentos. E o filme é envolvente ao nos levar junto com essa família (o casal e os dois filhos, uma pré-adolescente e um adolescente) àquele ambiente mais afastado da poluição da cidade grande e mais próximo da natureza.

Até que acontece aquela estranha cena do petroleiro, que se aproxima da costa. A filha caçula do casal, Rose (Farrah Mackenzie, série UTOPIA) é a primeira a perceber que o navio está se aproximando, e ela percebe que sua família costuma não lhe dar ouvidos. É ela que também percebe que os cervos estão cada vez mais próximos deles e são os animais mais representativos do julgamento da natureza ao desastre causado pela humanidade. É Rose que, ao querer mais do que tudo, assistir ao último episódio de FRIENDS, representa, especialmente no final do filme, a personagem que mais ganhará a simpatia dos cinéfilos, principalmente daqueles que ainda teimam em valorizar a mídia física, nesses tempos em que tudo está “na nuvem”.

A semelhança com BATEM À PORTA está também com o surgimento dos outros dois personagens muito importantes na primeira noite da família na casa alugada. Um homem trajado de smoking (Mahershala Ali) chega com sua filha (Myha’la, série INDUSTRY), dizendo que são os proprietários daquela casa. A mulher branca que odeia pessoas vivida por Julia Roberts logo se sente pouco à vontade com esses dois. E se percebe um bocado de racismo nas falas e na atitude dela, especialmente quando ela não acredita que um homem como ele não seria capaz de possuir uma casa tão chique – talvez ele fosse uma espécie de caseiro, ela pensa. E o curioso é que, auxiliado pela ótima trilha de Mac Quayle, que acentua o suspense, também temos nossas dúvidas se aqueles dois falam a verdade. Afinal, o filme primeiro nos introduz à família branca.

O MUNDO DEPOIS DE NÓS nos faz pensar não apenas na possibilidade de voltarmos a ficar offline, ou seja, sem internet, mas também sem sinais de rádio ou televisão. Se algo muito sério está acontecendo no mundo e você não tem ideia do que seja, tais meios de comunicação são essenciais. O filme, inclusive, nos faz lembrar um pouco do cenário de 2020, quando a pandemia começou e não sabíamos quanto tempo teríamos e víamos imagens na televisão de grandes metrópoles com as ruas totalmente vazias. Ou seja, já passamos por um tipo de cenário digno de filme apocalíptico e algo parecido com o mostrado no filme de Esmail não chega a ser mais tão difícil assim de acontecer.

+ DOIS FILMES

DURVAL DISCOS

Um filme bem estranho este DURVAL DISCOS (2002), de Anna Muylaert, mas que talvez por isso foi se tornando cultuado com o tempo. Havia perdido na época do lançamento e, ver agora, mais de 20 anos depois, é ainda mais estranho, pois também testemunhamos a queda do CD e a continuidade do vinil. Mas a estranheza se dá tanto no lado A quanto no lado B do filme. Se no começo, o lado comédia mais leve também tem um quê de incômodo e angustiante, o lado B mais sombrio é carregado de situações que convidam ao riso nervoso, embora nem sempre esse riso seja fácil de vir. Acho que uma das cenas mais representativas do filme, e até do quanto ele dialoga com os tempos atuais, de ansiedade, é a cena da Rita Lee entrando na loja para comprar um disco e saindo sem levar o próprio objeto comprado. Cena ótima, assim como são ótimas também as cenas com Letícia Sabatella. Há pelo menos uma imagem que fica forte na memória e representativa de uma surrealidade que não era, que eu me lembre, tão comum assim no cinema daquele período.

FERIADO SANGRENTO (Thanksgiving)

Bom ver Eli Roth de volta aos filmes sangrentos. A década de 2010 não foi muito receptiva para ele, até porque o torture porn que fez muito sucesso nos anos 2000 passou a ser, de certa forma, combatido. Isso não o impediu de realizar uma bela homenagem aos filmes do ciclo canibal, com CANIBAIS (2013). Em FERIADO SANGRENTO (2023), Roth copia até mesmo certo despojamento e até o desleixo da grande maioria dos slashers oitentistas e ainda brinca de trazer à tona mais um feriado para o subgênero, agora o Dia de Ação de Graças, com uma cena que mostra a Black Friday como nunca se viu antes. A trama é um pouco problemática, com muitos personagens e sem muita intenção de fazer algo perfeito, mas com algumas cenas bem memoráveis, como a do forno, a do pula-pula, a do tapa-ouvidos etc. A final girl é percebida logo de cara, a jovem Nell Verlaque, que vive a filha do dono da grande loja da cidade. O filme nasceu inspirado no trailer de brincadeira realizado pelo próprio Roth na época da dobradinha PLANETA TERROR (Robert Rodriguez) e À PROVA DE MORTE (Quentin Tarantino).

domingo, dezembro 10, 2023

PISCINA INFINITA (Infinity Pool)



Às vezes certos filmes nos impressionam mais do que imaginávamos. Ontem vi PISCINA INFINITA (2023), novo trabalho de Brandon Cronenberg, e, apesar de não ter gostado tanto assim, pelo menos aparentemente, tenho que reconhecer que mesmo a segunda metade (gosto mais da primeira) possui momentos que ficaram em minha memória de maneira forte. A própria interpretação de Mia Goth me impressionou bastante a ponto de ficar impressa nas lembranças. “Jamesy!!”, ela grita para o protagonista, com uma arma na mão e um sorriso sádico no rosto, quando este já está tentando fugir daquele mundo bizarro. Aliás, a cena em que a personagem feminina chega até ele, no começo do filme, para prestar-lhe uma violenta masturbação (mais parece um estupro), já antecipa um pouco as castrações múltiplas que o personagem viria a receber.

Pois bem, PISCINA INFINITA acabou por me impressionar a ponto de eu ter um pesadelo. No sonho, eu vou parar num bairro distante, à noite, e sou chamado para ver um documentário raro numa loja de DVDs e Blu-Rays. Sofro agressão, inclusive psicológica, de um pequeno grupo de rapazes que estão lá. Depois de conseguir fugir e de quebrar parte da vidraçaria do local, fico sem saber como voltar para casa.

Em determinado momento, pego um ônibus que me leva para ainda mais longe, pois aparentemente essa é a única solução para sair daquele lugar. Esse ônibus atravessa as águas de um mar escuro que avança pelas ruas. Lembro de ter achado incrível a imagem daquelas águas escuras e violentas. No final, encontro minha mãe naquele bairro. Ela havia descido de um dos ônibus que chegavam naquele ponto final. Ela dizia que estava ali para passar o dia de folga. Enquanto isso, eu me preocupava em chegar a tempo para o trabalho.

Sobre o filme, um dos aspectos mais positivos de PISCINA INFINITA é que vemos o filho de David Cronenberg se afastar um pouco mais do legado do pai. O filme anterior, POSSESSOR (2020), parecia mais devedor da poética cronenberguiana original. Aqui, menos interessa o jogo com os corpos modificados/criados do que o inferno pessoal do protagonista, naquele país fictício de praias paradisíacas, pobreza extrema nas redondezas e segredos e leis bem particulares.

É até interessante eu ter visto o filme pouco tempo após ter passado pela experiência incrível de ver PELOS CAMINHOS DO INFERNO, de Ted Kotcheff, que opta pelo registro mais realista possível. Aqui, o território está bem aberto para a ficção científica, e principalmente para o terror. Gosto muito do filme até a cena da batida. Talvez um pouco mais além, quando surge uma pergunta que acaba sendo uma pergunta em comum também entre os personagens. 

Mia Goth está ótima como uma femme fatale diabólica (a falta de sobrancelhas da atriz acaba por trazer um elemento adicional à caracterização) e Alexander Skarsgård convence muito bem como um homem frágil e sem muita iniciativa. Inclusive, tem a questão do ego masculino ferido, que aparece desde o começo, com o fato de ele ser sustentado financeiramente pela mulher e ser um romancista fracassado.

Curiosamente, Brandon Cronenberg conta em entrevista para a Fangoria que se inspirou numa viagem que ele mesmo fez para a República Dominicana. Ele conta que o resort em que se hospedou era também fechado, os hóspedes não podiam sair de lá, e havia uma cidade falsa onde se podia fazer compras. Ele conta que o falso restaurante chinês e a discoteca foram também inspirados nessa viagem. Havia uma clara intenção daquele país e daquela empresa em esconder a pobreza que cercava esse espaço destinado a turistas com alto poder aquisitivo. 

PISCINA INFINITA foi rodado num resort na Croácia e comparece no top 50 2023 da revista Sight & Sound

+ DOIS FILMES

CANTO DOS OSSOS

Acredito que o olhar de alguém que mora no Ceará para um filme como CANTO DOS OSSOS (2020), de Petrus de Bairros e Jorge Polo, é diferente. O estranhamento e a familiaridade se abraçam quase da mesma maneira que os vampiros e suas vítimas nas cenas do filme: com certo humor, sensualidade e algumas tomadas que capturam uma beleza plástica admirável para uma obra tão artesanal. Ao longo do filme, fui sentindo falta de alguns personagens que vão sumindo, enquanto outros surgem. Nesse sentido, acaba sendo um filme de fluxo, fragmentado, cuja compreensão se ganha mais pela atmosfera do que pelo enredo. O filme foi exibido numa mostra de filmes de terror brasileiros por ocasião do Halloween. Uma bela iniciativa, com oportunidade de ver alguns filmes que não chegaram a entrar em circuito, inclusive.

JOGOS MORTAIS X (Saw X)

A repercussão surpreendentemente positiva (para um filme da franquia) me levou aos cinemas para conferir este décimo volume, após ter largado essa brincadeira lá no quarto filme (achava que tinha visto mais deles). O fato é que a franquia Jogos Mortais é uma coisa muito anos 2000, uma década sangrenta para o cinema, quando até um filme sobre Jesus se mostrava recheado de cenas de tortura e terror explícitos. Ainda assim, ter essa experiência no cinema novamente ajuda a pensar o nosso lado sádico, sem que seja necessário criar em nossa mente os próprios crimes e torturas absurdas do Jigsaw. O lado muito moralista do personagem incomoda, mas isso não é novidade em filmes de horror: no auge do slasher era quase lei. O décimo filme, JOGOS MORTAIS X (2023), de Kevin Greutert, ganha sobrevida num presente que começa a se abrir novamente para a violência bem gráfica, vide TERRIFIER e sua continuação. De certa forma, algumas cenas têm alguma beleza, como a da primeira vítima. E, se depois do terrível quarto filme, tudo o mais foi de mal a pior, é compreensível a animação em torno deste novo.

domingo, dezembro 03, 2023

EU MATEI JESSE JAMES (I Shot Jesse James)



Aproveitemos a animação do dia para dar início oficialmente à minha peregrinação pelo cinema de Samuel Fuller. Vou fazer o possível para não me demorar muito desta vez, como fiz (tenho feito) com a filmografia do Brian De Palma – ainda faltam três filmes para eu ver/rever e comentar aqui no blog e até o fim deste ano pretendo fazer o encerramento. Mas não resisti à vontade que me deu de rever EU MATEI JESSE JAMES (1949), a estreia na direção de Fuller, um dos cineastas mais queridos de Carlos Reichenbach e Jean-Luc Godard. Não à toa, os dois mestres o homenageiam em ALMA CORSÁRIA e O DEMÔNIO DAS ONZE HORAS, respectivamente. Não ter me aprofundado na obra de Fuller nesses anos todos está mais próximo de falta de vergonha na cara de minha parte. Mas ninguém é perfeito, certo?

Falando em ser imperfeito, o protagonista de EU MATEI JESSE JAMES é um sujeito que comete um ato espúrio, abominável, de difícil adjetivação. Mas é pela ótica desse homem confuso que acompanhamos o filme. Se Nicholas Ray era um cineasta que abraçava os marginalizados com humanidade e Alfred Hitchcock nos aproximava dos culpados, Fuller vai mais fundo e nos carrega para as profundezas infernais da consciência de Bob Ford (John Ireland), o braço direito do lendário fora-da-lei Jesse James, que o mata pelas costas, quando sabe que há uma recompensa para quem o capturar. Ele também sonha em se casar e transitar tranquilamente pelas ruas sem ser preso – a vida de foragido estava cansativa. Cynthy (Barbara Britton), a atriz por quem ele se apaixona, porém, fica horrorizada com o ato do pretendente e tem por ele repulsa. 

Já havia visto o filme em DVD há 15 anos (há texto meu no blog) e a revisão o tornou ainda maior, já que pude perceber mais detalhes, como opções de enquadramento (destaque para os close-ups para acentuar as tensões), iluminação, diálogos. Acho incríveis, por exemplo, as imagens finais de Bob Ford (John Ireland) aparecendo na escuridão, como se, pela primeira vez, o filme mostrasse de fato onde está sua alma: numa noite densa. Na cena, o xerife John Kelley (Preston Foster) está pronto para prendê-lo e impedi-lo de se casar com Cynthy, até porque a jovem não queria se casar com ele. Sentia por ele um terrível medo.

O filme é de um amargor admirável e em nenhum momento odiamos o personagem, mas lamentamos sua condição de homem caído e, no entanto, ainda à procura de algo que traga "um inferno mais tranquilo" (como cantou Lobão) para sua vida, como fazer a sorte nas minas do oeste para poder se casar rico e cuidar de uma fazenda com sua esposa. No entanto, desde que ele aceita participar de uma dramatização no teatro de como foi matar Jesse James e não conseguir repetir o ato em cena, e depois ainda de ouvir uma canção narrando seu ato da mais pura covardia, Ford passa a buscar algum ripo de redenção, inclusive chegando a dizer, durante um tiroteio num saloon, que odeia as pessoas que atiram nas outras pelas costas. Ou seja, estava admitindo que odiava a si mesmo.

Há vários artigos que comentam sobre questões homoeróticas no filme, graças principalmente a cena em que Jesse James estã na banheira e pede a Ford que traga a toalha e use a escova para escovar suas costas. Isso, logo após presentear Ford com uma arma nova. A arma que seria usada para matá-lo. Ford estaria trocando um amor por outro ao matar James. Sob esse aspecto, ele teria cometido também um ato de violência contra seu próprio desejo, ainda que reprimido. Quando se vê numa situação de não ser amado pela mulher e de ter matado seu objeto de desejo, a aceitação da morte no final, com suas últimas palavras no ouvido de Cynthy, surge como um presente para o personagem.

Fuller, por ser uma pessoa que teve experiência na guerra, talvez tenha trazido para seus filmes esse mal-estar, um mal-estar que também era, de certa forma, característico daquela década sombria que estava se encerrando. Havia também a experiência de Fuller como jornalista, tendo trabalhado em redações de jornal desde a adolescência, e depois passando a ser roteirista em Hollywood, o que lhe deu muita frustração, já que ele pensava o filme de uma maneira muito diferente daquilo que via concretizado na tela. Eis o motivo de ele ter se tornado diretor de seus próprios roteiros, em produções baratas, mas com uma elegância que se misturava com uma espécie de brutalidade e de amor.

Não à toa, o escritor Phil Hardy, em seu livro Samuel Fuller (1970), ao optar por dividir as obras do diretor em subtemas, coloca EU MATEI JESSE JAMES dentro do subtema “The Violence of Love”, onde inclui também as obras O BARÃO AVENTUREIRO (1950), DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957) e O BEIJO AMARGO (1964). Enfim, ainda não estou íntimo da obra de Fuller, mas a intenção é estar, à medida que vou entrando em contato com seus filmes.

Filme visto no box Cinema Faroeste - Faroeste Noir.

+ DOIS FILMES

A BREVE NOITE DAS BONECAS DE VIDRO (La Corta Notte delle Bambole di Vetro)

O filme escolhido por mim para homenagear Aldo Lado, falecido no último dia 25, foi sua estreia como diretor, talvez seu título mais famoso, junto com outro giallo, QUEM A VIU MORRER? (1972). A BREVE NOITE DAS BONECAS DE VIDRO (1971) tem uma narrativa confusa, kafkiana, apoiada na beleza das cores da fotografia que destaca bastante o verde, mas também na angústia do protagonista, um homem que começa o filme em estado de catalepsia, vivido por Jean Sorel. O problema é que, apesar da falta de um rigor mortis, ele é considerado morto pelos médicos legistas. Enquanto isso, ele busca recordações de como chegou até aquele momento de horror. A trama envolve, a princípio, o desaparecimento de uma moça (Barbara Bach) e uma organização secreta de ricos idosos de um país do leste europeu, lugar que fornece uma ambientação interessante e que é valorizada em suas pontes, igrejas com gárgulas e ruas estreitas. Belo filme, que ainda por cima conta com uma trilha memorável de Ennio Morricone. Filme presente no box Giallo Vol. 2.

A FILHA DO NILO (Ni Luo He Nu Er)

Em outubro, soube da aposentadoria de Hou Hsiao-Hsien, ocasionada pela demência. E fiquei triste. Com o empurrãozinho do livro da Versátil sobre novos cinemas, peguei para ver A FILHA DO NILO (1987), que nem é um dos filmes mais celebrados do realizador. Posso até não ter ficado feliz da vida com a experiência, mas tinha certeza de que estava vendo grande cinema, feito por alguém que se importa tanto com os enquadramentos, que cada imagem, com frequência, se situa dentro de um outro quadro, e muitas vezes um quadro recortado, como nas cenas dentro da casa, com uso de câmera estática, que ajudam a educar o nosso olhar e nos mantém mais atentos. Até diria que essas cenas dentro da casa, em que a gente vai percebendo a construção do quadro e daquilo que se movimenta dentro dele, são as que mais me interessaram. Eu tive que voltar o filme cerca de meia dúzia de vezes por me perder na narrativa ou nos personagens, mas sempre que retornava percebia algo especial. A opção por mostrar mais as ações "menos importantes" e esconder especialmente o que acontece com o irmão envolvido com (ou incomodando) o crime organizado da cidade me fez lembrar Yasujiro Ozu. A FILHA DO NILO é também um belo retrato de uma época, a década de 1980, com Taiwan sendo muito marcada pela cultura norte-americana, presente nas roupas, no corte de cabelo, na música. O filme demora um pouco para nos situar na família da protagonista e até gosto dessa coisa de não ter uma narrativa que nos segure pelo braço e seja tão didática. Visto no box Nouvelle Vague Taiwanesa.

sábado, dezembro 02, 2023

FLORA E FILHO – MÚSICA EM FAMÍLIA (Flora and Son)



Tem dias que a gente está mais sensível. Na quinta-feira, testei positivo para Covid e fiquei um tanto triste. Afinal, eu tinha planejado algumas coisas especiais para o fim de semana. Com isso, nem vi nada do Cine Ceará. Ao menos estou conseguindo ver, ainda que lentamente, alguns filmes em casa. Quando se está doente, perde-se um pouco a paciência até para ver filmes. Na quinta-feira estava mais sensibilizado com tudo, e muito grato pelo carinho da Giselle, dos meus amigos do trabalho e da minha família. Cheguei a chorar vendo algumas coisas pelo celular, como o vídeo do Alexandre Linck sobre AFTERSUN enviado pelo Renato e um vídeo com a canção “Céu de Santo Amaro” (com Flávio Venturini e Caetano Veloso cantando), enviado pela Giselle. Juntou tudo isso e lá fui eu escolher para ver um filme de um diretor que geralmente me emociona muito.

Adoro John Carney. E além de tudo ele fez com que eu me envolvesse bastante com um filme, mesmo enfrentando a chateação de estar doente. Isso se dá por ele ser um cineasta que não tem medo de enfiar o pé na jaca no que se refere à manifestação dos sentimentos em seus filmes. Seus trabalhos não são arthouse e também não se enquadram em produções para grandes audiências. Então, acabam ficando numa espécie de limbo, ainda que seja um limbo frequentado por muita gente. 

FLORA E FILHO – MÚSICA EM FAMÍLIA (2023), por exemplo, teve uma disputa acirrada de compra por duas empresas gigantes do streaming: a Amazon Prime e a Apple TV+. A Apple venceu, comprando o filme por U$ 20 milhões. Lembremos que a empresa deu muita sorte quando apostou suas fichas em NO RITMO DO CORAÇÃO, de Sian Heder, e o filme acabou surpreendentemente ganhando o Oscar na categoria principal no ano passado. Então, essa opção por trabalhos com cara de independentes e potencial de agradar um público maior sem muito esforço pode render bons frutos.

O que me encanta nos filmes de Carney é o modo como ele coloca a música como uma espécie de remédio para a vida das pessoas. Em FLORA E FILHO, a música une uma jovem mãe e um filho adolescente que não costumavam se dar muito bem. E há também a relação dessa mulher (Eve Hewson, ótima) com um professor de violão pela internet, vivido por Joseph Gordon-Levitt. São nas cenas entre os dois que eu mais vejo a mágica acontecer, embora a cena que tenha mais me feito chorar foi numa situação entre mãe e filho.

Assim como nos deliciosos APENAS UMA VEZ (2007), MESMO SE NADA DER CERTO (2013) e SING STREET – MÚSICA E SONHO (2016), a música comparece como elemento quebrantador de corações e modificador de vidas. A cena em que Gordon-Levitt fala sobre a boa música ser capaz de mudar a vida de alguém em apenas três minutos é representativa de um forte sentimento de gratidão do cineasta pela música e por seus criadores.

Há uma canção linda que comparece no filme, de Hoagy Carmichael, que eu conheci através do Renato Russo. Chama-se "I get along without very well" e traz a dor como elemento essencial para a constituição e crescimento de uma pessoa. Essa dor é valorizada também nos diálogos dos dois, quando eles estão se conhecendo e reconhecendo as cicatrizes que carregam. Outra canção famosa que ganha destaque como uma obra-prima no filme é “Both sides now”, de Joni Mitchell.

O modo como o filme acaba também me deixou muito surpreso. Por mais que seja uma obra muito leve e capaz até de ser exibida numa Sessão da Tarde, não dá para dizer que é previsível ou banal. Carney opta mais por sentimentos que flutuam no ar do que por enfatizar um tipo de relacionamento mais concreto, e é isso que o torna tão especial e singular. Assim como o casal de APENAS UMA VEZ nunca concretiza seu amor, mesmo estando tão próximos, e assim como os personagens de Keira Knightley e Mark Ruffalo em MESMO SE NADA DER CERTO não chegam a se beijar (que eu me lembre). Em ambos os filmes o amor à música está à frente do amor romântico. No caso de FLORA E FILHO, há uma questão envolvendo o filho que fará com que os planos da protagonista tomem outro rumo, ou pelo menos sejam adiados.

As canções originais que o filme traz nem são tão brilhantes assim (Carney podia ter conseguido melhores parceiros musicais, como anteriormente), mas elas são honestas e coerentes com o fato de terem sido compostas por pessoas comuns fazendo música a partir de suas limitações, e a partir daquilo que as move, seja o amor romântico, seja o relacionamento em família, ou mesmo a intenção nem tão simples assim de conquistar uma garota, como é o caso do rap composto pelo filho de Flora, Max (Orén Kinlan).

No mais, é interessante notar a queda de popularidade das comédias românticas e até dos dramas românticos em língua inglesa na atualidade, pelo menos nos cinemas. Eles estão mais presentes nos streamings, como foi o caso no ano passado de CHA CHA REAL SMOTH – O PRÓXIMO PASSO, de Cooper Raif. Alias, é bom lembrar que o próprio John Carney é o principal nome por trás de uma das séries de antologia mais legais da atualidade, AMOR MODERNO, que rendeu até agora duas temporadas, uma em 2019 e outra em 2022. Recomendo bastante para os apreciadores de histórias de amor à moda antiga, mas com cenários e personagens bem atuais.

+ DOIS CURTAS

NOW AND THEN – THE LAST BEATLES SONG

Este doc de apenas 12 minutos sobre a última canção dos Beatles, lançada dias atrás, passa tão rápido que parece ter apenas três minutos. NOW AND THEN – THE LAST BEATLES SONG (2023), de Oliver Murray, é bonito de ver, dá aquele quentinho no coração, mas também dá aquela sensação triste de que para chegar ao fim definitivo é só questão de tempo. O documentário tem a intenção maior de mostrar o interessante processo de destacar a voz de John Lennon de uma fitinha cassete com qualidade ruim, graças à tecnologia que Peter Jackson desenvolveu para a  maravilhosa minissérie THE BEATLES – GET BACK (2021). Os Beatles remanescentes fizeram bem em esperar, portanto, embora eu não tenha gostado muito da canção. 

THE BEATLES – NOW AND THEN

Confesso que bateu uma sensação de estranheza quando vi a montagem das imagens que mostram John e George junto com Ringo e Paul. Podiam ter caprichado um pouco mais. Não sei se Peter Jackson fez o videoclipe de NOW AND THEN (2023) com alguma pressa. Se bem que, dentro desse cenário mais artificial e cheio de efeitos, até o Ringo ficou parecendo uma figura criada no computador. De todo modo, é interessante poder dar atenção à música e às lembranças materializadas em fotografias e vídeos do passado, dos quatro quando jovens. Achei lindo o instante rápido em que vemos John e George pertinho, no último concerto ao vivo que fizeram, em 1966. Quanto à canção em si, está mais para um trecho de canção que foi expandido e realizado com uma produção classe A do que algo completo. Mas, se é o que tem, então, tudo bem.

domingo, novembro 26, 2023

PELOS CAMINHOS DO INFERNO (Wake in Fright)



- What’s the matter with him? He'd rather talk to a woman than drink?
- Schoolteacher.
- Oh.


Estava prometendo não reclamar da falta de tempo, mas quando vejo que a última vez que consegui escrever para o blog foi no sábado da semana passada, então vejo que as coisas estão mesmo difíceis e tempo é uma coisinha muito preciosa. Talvez a mais preciosa do mundo. E uma coisa que me traz um misto de emoções é a excitação com a existência de grandes filmes a ver e a frustração de não conseguir ver o bastante. Ou o mínimo possível – seja lá o que signifique “mínimo”, nesse caso.

Recentemente, dei de cara novamente com a famosa lista dos 60 filmes notáveis que Carlos Reichenbach nos deixou*. E acho que é possível tentar administrar o tempo, com esforço e paixão, de modo a ver as coisas que valem muito ver. E por isso deixo a lista aqui nesta própria postagem, para facilitar para mim e para eu sempre voltar a ela sempre que quiser pegar um ou outro filme presente. Um detalhe é que o Carlão optou por citar apenas um filme por diretor. Ou seja, sabemos que outros filmes de cineastas queridos dele, como Zurlini, Lang ou Fuller, para citar apenas três, poderiam facilmente ser incluídos. Até porque ele costumava dizer que seu filme favorito era DOIS DESTINOS, do Zurlini, e optou por incluir outro.  

Foi revendo essa lista que percebi que eu tinha PELOS CAMINHOS DO INFERNO (1971), de Ted Kotcheff, facinho aqui comigo, numa dessas coleções caprichadas da Versátil. E melhor: com direito a ótimos extras que ajudam a contextualizar a produção. O incrível deste filme de Kotcheff, cujas imagens teimam em permanecer em minha memória, é que ele nos impressiona a cada nova cena, a cada nova aventura (ou desventura) que o protagonista vivencia.

Na trama, Gary Bond é um professor de escola que passa uns dias numa cidade escaldante do interior da Austrália. O que chama a atenção, a princípio, é a pouca quantidade de mulheres e a alta concentração de homens, bebendo muita cerveja (muita mesmo!), e às vezes também brigando muito, o que, com frequência, nos remete aos westerns. Existe mesmo esse tipo de cidade no interior da Austrália profunda, o espaço preferido para cineastas que gostam de mostrar esse lado mais feio da grande ilha. Nos extras, Kotcheff conta que esteve numa dessas cidades e notou que havia pouquíssimas mulheres. Ele perguntou se havia um bordel na cidade e disseram que não havia. O que esses homens faziam, então? Brigavam e bebiam. Inclusive, quando o filme estreou na Austrália, muitos australianos ficaram incomodados com o modo como eles foram retratados por um cineasta estrangeiro (Kotcheff é canadense).

Eu ousaria dizer que nunca vi um filme com tanta testosterona sendo despejada na tela quanto aqui. E por mais que tenha ficado muito envolvido com as cenas das apostas e toda a relação que vai se estabelecendo entre o protagonista e aqueles homens desconhecidos (destaque para a presença de Donald Pleasance, como um médico que perdeu a licença para trabalhar), nada me preparava para a cena da caça aos cangurus. A alegria inicial e o movimento do carro e das pessoas dentro dele nessa cena me remeteu à obra-prima HATARI!, de Howard Hawks. Mas isso só durou um instante. Depois tudo vira um grande pesadelo, mas um pesadelo incrível de ver, de deixar o queixo caído. Detalhe: há várias cenas em que Kotcheff filmou no assoalho do carro, o que dá um ar de verdade impressionante.

Há também todo o cuidado do diretor em tornar o ambiente ainda mais quente aos nossos olhos e ouvidos, com o uso de figurinos sempre claros – com cores amarelas ou cor de terra – para somar à luz intensa e ao calor pingando nos corpos. Mas o mais importante, pelo menos do ponto de vista da trama e da construção de personagens, é a trajetória do protagonista, chegando ao inferno de sua própria existência naquele lugar. Além do mais, o filme provoca uma reflexão muito interessante sobre masculinidade. Um verdadeiro estudo do homem e do quanto os aspectos mais sombrios de nossa personalidade estão escondidos, só esperando um instante para aflorar e nos surpreender. 

Filme visto no box Ozploitation.

* 60 Filmes Notáveis.

Por Carlos Reichenbach.

1. A PRIMEIRA NOITE DE TRANQUILIDADE (1972, de Valério Zurlini)
2. A TERCEIRA VOZ (1960, de Humbert Cornfield)
3. OS AMORES DE PANDORA (1951, de Albert Lewin)
4. CONFISSÕES DE UM COMISSÁRIO DE POLÍCIA AO PROCURADOR DA REPÚBLICA (1971, de Damiano Damiani)
5. DOMÍNIO DE BÁRBAROS (1947, de John Ford)
6. SANGUE SOBRE A NEVE (1959, de Nicholas Ray)
7. O DESPREZO (1963, de Jean-Luc Godart)
8. PORTAL DA CARNE (1964, de Seijun Suzuki)
9. O PEQUENO RINCÃO DE DEUS (1957, de Anthony Mann)
10. STROMBOLI (1949, de Roberto Rossellini)
11. O ESTRANHO SEGREDO DO BOSQUE DOS SONHOS (1972, de Lucio Fulci)
12. ASSIM ESTAVA ESCRITO (1952, de Vincent Minelli)
13. CÃO BRANCO (1982, de Samuel Fuller)
14. DUBLÊ DE CORPO (1984, de Brian De Palma)
15. TAXI DRIVER – MOTORISTA DE TÁXI (1976, de Martin Scorsese)
16. VIVER E MORRER EM LOS ANGELES (1985, de William Friedkin)
17. VIDEODROME – A SÍNDROME DO VÍDEO (1983, de David Cronenberg)
18. O PODEROSO CHEFÃO – PARTE II (1974, de Francis Ford Coppola)
19. O ESPÍRITO DA COLMEIA (1973, de Victor Erice)
20. QUANDO DESCERAM AS TREVAS (1944, de Fritz Lang)
21. O GRANDE ÊXTASE DO ESCULTOR STEINER (1974, de Werner Herzog)
22. PELOS CAMINHOS DO INFERNO (1971, de Ted Kotcheff)
23. PRIVILÉGIO (1967, de Peter Watkins)
24. SE... (1968, de Lindsay Anderson)
25. AS PORTAS DA JUSTIÇA (1990, de Gianni Amelio)
26. OS 5.000 DEDOS DO DR. T (1953, de Roy Rowland)
27. O UIVO (1968, de Tinto Brass)
28. LÁBIOS VERMELHOS (1960, de Giuseppe Bennati)
29. OS REIS DO IÊ, IÊ, IÊ (1964, de Richard Lester)
30. SEGREDO DE UMA ESPOSA (1964, de Shôhei Imamura)
31. PANDEMÔNIO (1941, de H. C. Potter)
32. ÁGUIA SOLITÁRIA (1957, de Billy Wilder)
33. PAIXONITE AGUDA (1939, de A. Edward Sutherland)
34. QUANDO OS BRUTOS SE DEFRONTAM (1967, de Sergio Solima)
35. OS PÁSSAROS (1963, de Alfred Hitchcock)
36. O INTENDENTE SANSHO (1954, de Kenji Mizoguchi)
37. VOLÚPIA DA VINGANÇA (1974, de Eizo Sugawa)
38. A PALAVRA (1955, de Carl Theodor Dreyer)
39. MINHA ESPERANÇA É VOCÊ (1963, de John Cassavetes)
40. TRAGAM-ME A CABEÇA DE ALFREDO GARCIA (1974, de Sam Peckinpah)
41. W.R. – MISTÉRIOS DO ORGANISMO (1971, de Dusan Mukavejev)
42. R. A. S. – REGIMENTO DE ARTILHARIA ESPECIAL (1973, de Yves Boisset)
43. RAÍZES (1953, de Benito Alazraki)
44. A BESTA HUMANA (1938, de Jean Renoir)
45. ED WOOD (1994, de Tim Burton)
46. ILHA DOS TRÓPICOS (1957, de Robert Rossen)
47. NAS GARRAS DO VÍCIO (1958, de Claude Chabrol)
48. VENDAVAL NA JAMAICA (1965, de Alexander Mackendrick)
49. O MÍSTICO (1948, de Bernard Vorhaus)
50. CREPÚSCULO (1981, de Govindan Aravindan)
51. O DRAMA DE UM SOBREVIVENTE (1959, de Jukichi Uno)
52. O GRITO (1957, de Michelangelo Antonioni)
53. QUANDO O AMOR É CRUEL (1966, de Luigi Comencini)
54. MASSACRE DE CHICAGO (1967, de Roger Corman)
55. HATARI! (1962, de Howard Hawks)
56. O EXÉRCITO DAS SOMBRAS (1969, de Jean-Pierre Melville)
57. O JOVEM TÖRLESS (1966, de Volker Schlöndorff)
58. PERDIDOS NO KALAHARI (1965, de Cy Endfield)
59. O REI DOS MÁGICOS (1958, de Frank Tashlin)
60. ORIGEM DO SEXO (1967, de Kaneto Shindô)

+ DOIS FILMES

A FLOR DO BURITI (Crowrã)

Ter realizadores indígenas fazendo seus próprios filmes com seus olhares é muito importante para que no futuro tenhamos obras cada vez mais representativas de seus sentimentos e pensamentos. Em A FLOR DO BURITI (2023) temos dois realizadores: uma mulher brasileira (Renée Nader Messora ) e um homem português (João Salaviza), mas um indígena é um dos roteiristas (Henrique Ihjãc Krahô), e isso faz a diferença, especialmente quando o filme procura lidar com o dia a dia da vida na tribo Krahô, mas principalmente na narração de uma invasão ocorrida no passado por fazendeiros – infelizmente uma realidade ainda presente. Há alguns momentos que lembram Apichatpong Weerasethakul e talvez sejam os momentos que eu mais gostei, quando o filme se investe de uma aura de mistério, auxiliada pelo poder da floresta e pelo modo como a luz da noite é filmada. O começo do filme chama a atenção também pelo belo cuidado com o som: em determinado momento, tem-se a impressão de que são os próprios espectadores que estão cantando junto com o pajé. Que bom que o filme teve essa premiação em Cannes que chamou mais a atenção para si.

SAMSARA – A JORNADA DA ALMA (Samsara)

Antes de mais nada, SAMSARA – A JORNADA DA ALMA (2023) deveria conter um aviso para quem tem sensibilidade a efeitos de luzes em demasia – meu caso. Até o bad boy Gaspar Noé toma esse cuidado com o espectador, ele que usa esse recurso com frequência. No caso de SAMSARA, o momento das luzes chega próximo a uma sessão de tortura. De todo modo, Los Patiño é um diretor interessante. Gostei muito de LUA VERMELHA (2020). E acredito que este novo filme tem momentos brilhantes, especialmente na segunda parte. Perde quando usa a fala para expressar a profundidade da experiência da vida, mas ganha quando expressa isso com imagens. Adorei a cabritinha e o diretor sabe captar as imagens da natureza pensando numa direção de arte. Uma pena eu ter saído da sessão tão incomodado com a experiência, ao mesmo tempo que guardo a memória dos bons momentos.

sábado, novembro 18, 2023

CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (Chronique d'une Liaison Passagère)



Nesses dias tenho pensado com frequência na cena final de CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (2022), o novo filme de Emmanuel Mouret. O tom agridoce ocasionado pela situação dos personagens tem voltado à minha mente, assim como a abertura para o caminho da felicidade que os últimos segundos deixam no ar. Até falei para a Giselle que, quando vi o filme, lembrei-me de nós dois. Principalmente pelo fato de eu ser o sujeito mais lento e mais tímido, e ela, a pessoa mais disposta aos saltos e mais extrovertida.

Mouret mais uma vez abraça esse personagem que aparentemente é uma espécie de alter-ego do realizador. É um personagem que lembra tanto Woody Allen quanto Charlie Brown, o personagem de Charles M. Schultz. O novo filme pode ser visto como o NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA do diretor francês, pois é contado em cerca de vinte tomadas focadas única e exclusivamente nos encontros entre Charlotte (Sandrine Kiberlain) e Simon (Vincent Macaigne), desde a primeira vez em que se conhecem, através de um aplicativo de relacionamento. Charlotte é uma mulher divorciada e com três filhos crescidos; Simon não tem filhos e é casado.

O fato de nunca vermos a esposa de Simon faz com que não haja no ar um sentimento de culpa, presente noutras obras do cineasta, como ROMANCE À FRANCESA (2015) e AMORES INFIÉIS (2020). A intenção de Charlotte e Simon, pelo menos inicialmente, é manter uma relação centrada mais no prazer que eles podem dar um ao outro. Cada encontro dos dois tem um gosto de um possível último encontro, principalmente por parte de Simon. Com o tempo, essa relação vai cada vez mais se transformando em amor. O problema é que eles não querem admitir isso numa conversa, achando que o sentimento poderia significar o fim do relacionamento. 

Ultimamente Mouret tem evitado protagonizar seus próprios filmes, como fazia nos primeiros trabalhos. A partir de MADEMOISELLE VINGANÇA (2018), o diretor tem optado por outros atores como protagonistas masculinos, trabalhando apenas por trás das câmeras. É até de se admirar que sua parceria com Vincent Macaigne tenha surgido tão tardiamente, já que esse ator tem o tipo perfeito para os papéis de seus filmes, além de ser ótimo quando faz homens desengonçados. No novo filme, ele interpreta o típico personagem mouretiano: tímido e que faz rir justamente por sua insegurança.

Cada cena é um encontro dos dois num formato que lembra vinhetas. Às vezes vemos apenas os carros, com os dois conversando, apenas o som de suas vozes. Às vezes a sequência é mais complexa e mais cheia de rigor, quando eles adentram a casa de uma terceira e importante personagem (Georgia Scalliet). A propósito, como é gostoso comungar com o momento em que Mouret, já tendo ganhado a plateia, faz o cinema inteiro (e lotado) rir a valer desse encontro a três.

CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA talvez seja o filme mais verborrágico do diretor, mas o texto é tão bom que não ouso reclamar. Além do mais, os personagens estão sempre em movimento, nunca estão parados e sentados. Estão na cama, em museus, passeando em bosques, viajando etc. Além do mais, há também a força dos olhares. E isso a Kiberlain, especialmente, faz muitíssimo bem. Em determinado momento, o personagem de Macaigne fala pelos cotovelos, desconfortável e nervoso, enquanto ela cala, olha para ele, manifesta seus sentimentos ainda um tanto misteriosos. O filme é mais um exemplar do rigor formal que o cineasta vem desenvolvendo a cada novo trabalho.

Numa entrevista para o site Cineuropa, foi-lhe perguntado sobre três referências no filme: cartazes de SOB O SIGNO DE CAPRICÓRNIO, de Alfred Hitchcock, e AS DAMAS DO BOIS DE BOLOGNE, de Robert Bresson, e uma cena em que os protagonistas assistem no cinema a CENAS DE UM CASAMENTO, de Ingmar Bergman. O filme do Bergman pareceu de certa forma óbvio de se relacionar. Do Hitchcock, há o uso de apenas planos-sequência por cena. E do Bresson, há o remake, por assim dizer, do filme, pelo realizador, em MADEMOISELLE VINGANÇA. Eu, que acompanho, há algum tempo o cinema de Mouret, gostei de ver na mesma pergunta/resposta uma associação do cineasta com esses três monstros sagrados.

+ DOIS FILMES

DISFARCE DIVINO (Magnificat)

Um filme muito estranho que trafega pelo respeito à fé e ao ofício do sacerdócio, ao mesmo tempo que é transgressor ao aceitar que uma mulher consiga se disfarçar de homem para ser padre, o que, aliás, é também algo muito bizarro (na minha cabeça). Achei que DISFARCE DIVINO (2023), de Virginie Sauveur, não tinha muito a dizer após apresentar a situação logo no início, e de fato demora a ficar interessante de novo. Lá pelo meio, a viagem da protagonista para conversar com um grupo de ciganos ao lado do filho dá aquele respiro necessário e uma esperança que se tornasse mais interessante para mim. Não foi o que aconteceu, mas segue sendo uma obra no mínimo curiosa.

O DESAFIO DE MARGUERITE (Le Théorème de Marguerite)

Filmes que tratam de matemática nem sempre funcionam (não gosto, por exemplo, de O HOMEM QUE VIU O INFINITO). É preciso que a direção esteja atenta àquilo que importa ao espectador leigo, ou seja, à grande maioria das pessoas. Nesse sentido, O DESAFIO DE MARGUERITE (2023), de Anne Novion, esta comédia dramática muito bonita sabe tanto lidar com as questões mais obsessivas da protagonista, quanto apresentar situações muito divertidas e por vezes tocantes dela com outras pessoas, sendo ela alguém muito fechada (o filme não dá diagnóstico algum para a personagem, se não me engano, e até prefiro assim). O final é de encher o coração e Ella Rumpf (presente em RAW, de Julia Docournau) está adorável como a gênio da matemática que, após se dar conta que errou uma fórmula revolucionária, resolve sair do curso e tentar uma vida normal.

quinta-feira, novembro 16, 2023

O EXORCISTA (The Exorcist)



Minha primeira relação com O EXORCISTA (1973) não foi com o filme de William Friedkin, mas na pré-adolescência, quando um amigo da vizinhança me emprestou o romance de 1971 de William Peter Blatty. Fiquei bem impressionado com os diálogos entre o padre e o demônio e com detalhamentos sobre coisas que não aparecem no filme, um texto lido por um personagem da trama, pesquisando sobre missas negras ministradas com hóstias feitas de farinha, fezes, sangue de menstruação e pus. Entre outros detalhes blasfemos e não vistos nem em filmes como OS DEMÔNIOS, de Ken Russell. Se eu, que não sou católico, achei isso chocante, imagine os católicos devotos.

Não me recordo bem da primeira vez que vi o filme de Friedkin. Foi em meu primeiro ano de cinefilia, quando estreou na TV aberta em 1989, no SBT.  Na época a emissora investia bastante em grandes filmes e fazia uma disputa bem saudável e divertida com a Rede Globo. Cheguei a rever no cinema, em 2001, se não me engano, na versão estendida, com cerca de 10 minutos adicionais, e trazendo pelo menos uma cena então famosa por ter sido deletada da versão original, a que Regan (Linda Blair) desce as escadas de costas.

Depois de mais de duas décadas da última vez em que revi o filme, retorno a este clássico do cinema de horror, que, ao contrário do que muita gente pensa ou lembra dele, é uma obra que guarda muita distância de quase todos os títulos que lidam com possessão demoníaca, que foram influenciados por ele. O fato de a direção ser de um expoente da Nova Hollywood faz toda a diferença, dando um ar de estranheza e dureza até para quem está acostumado com o gênero. Há também o aspecto pessimista que impregnava a sociedade americana da época, ajudando a tornar a experiência do filme bem singular. 

O prólogo se passa numa expedição arqueológica que só se liga ao filme próximo de sua conclusão. E há toda a luta da mãe para descobrir o que há de errado com a filha, inicialmente submetendo-a a exames cerebrais com aparelhos que parecem saídos de câmaras de  tortura. Hoje em dia essas cenas causam até mais desconforto que as próprias cenas de exorcismo, que, por conta da maquiagem verde, talvez nos tire um pouco da suspensão da descrença. Não há como negar, porém, a grandeza do filme de Friedkin, de como ele dialoga com sua obra – lembrei-me, por exemplo, de PARCEIROS DA NOITE (1980), visto recentemente por mim por ocasião da morte do cineasta.

Gosto do final misterioso e em aberto de ambos os filmes, de como eles deixam no ar mais dúvidas que certezas. Há também algo que representou um sucesso para as plateias mais rebeldes da época, que foi uma espécie de simpatia pelo demônio, pelo modo como ele perturba os sacerdotes da igreja. Assim, não vejo O EXORCISTA como um filme tão cristão quanto um INVOCAÇÃO DO MAL, por exemplo. Ele é mais complexo, mais contraditório, mais enviesado. Não à toa o filme não foi visto com bons olhos por certos evangelistas, como foi o caso de Billy Graham, que declarou que cada frame do celuloide era maligno.

Essa suposta simpatia pelo mal caia como uma luva com aquele momento de rebeldia da juventude, em que o rock, com frequência, trazia uma aproximação com o satanismo, como uma forma de quebrar paradigmas, de incomodar a sociedade tradicional e de chocar. O próprio filme também tem essa intenção de causar choque. Se bem que o romance de Blatty já era assim, trazendo coisas que se distanciavam do caso real do menino possuído, novidades como a masturbação com o crucifixo, os jatos de vômito verde e as quedas de temperatura dentro do quarto.

Quanto ao clima no set, conta-se que Friedkin tinha o hábito de atirar com uma arma para cima para aumentar as tensões, ou usar música com o som nas alturas, de modo a incomodar a todos. Há também o caso de lesão da coluna de Linda Blair nas cenas em que ela aparece na cama sendo arremessada para frente e para trás pelo demônio, como uma boneca. Quem também teve a coluna lesionada foi Ellen Burstyn, na cena em que ela é arremessada pela adolescente endemoniada. 

No livro Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock’n’Roll Salvou Hollywood, de Peter Biskind, não há quase nada sobre situações delicadas envolvendo Linda Blair, mas é um pouco chocante para quem gosta do artista Friedkin dar de cara com coisas terríveis que ele fazia com as mulheres. Certamente não é um diretor que trabalharia da mesma maneira na Hollywood de hoje. E sobre outras tantas coisas relativas às filmagens tumultuadas de O EXORCISTA, o livro de Biskind também não entrega muito. Até porque é preciso um livro inteiro para dar conta dos fatos e da mitologia que se criou em torno do filme.

+ DOIS FILMES

O EXORCISTA – O DEVOTO (The Exorcist – Believer)

Que horror este filme que se pretende ser uma continuação direta do original de William Friedkin, ignorando as outras continuações. O diretor da nova trilogia HALLOWEEN (2018-21-22) parece não ter entendido nada do filme original, de suas ambiguidades e do modo como se sente a presença do mal, sem precisar se ater a nada muito explícito. Este aqui não consegue nem mesmo ser um genérico filme de possessão. E o que é o papel da Ellen Burstyn, tentando reprisar a atriz de cinema mãe da Regan? Que maldade com a atriz. Há também um monte de frases de autoajuda constrangedoras em O EXORCISTA – O DEVOTO (2023), além de personagens despidos de personalidade. Não faltam também jump scares vagabundos aqui e acolá. Enfim, se David Gordon Green já tinha decepcionado com a trilogia HALLOWEEN, que eu nem acho tão ruins, com este aqui (e terão continuações, vejam só!!) ele entra na lista negra de muitos cinéfilos que têm o mínimo de respeito pela obra clássica de 1973.

CUANDO ACECHA LA MALDAD

A primeira metade de CUANDO ACECHA LA MALDAD (2023) é tão boa que é difícil não ficar empolgado com o suspense, a velocidade dos acontecimentos, as imagens gráficas feitas para grudar no subconsciente, a mitologia nova que Demián Rugna cria. É como uma variação dos filmes de zumbis, mas com o mal sendo destacado. Mais ou menos como em EVIL DEAD, mas com um tom mais dramático e mais apocalíptico. A trama acontece numa área rural da Argentina, e dois irmãos ficam sabendo que uma pessoa do povoado está infectada por um demônio. Vendo como única possibilidade de livrar a vila daquele demônio o transporte daquele corpo infectado ainda com vida, os dois acabam enfrentando o mal em outros momentos. Acho que o filme perde um pouco a força quando há um aumento do número de personagens e um crescimento considerável das regras para combater ou se desviar desse mal. Acharia fantástico poder ver esse filme no cinema. Ainda não sei se o discreto burburinho entre os cinéfilos fará isso acontecer.