domingo, janeiro 31, 2021

THE BOYS - PRIMEIRA TEMPORADA (The Boys - Season One)



Os dias andam nebulosos. Não sabemos mais uma vez do nosso futuro com esse novo aumento dos casos e dos óbitos por conta da Covid. Em casa, minhas crises alérgicas voltaram com força e foram um dos motivos de eu ter escrito tão pouco neste espaço neste início de ano. Tenho visto poucas séries, mas, vendo a primeira temporada de THE BOYS (2019), eu percebi que elas (as séries) têm uma capacidade de fazer com que esqueçamos dos problemas pessoais de maneira mais eficiente que os filmes. Talvez porque elas prolonguem nossa relação com o universo fictício e com os personagens. O que não quer dizer que seja puro escapismo.

THE BOYS, por exemplo, não teria a mesma força se não fosse feita durante a era Trump. Especialmente quando vemos o episódio “Good for the Soul”, em que somos levados a uma espécie de show gospel de supers que traz um discurso muito característico da ala trumpista, aliando religião, autoajuda estilo coach e autoritarismo. É neste episódio que Annie January, a Starlight, denuncia a imoralidade e o assédio sexual sofrido logo que entrou nos Sete, o maior grupo de super-heróis do planeta.

Logo no primeiro episódio, “The Name of the Game”, conhecemos o caráter bem pouco amável dos membros do grupo. Hughie Campbell (Jack Quaid) vê sua namorada transformada em pasta de sangue e carne quando é atropelada pelo A-Train (Jessie T. Usher), o homem mais rápido do mundo. Enquanto isso também vamos tendo consciência do alto grau de periculosidade do Superman deles, o Homelander (Antony Starr). Sua maldade não tem limites, assim como seu poder parece não ter meios de ser combatido.

Ainda assim, vingar-se de Homelander é a razão de viver de Billy Butcher (Karl Urban), que teve sua namorada estuprada pelo homem mais poderoso do mundo e agora se dedica a liderar um grupo secreto no combate a esses super-heróis que mais causam danos do que ajudam a humanidade, como quer levar a crer o marketing pesado para fazer desses seres celebridades idolatradas.

E Billy convida Hughie a se juntar ao grupo. Levado pelo ódio e pela tristeza, Hughie aos poucos vai se adequando àquela rotina (ou falta de rotina) que é tentar enfrentar os “sups” sem dispor de super-poderes. A não ser quando entra no grupo uma jovem e selvagem asiática. Quem acaba sendo uma aliada também é Annie, a novata nos Sete, mas com motivos de sobra para não gostar do grupo nem da manipulação que sofreu da própria mãe para se transformar em super-heroína e celebridade. Eu diria que Annie é, de longe, a personagem mais adorável da série, pela beleza interior e exterior, pela doçura e por acreditar em causas nobres.

Havia lido os dois primeiros volumes dos quadrinhos de Garth Ennis e Darick Robertson e admiro o quanto os criadores, diretores e roteiristas da série souberam transformar uma obra cheia de exageros e choque fácil em algo de dimensões mais profundas, dramáticas e com personagens mais fáceis de serem apreciados. Tanto os heróis (ou anti-heróis) quanto os “sups”, que na verdade são os vilões. Ainda assim, muito do espírito dos quadrinhos de Ennis (não apenas The Boys) está presente na série.

Achei o último episódio, “You Found Me”, extremamente saboroso e cheio de tensão e empolgação. Ótima a cena de Hughie tentando resgatar seus companheiros capturados; ótima a cena de Butcher tentando acertar o ponto fraco de Homelander; ótimo o gancho. E que bom que a segunda temporada já está disponível.

segunda-feira, janeiro 25, 2021

LILIAM, A SUJA



Tem sido muito interessante acompanhar alguns filmes de horror brasileiros - ou filmes que tangenciam o gênero. LILIAM, A SUJA (1981), de Antonio Meliande, foi um dos que mais me deu prazer de ver. Até porque a cópia disponível está bem melhor do que a de muitos filmes só encontrados em cópias lastimáveis ripados de uma cópia já ruim de VHS ou da televisão. Isso quando é possível. Cinema brasileiro é para os fortes. E este LILIAM, A SUJA, até por ter sido dirigido por um especialista em direção de fotografia (um dos melhores, diga-se de passagem), tem um cuidado maior com a imagem.

O próprio título do filme (em carácteres parecidos com os de THE ROCKY HORROR PICTURE SHOW) já antecipa o banho de sangue que surgirá ao longo da trajetória da anti-heroína vivida por Lia Furlin, atriz de poucos filmes no currículo e muito poucos em que é protagonista. Liliam carrega um trauma gerado pelas lembranças da violência que sua mãe sofreu de seu falecido pai. Ela trabalha de secretária e é assediada com frequência pelo chefe (Luiz Carlos Braga) e com frequência transa com ele em pleno escritório, em horário comercial.

O filme não mostra um gatilho ou uma vontade de decisão de Liliam em fazer carreira de predadora de homens na noite paulistana. Por isso, quando a vemos com sua primeira vítima, um sujeito que a vê num bar sozinha e pede para se sentar junto a ela, chega a ser quase uma surpresa o que acontece logo em seguida, quando os dois vão a um motel. Liliam, uma vez que mata a vítima, depois do sexo, deixa marcado seu nome e uma flor.

Em paralelo à história da protagonista, que também mantém um interessante diálogo como a mãe idosa, vamos acompanhando um grupo de bandidos pés-de-chinelo que chegam a se mostrar bastante malvados, a ponto de matar um sujeito e estuprar sua namorada virgem. A cena é até bastante gráfica. Começo dos anos 1980, essa liberdade formal e um afrouxamento por parte da censura transparecia nas obras do período. Hoje certamente essa cena não seria feita do jeito que foi.

De todo modo, detalhar esta cena com tal crueldade ajuda a fazer com que o desejo de vingança de Liliam contra os homens encontre uma razão de ser ainda mais compreensível, muito antes de a narrativa detalhar seus traumas de infância, inclusive. Mas há algo também curioso no modo como a personagem parece encontrar prazer no sexo e também nas preliminares, ao ver a expressão de desejo de suas vitimais.

Dentro do que os fãs e especialistas gostam de filmes exploitation, LILIAM, A SUJA é tão bom quanto qualquer outro exemplar de destaque produzido fora do Brasil. Da mesma forma, a inclusão dentro da categoria filme de horror também se justifica pelas cenas de pesadelo que o filme traz, que adicionam algo de sobrenatural à trama de crime. Eis um filme que quanto mais eu lembro, mais ele cresce em minha memória afetiva.

domingo, janeiro 24, 2021

MADEMOISELLE VINGANÇA (Mademoiselle de Joncquières)



A semana não foi fácil, por uma série de situações no mínimo chatas que ocorreram e que acabaram por aumentar ainda mais o bloqueio de escrita, que já era algo que eu estava sofrendo por motivos distintos, especialmente pelo velho problema da laringite alérgica. Assim, estou me forçando a escrever esta postagem e espero que resulte em algo no mínimo decente. Se não resultar, fica pelo menos registrado o momento e também o apreço que tenho pelo filme em questão e por seu realizador.

Já faz uns meses que ando procurando ver as obras que faltam de Emmanuel Mouret. Este MADEMOISELLE VINGANÇA (2018) é com certeza o de mais fácil acesso ao público geral, por estar disponível na Netflix. Faz parte de um processo de transição do cineasta que já se antecipava no anterior ROMANCE À FRANCESA (2015), uma comédia com toques dramáticos e sabor amargo. (Não vi ainda UM NOVO DUETO (2013), mas está nos meus planos para breve.)

Ao contrário de todos os outros filmes de Mouret, MADEMOISELLE VINGANÇA não vem de um roteiro original do realizador; é adaptado do romance Jacques, O Fatalista e Seu Mestre (1773), de Denis Diderot, mesmo romance que havia sido inspiração para AS DAMAS DO BOIS DE BOULOGNE, de Robert Bresson. Pelo que li de Diderot, trata-se de um filósofo que nunca deixou de lado a filosofia em seus romances e peças. E as questões morais são os aspectos mais importantes nesta adaptação feita por Mouret.

Na trama, Cécile de France (UM BELO VERÃO) é uma viúva da aristocracia, a Madame de la Pommeraye, que passa a se interessar romanticamente pelo Marquês de Arcis (Edouard Baer), um sujeito que tem mesmo a intenção de conquistar o coração da bela viúva através de galanteios e demonstrações de inteligência e sensibilidade. A Madame não demora a se apaixonar por ele e logo eles iniciam um relacionamento estável. Um relacionamento, porém, que começa a esfriar rapidamente.

Ela passa a suspeitar que o marquês não mais a ama (teria ele uma amante?) e faz um jogo arriscado, ao dizer que não nutre mais os mesmos sentimentos por ele, de modo a esperar alguma reação de contrariedade da parte do homem. Em vez disso, ele fica bastante tranquilo com essa declaração e diz que sente o mesmo e que ia adorar ser para sempre um amigo da madame. Ela, por sua vez, disfarça o desapontamento e sente um ódio intenso por ele a ponto de querer uma vingança bem cruel.

A vingança se dá pela via do coração, ao montar um esquema de apresentação de uma jovem pobre que aceita atuar no jogo de sedução para fisgar o marquês. A tal jovem, a Mademoiselle de Joncquières do título, vivida por Alice Isaaz (DOCE VENENO), tem um histórico que poderia envergonhar a aristocracia francesa, já que ela foi prostituta, mas interpreta o papel de uma virgem recatada para o marquês. O homem fica obcecado pela jovem logo da primeira vez que a vê, e pede ajuda à "amiga" madame, que mexe os pauzinhos à sua maneira.

Gosto ainda mais do último ato do filme, da revelação final e também de quando Mademoiselle de Joncquières passa a ganhar uma maior profundidade e força na trama, tornando-se mais interessante e também digna de nossa empatia.

Com este conto moral, Mouret se aproxima mais uma vez de Éric Rohmer. O humor é bem mais sutil e está principalmente nos diálogos afiados da rede de intrigas e artimanhas. O filme tem um visual deslumbrante, de encher os olhos, principalmente quando destaca a natureza. Mas sua força está na humanidade de seus personagens, algo comum e característico da poética do cineasta, que aqui se arrisca em fugir um pouco de seu caminho tradicional. Felizmente, foi uma fuga muito bem-vinda.

Agradecimentos à Paula pela ótima companhia durante a sessão.

segunda-feira, janeiro 18, 2021

15 CURTAS BRASILEIROS



Como venho assistindo vários curtas-metragens ultimamente, vou deixar aqui alguns breves comentários sobre os últimos vistos.

A MORTE BRANCA DO FEITICEIRO NEGRO

A questão da inclusão do negro na sociedade brasileira que remonta à escravatura aparece com força e tristeza nas imagens e nas palavras de uma carta de suicídio de uma jovem escravo, um testamento em forma de lamento, como dizem. Como A MORTE BRANCA DO FEITICEIRO NEGRO (2020), de Rodrigo Ribeiro, destaca o banzo desde o início, então há a dor terrível do deslocamento de sua terra para um lugar de sofrimento e imposição de outro tipo de cultura nas palavras do rapaz. Há uma trilha sonora lindamente fantasmagórica que se junta às palavras de Timóteo e às fotografias escolhidas pelo diretor para ilustrar o registro e o sentimento que vem dele.

MOVIMENTO

Uma pequena pérola este MOVIMENTO (2020), rodado no período de quarentena em esquema caseiro por Gabriel Martins, um dos diretores mais talentosos da nova cena mineira. Muito bonito ver os cuidados com o bebê dentro da casa, enquanto o clima de hostilidade se intensifica do lado de fora, seja por causa da pandemia, seja por notícias sobre ataques de racismo intenso no Brasil. E o que é aquela sucessão de imagens de pessoas negras das mais diferentes idades dançando em vídeos da internet? Ter a sensibilidade de filmar e também de coletar e montar essas cenas para o pequeno curta de 10 minutos é um feito e tanto.

MINHA HISTÓRIA É OUTRA

Bonito filme este MINHA HISTÓRIA É OUTRA (2019), de Mariana Campos, sobre o quanto ainda é preciso avançar para que mulheres negras e lésbicas possam ter não apenas um espaço de se sentirem parte da sociedade, e não à margem, mas também com chances reais de serem aceitas também dentro do mercado de trabalho. Esse segundo aspecto é citado em uma conversa afável entre duas amigas enquanto elas pintam seus cabelos. Depois somos convidados a participar de um papo educativo (no melhor sentido do termo), com outras personagens, sobre questões relativas a demonstrações de afeto em público e inserção política. A diretora dá um belo destaque também ao visual do filme, que se relaciona muito bem com o grau de afetividade e carinho que tomam conta da tela.

NÃO TE AMO MAIS

Começa parecendo uma carta endereçada a uma pessoa, mas aos poucos vamos vendo que o tema aqui é outro: a relação que nordestinos (cearenses, piauienses) têm com a cidade. De início, um apaixonar-se. Eu mesmo ainda sou apaixonado e sei o que é isso. Mas como nunca trabalhei e não passei as duras provações de morar de fato lá, não tive esse processo de desencanto. Porém, como se pode ouvir dos relatos dos quatro personagens (por assim dizer), eles se sentem sim muito gratos com o tanto que a cidade os fez crescer e aprender a viver. NÃO TE AMO MAIS (2020), de Yasmin Gomes, faz questão de mostrar as diferenças culturais nordestinas de formas quase dissonantes com o aspecto mais cosmopolita da megalópole.

ADEUS

Mais um exemplo de que o cinema brasileiro é uma caixinha de surpresas esta animação bastante sofisticada em um momento difícil para as animações, por maiores obstáculos técnicos. É impressionante o quanto ADEUS (1988), de Céu D'Ellia, gera sentimentos dos mais diversos. Uma das vantagens da animação é justamente ter essa liberdade praticamente sem limites de experimentar e de lidar tanto com a materialidade quanto com as abstrações. A trilha sonora ajuda a compor o tom de estranheza e certa perturbação. Quanto à história, não me arrisco a dizer.

ANTONIO MELIANDE - PAU PRA TODA OBRA

Delícia de documentário que presta tributo ao trabalho de Antonio Meliande, principalmente como diretor de fotografia. Afinal, ele até hoje é considerado um dos melhores do Brasil de todos os tempos. Era o cara que trabalhava com o Khouri, cineasta-lenda. Senti falta de mais considerações sobre os filmes dele como cineasta, mas imagino que o foco era mesmo seu papel como mestre da fotografia e da luz. E em ANTONIO MELIANDE - PAU PRA TODA OBRA (2011), de Daniel Camargo, temos vários intérpretes, cineastas e o especialista Fábio Vellozo tecendo considerações sobre ele. Ver trechos desses vários filmes ajuda a aquecer o coração, relembrar essa quantidade imensa de obras maravilhosas que ele esteve envolvido. Entre as pessoas entrevistadas, há Monique Lafond, Lúcia Veríssimo, Antônio Fagundes, Guilherme de Almeida Prado, Vera Zimmermann, Aldine Müller, Paulo Thiago, Ícaro Martins, entre outros.

NÁUFRAGOS

Admiro o trabalho de Gabriela Amaral Almeida desde que vi A MÃO QUE AFAGA (2012) no Festival de Gramado. E que bom que é uma cineasta sensível que adentra com vontade o território do cinema de horror. Ainda acho que sua obra-prima é o aterrorizante curta ESTÁTUA! (2017), mas esta sua estreia na direção (em parceria com Matheus Rocha) é também uma beleza. Na verdade, NÁUFRAGOS (2011) é mais melancólico do que assustador, ao tratar do tema da solidão na velhice. A própria imagem da velhinha vendo um vídeo de pessoas jovens fazendo ginástica aeróbica em uma televisão velha já é simbólica. E o caminho do simbolismo fica ainda mais forte com a cena do marido debaixo da cama e o sentimento de incomunicabilidade na conversa com a moça que chega para fazer a faxina e o almoço. O final é bonito, comovente.

CONSTRUÇÃO

Mais um filme da leva de obras que utilizam o registro documental para construir algo próximo da ficção, e flagrar momentos de espontaneidade. Em CONSTRUÇÃO (2020), de Leonardo da Rosa, acompanhamos o drama de uma mulher e seus três filhos que são despejados de sua casa e voltam para uma comunidade, a fim de construir uma nova casa, praticamente do zero. Aos poucos vamos tendo algumas informações sobre os motivos da situação da personagem, a violência doméstica que sofreu. O momento mais simbólico e bonito é do filho pequeno dizendo que quer ser policial para proteger a mãe, para estar sempre por perto.

EGUM

A tendência atual de usar o gênero horror para tratar de questões raciais tem dado muito certo no cinema americano. No Brasil também estamos vendo esse fenômeno tomar cada vez mais forma. "Egum" é provavelmente um dos melhores dessa linha. EGUM (2020), de Yuri Costa, é perturbador desde o primeiro ato, quando o protagonista, um jovem que retorna à sua casa depois de muito tempo distante, vê todos lá perturbados das mais diversas maneiras. A única pessoa sã e relativamente calma parece ser sua avó, que sabe que os eguns não são necessariamente maus, mas espíritos que também sofrem. Ou seja, se os negros têm um histórico de escravidão, genocídio e humilhação que remonta há séculos, é de se imaginar a quantidade de espíritos perturbados perambulando. Dentro da casa, eu fiquei particularmente incomodado com a presença do pai alcoólatra. Por razões pessoais. Muito interessante também, e igualmente perturbadora, a presença do casal de brancos.

O FUTURO É UM VAZIO

Não é um filme fácil este O FUTURO É UM VAZIO (2020), de Wesley Pereira de Castro, e, por mais que seja muito pessoal, expressa as angústias de muitos durante o período pandêmico, quando o aparelho celular parecia o nosso grande parceiro. Há um trecho do filme de Wesley com que eu me identifiquei: quando ele diz que vai tomar um banho, para se sentir melhor. Eu faço isso o tempo todo, várias vezes ao dia. E não é só por causa do calor. Há várias cenas que simulam tentativas de suicídio, outras em que o personagem (ele diz que virou um personagem) claramente se expressa de maneira teatral, como em tragédias. Há passagens de pura poesia do cotidiano, como a cena da chuva, ou a do cachorro feliz. Quanto ao futuro ser um vazio, é a tal coisa: um futuro sem nada escrito também pode ser algo positivo. O fato de sabermos ou não como lidar com esse "um dia de cada vez" é que faz a diferença.

ENTRE NÓS E O MUNDO

Muito bonito poder ter a possibilidade de homenagear uma pessoa querida através de um curta, e expressando mais a vida do que a morte. A partir da morte de um garoto pela polícia, o diretor junta trechos de imagens com trechos de áudio a uma dramatização documental e ficcional. Essa mistura de linguagens é uma tendência do momento, tanto dos curtas quanto dos longas, mas mesmo assim eu demoro a me acostumar. É um tipo de filme que é bastante devedor da montagem para que funcione. E começar e terminar o filme é algo que foi feliz em ENTRE NÓS E O MUNDO (2019), de Fábio Rodrigo. No começo, vemos um pequeno grupo de garotos cantando sobre as dificuldades de saírem da vida na favela; enquanto que ao final vemos uma imagem bonita de exteriores, sinalizando uma relação positiva com a vida.

FILME DE DOMINGO

Mais um exemplar do cinema de afeto e também de um cinema que nos aproxima da vida de uma família humilde, em Capão Redondo, periferia de São Paulo, ainda que desta vez uma família bem estruturada e feliz. Em FILME DE DOMINGO (2020), Lincoln Péricles, há a figura do tio que carrega uma sabedoria sobre a vida, sobre a espiritualidade, sobre a necessidade de estudar para conquistar a felicidade. O diretor consegue tanto uma espontaneidade nas cenas do cotidiano (gosto de quando o trio sai para comer pastel), quanto uma fluidez narrativa admirável: a meia hora de duração passa rápido.

O JARDIM FANTÁSTICO

Fábio Baldo (em parceria com Tico Dias neste filme) retorna à temática indígena, depois do ótimo longa de estreia ANTES O TEMPO NÃO ACABAVA (2016). No curta O JARDIM FANTÁSTICO (2020), temos uma professora indígena que usa Ayahuasca em suas aulas com crianças de modo a conectá-las com outra realidade. O menino Luiz Felipe Jesus tem uma presença de cena admirável e o filme tem um clima de mistério muito envolvente, além de trazer algumas imagens que ficam presas na memória, como a cena do abraço, as crianças sussurrando na escola ou o questionário com cartas (de tarô?) com a professora na floresta. Muitas questões podem ficar no ar, o que é bom.

CHÃO DE RUA

Delicado trabalho que lida com dificuldades nas relações familiares e conjugais derivadas principalmente de certo sentimento de insegurança, levando em consideração o personagem principal, do pai-marido, vivido por Santos Chagas. A força de CHÃO DE RUA (2019), de Tomás von der Osten está nos pequenos gestos, mas também no uso da luz e da sombra, como no efeito que vemos do rosto da esposa ao ver a tatuagem. Belo também o plano da lua, ao som de uma canção popular.

CINEMA CONTEMPORÂNEO

Curioso eu ter visto a tal foto, ainda que com os rostos riscados, só depois de ver o curta CINEMA CONTEMPORÂNEO (2019), de Felipe André Silva. O tema do abuso sexual no ambiente familiar já é por si só bastante pesado. Ao não dar nomes aos bois embora não querendo sair da posição de vítima, pois de fato ele continua sendo, o autor encontra uma maneira muito interessante de falar sobre essa questão. Mostrar aproximações da foto não destaca os culpados, mas passa um sentimento de mal estar que a foto provoca em quem foi o mais prejudicado. E há a boa narração e o dolorido texto.

domingo, janeiro 17, 2021

SHOCK - DIVERSÃO DIABÓLICA



Ultimamente venho assistindo a alguns exemplares do cinema fantástico brasileiro. Como eu tenho um especial carinho pelo cinema de horror, são esses filmes os que mais me interessam. SHOCK - DIVERSÃO DIABÓLICA (1984), se não é um exemplar perfeito, é muitíssimo interessante, não apenas pela curiosidade de ser o primeiro slasher brasileiro (ou assim é considerado), mas por ser bastante inventivo na construção do clima a partir de uma proposta narrativa muito simples.

Antes de mais nada, quero dizer que não sou nenhum especialista em slashers. Só no ano passado que resolvi começar a ver a série Halloween e vi alguns da série SEXTA-FEIRA 13 também na televisão. No blog, é possível também encontrar textos sobre NOITE DO TERROR, THE TOOLBOX MURDERS e outros filmes que não são do ciclo oficial de slashers, mas que já fazem parte de uma releitura para os novos tempos, como A MORTE TE DÁ PARABÉNS ou o brasileiro A NOITE AMARELA.

O curioso dessa coisa de considerar SHOCK o primeiro slasher nacional é que o diretor Jair Correia afirmou que nunca havia visto nenhum filme do subgênero e que quando viu odiou. Talvez ele tenha visto os precursores dos slashers, os gialli, os filmes de suspense italianos que também contam com assassinos misteriosos. No caso de SHOCK o assassino é tão misterioso que a única coisa que vemos dele são suas botas. Uma coisa que diferencia este dos exemplares convencionais está na ausência de sangue. Há quem atribua isso a uma espécie de protesto à ditadura. Afinal, tanto sangue de verdade já havia rolado nos porões dos torturadores.

O espírito dos anos 1980 está presente de forma explícita desde o início, quando vemos uma banda de rock tocando naquela casa com jovens animados. O som da banda não me pareceu tão bom, mas emulava um pouco o rock que se formava naquela década e que estava começando a explodir. Ao final do show, alguns membros da banda com suas namoradas resolvem passar a noite no local, assim como outros também. Não foi uma boa ideia, pois o assassino começou a matar alguns deles.

O curioso é que em muitos slashers americanos o assassino costuma dar preferência àqueles que gostam de sexo. Em SHOCK é um pouco diferente. Aqui temos a personagem de Mayara Magri, que é uma garota que tem problemas com o sexo, dificuldade em se sentir à vontade em transar com o namorado (Taumaturgo Ferreira), e ela é uma das primeiras vítimas do maníaco. O que é uma pena, pois ela é a personagem mais interessante. De atrizes famosas, SHOCK ainda conta com Cláudia Alencar e Aldine Müller.

Acredito que o filme tenha ficado mais charmoso hoje do que na época em que foi realizado. Com o distanciamento podemos perceber tanto as influências diretas dos slashers americanos quanto a brasilidade, o orçamento pequeno e o carisma de nossos atores e atrizes. Uma pena que é mais um exemplar de filme que só é possível acessar em uma cópia ruim, ripada de um VHS, com imagem escura e de resolução baixa. Bom, pelo menos é possível acessar este. Existem tantos filmes que nem assim é possível ver.

sábado, janeiro 16, 2021

PIECES OF A WOMAN



Como me julgo uma pessoa mais emocional do que racional, tenho um especial apreço por filmes que me tragam fortes emoções. E ultimamente andei tendo uma crise de identidade ao não me emocionar como gostaria com certos filmes mais sutis. E aí eu vejo PIECES OF A WOMAN (2020), o novo e premiado filme do cineasta húngaro Kornél Mundrunczó, e vi que era do que eu estava precisando. Desconheço a maioria das obras dele, mas vi e gostei muito de WHITE GOD (2014) e não gostei e tenho pouca lembrança de LUA DE JÚPITER (2017).

PIECES OF A WOMAN é diferente dos outros dois. O cineasta estava disposto a fazer algo mais humano e sem os efeitos especiais tão visíveis nos filmes anteriores. O ideal é assistir ao filme sem saber nada a respeito, mas as próprias sinopses que circulam por aí já falam das complicações do parto e do sentimento de luto da protagonista. Ainda assim, creio que mesmo já se sabendo da trágico meia hora inicial do filme, mesmo assim é difícil não ficar aflito, não torcer para o sucesso e pela vinda com saúde do bebê.

E quando acabou a meia hora inicial, eu, de queixo caído e arrepiado, já sabia que o filme de Mundrunczó tinha me ganhado. E de fato as cenas seguintes não são melhores e nem mais impactantes, o que é completamente compreensível. É comparável ao que aconteceu com O RESGATE DO SOLDADO RYAN, de Steven Spielberg, nesse sentido. O que não quer dizer que o desenvolvimento da obra não seja também admirável.

Muito do mérito de PIECES OF A WOMAN está no desempenho de Vanessa Kirby, uma atriz que até então não vinha chamado tanto a atenção para seus dotes dramatúrgicos. Talvez seja mais lembrada por quem acompanha a série THE CROWN, onde ela fez a Princesa Margaret jovem. A premiação da atriz no Festival de Veneza e uma bem possível indicação ao Oscar trazem holofotes fortes para ela.

No filme, ela interpreta uma mulher de família rica, casada com um sujeito pobre (Shia LaBeouf). No começo do filme vemos um pouco da rotina de trabalho dela e dele, assim como uma questão envolvendo um carro comprado pela sogra (Ellen Burstyn), explicitando desde então a diferença de classes. Em seguida, somos levados ao plano-sequência de 23 minutos do parto domiciliar, ao drama do casal antes e durante o procedimento.

O bonito de tudo é que o cineasta húngaro apela mais para a emoção e menos para a exploração dos corpos, para e o sangue envolvido, para o voyeurismo. A câmera se interessa mais pela expressão facial das três pessoas presentes em diferentes lugares da casa durante a situação. E Vanessa Kirby é impressionante no quanto altera sentimentos de dor, breve alegria e desespero em diferentes momentos.

Passada a meia hora inicial e uma vez já conquistado o respeito, o filme tem a tarefa então de mostrar os personagens juntando os cacos de suas vidas depois do ocorrido. Corre em paralelo o processo contra a parteira, alegando irresponsabilidade, assim como os preparatórios para o funeral da criança e a busca dos motivos da morte. Enquanto isso, o personagem de LaBeouf tenta trazer de volta o prazer do casamento, tentando, em vão, buscar sexo com a companheira. Há também uma excelente cena com a família reunida. 

PIECES OF A WOMAN é dessas obras que nos fazem ter aquele sentimento paradoxal de gratidão por ter nos feito sofrer.

terça-feira, janeiro 12, 2021

O INSETO DO AMOR



Estou passando por uns problemas de ansiedade nesses dias e isso tem atrapalhado e muito minha concentração. Espero que seja algo passageiro, que eu consiga me organizar melhor esses dias, pois a sensação que dá é bem ruim. Como eu gosto muito de atualizar este blog, fico triste quando passam-se vários dias e não escrevo nada para o espaço. E até que tenho visto bastante coisa nessas férias. E o filme que escolhi para falar a respeito hoje nem foi o melhor visto recentemente, mas o que mais me deu vontade de escrever sobre.

O INSETO DO AMOR (1980), de Fauzi Mansur, foi uma ótima surpresa vista na semana passada. Não imaginei que fosse tão divertido e também tão tesudo no quesito erotismo. Ou seja, é um filme que pode ser categorizado como uma pornochanchada sem problema nenhum. E é também um exemplar típico do filme erótico do início dos anos 1980, quando começou a haver um movimento para um maior grafismo nas cenas de nudez e sexo. Na verdade, foi uma evolução natural do que já vinha acontecendo nas duas décadas anteriores.

Para alguns diretores isso significou um tipo de decadência, outros já conseguiram surfar na onda sem problema nenhum. Walter Hugo Khouri é um exemplo. Já Fauzi talvez tenha caído, já que suas melhores obras talvez estejam nos anos 1970, casos de A NOITE DO DESEJO (1973) e de SEDUÇÃO (1974) - este segundo eu não vi, mas é bastante celebrado entre vários amigos cinéfilos.

Mansur foi um cineasta que não se importou em adentrar de cabeça no território do sexo, a ponto de ir para o sexo explícito (usando pseudônimos) quando o subgênero tomou conta da Boca do Lixo. Ele também chegou a experimentar o gênero terror com intenções de exportação, nos anos 1980 e 90, com filmes como KARMA - ENIGMA DO MEDO (1984), ATRAÇÃO SATÂNICA (1989) e RITUAL MACABRO (1990).

Quanto a O INSETO DO AMOR, sua história começa com um cientista (Carlos Kurt, bastante conhecido dos filmes e do programa dos Trapalhões) descobrindo na Amazônia uma espécie rara de mosquito que, quando pica a pessoa, faz com que ela sinta a necessidade urgente de transar com alguém o mais rápido possível. Detalhe 1: a pessoa não pode se aliviar sozinha. Detalhe 2: se ela não resolver o problema em um intervalo de duas horas, ela morrerá do coração.

Na época ainda não havia remédios como Viagra e similares. Portanto, quando a notícia de que o cientista estava trazendo esses insetos para a ilha se espalhou, muitos quiseram aproveitar a chance. Havia um homem com problemas de ereção que trouxe a companheira, mas havia também aqueles que não necessariamente precisavam de um remédio, mas que queriam dar um gás na libido e na performance.

Quanto às atrizes de O INSETO DO AMOR, é uma alegria só. Principalmente Helena Ramos e Angelina Muniz, ainda que haja sim outras beldades em cenas memoráveis. Mas destaquemos essas duas, que considero as principais.

Helena Ramos está adorável e com um timing cômico maravilhoso. A expressão de seu rosto quando, depois de ficar nua para o marido (John Herbert), o sujeito resolve negar fogo e ir embora, é impagável. Ela olha para a câmera, quebrando a quarta parede, como um personagem de um desenho da Warner. Sua personagem fica querendo muito o marido (John Herbert), mas o cara era tão desligado que nem parecia se importar com a notícia envolvendo o mosquito.

Já Angelina Muniz está muito à vontade com o papel - talvez tenha sido um ensaio para que ela se sentisse tão capaz de deixar os homens de queixo caído em dois filmes brilhantes que ela faria com Jean Garrett, KARINA, OBJETO DO PRAZER (1982) e TCHAU, AMOR (1982), isso, enquanto fazia sucesso nas telenovelas da Rede Globo. Ela interpreta uma repórter que disputa um furo de notícia com o personagem de Arlindo Barreto. Inclusive, há uma cena que parece saída de fantasia sexual, em que ela faz com que o sujeito fique sem as roupas no meio da praia.

As piadas envolvendo sexo sem consentimento hoje fariam muito barulho, mas o registro aqui é de comédia típica dos anos 1970/80, de certa forma bastante ingênuas, já que lidam com gags e se passam em um universo fantasioso, parecido com o de animações, apresentações circenses de bairro ou piadas vulgares. Por isso, problematizar um filme como esses pode ser bobagem.

Filmes como esse, e outros trabalhos de Fauzi Mansur, são como se os impulsos do id não fossem regulados pelo ego e do superego. Ou seja, não deixa de ser um baita estudo sobre as taras e os desejos mais íntimos e proibidos das pessoas, ainda que neste filme em si sejam apresentados de maneira muito mais leve do que, por exemplo, o polêmico PROMISCUIDADE - OS PIVETES DE KÁTIA (1984), que vai muito longe, especialmente para os padrões de hoje. Na época da realização desse filme não havia essa consciência de que certas ações podem ser prejudiciais para crianças se realizadas muito cedo em suas vidas.

É uma pena que existam poucas críticas sobre O INSETO DO AMOR na internet. Procurei por críticas e por entrevistas de Mansur a respeito, mas a fortuna crítica sobre o filme é muito pequena. Pode ser que tenha a ver com o fato de não ser uma obra de importância tão grande do ponto de vista político, de ser uma diversão bem escapista, ainda que possa ser estudado como um documento da época, do comportamento de uma sociedade cheia de energia sexual para dar e vender.

quarta-feira, janeiro 06, 2021

LET HIM GO



Uma das melhores surpresas do fim de ano foi este neo-western estrelado pelo casal de veteranos mais bonito de Hollywood, Kevin Costner e Diane Lane, que, não por acaso, interpretaram os pais do Superman. Ou seja, é como se já houvesse algo de muito especial no casal, como se a química já fosse perfeita. E isso se manifesta em muitos momentos de LET HIM GO (2020), os momentos de carinho entre os dois, de busca de compreensão dos afetos e necessidades do outro, e também da dor da perda.

O interessante é que o diretor, Thomas Bezucha, tem um currículo bem modesto. Seu filme mais famoso é a comédia dramática TUDO EM FAMÍLIA (2005), e isso já faz um bom tempo. Seu filme seguinte foi outra comédia sobre família, MONTE CARLO (2011), que eu não vi. Então, se há algo em comum entre LET HIM GO e os outros filmes feitos por ele é justamente a questão familiar. Que aqui fala muito forte.

Cheio de momentos tensos e intensos, LET HIM GO, tem todo o jeito, a estrutura, a terra sem lei, a violência, a disputa na bala, as grandes paisagens da América profunda que os grandes westerns americanos carregam em seu DNA. Até um personagem índio o filme tem. Aliás, tanto a presença do jovem índio quanto a busca pelo neto lembram um pouco RASTROS DE ÓDIO, de John Ford.

Na trama, Lane e Costner são um casal que partem em busca de sua ex-nora e seu netinho. Depois da morte do filho, a jovem mulher casa novamente com um sujeito com toda a pinta de ser bem agressivo. A matriarca fica preocupada quando o jovem casal simplesmente desaparece e vai embora sem deixar recado. Ela, então, convence o marido a seguir os rastros e quem sabe até trazer o neto de volta. Essa relação bem feminina com a maternidade é algo de destaque no filme, ainda que seja um elemento que se misture com a violência e o suspense que surgem com muita força.  

Um dos maiores presentes de de LET HIM GO é ter Lesley Manville como a matriarca da família que o casal visita nos Dakotas. Se a atriz já havia deixado muita gente impressionada com sua performance em TRAMA FANTAMA, aqui ela parece receber o espírito de grandes atrizes da Velha Hollywood que ganharam fama por interpretarem mulheres más, como Bette Davis e Joan Crawford. Pareceu-me muito explícita a homenagem. E olha que ela é uma inglesa interpretando uma caipira americana. Que grande antagonista ela faz.

Há várias cenas memoráveis, intoxicantes e arrepiantes. Talvez a cena do embate no motel seja uma das mais pesadas e intensas. Antes disso há uma cena de jantar (ou quase jantar) que é bem perturbadora, capaz de mexer com o espectador de maneira física mesmo. E por mais que não seja uma obra original em sua estrutura, bastante clássica, isso não chega a ser um problema quando nos vemos totalmente conectados ao filme. Aliás, gostei tanto que o coloquei entre os meus vinte favoritos do ano que passou.

Agradecimentos à Paula pela bem-vinda companhia durante a sessão. 

domingo, janeiro 03, 2021

PICNIC NA MONTANHA MISTERIOSA (Picnic at Hanging Rock)



A revista SET foi a principal formadora de minha cinefilia. A minha decisão de me dedicar mais aos filmes aconteceu quase no mesmo momento que comprei a primeira edição da revista, a que vinha com Clint Eastwood na capa, destacando o lançamento de DIRTY HARRY NA LISTA NEGRA. De vez em quando os editores da SET publicavam edições especiais contendo resenhas de seus críticos para edições em papel jornal com textos sobre os 500 melhores filmes presentes nas locadoras. O número de filmes variava de acordo com cada nova edição especial.

PICNIC NA MONTANHA MISTERIOSA (1975), de Peter Weir, era um desses filmes que estava sempre presente nessas antologias de críticas. E é curioso eu só ter visto o filme agora, no dia 1º de janeiro deste ano, passados mais de 30 anos das leituras dessas críticas. Acredito que isso se deu porque eu não encontrava o filme em VHS na época. Mas tudo bem: essas coisas acontecem e acabam por formar lacunas curiosas.

Não sei o que teria achado do filme se o tivesse visto no passado, lá na minha adolescência. Talvez tivesse estranhado o andamento que hoje me remete tanto a Michelangelo Antonioni quanto a certos filmes de horror mais sutis da década de 1970. Recentemente, por exemplo, eu vi SINTOMAS, de José Ramon Larraz, que também tinha tanto o estilo mais contemplativo quanto uma fotografia que acentuava os tons de amarelo e marrom.

Nunca tinha me perguntado sobre a questão da autoralidade nos filmes de Peter Weir, cineasta de importância gigante em minha cinefilia, graças a SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS (1989), mas, ao que parece, um denominador comum em seus filmes são esses personagens que têm um sentimento de não-pertencimento a um determinado espaço ou tempo.

No caso de PICNIC NA MONTANHA MISTERIOSA, temos um grupo de garotas de um internato em um passeio aos pés da Hanging Rock, uma formação rochosa no estado de Victoria, na Austrália. O passeio acaba em tragédia, já que três garotas e uma professora são dadas como desaparecidas no local, sendo que uma das meninas consegue fugir desesperada, mas sem saber dizer exatamente o que a fez ter medo daquele lugar.

O filme começa com uns letreiros que indicam que os eventos são reais, mas ao que parece é pura ficção. Ainda assim, o final em aberto sobre o destino das garotas e da professora fica no ar, querendo respostas. Respostas que, aliás, foram dadas pela própria autora do romance, Joan Lindsay. A solução para o enigma estava no último capítulo da versão inicial, que não foi aprovada pelos editores. 

Uma das coisas que chama bastante atenção no filme está na sutileza da sexualidade das personagens. Há uma sensualidade latente na forma como são mostradas as garotas. Em determinado momento, elas passam pela floresta e são visualizadas por dois rapazes. Um deles diz o que pensa sobre a muito provável beleza de suas pernas nuas. O outro diz que aquilo não é algo que se diga, que é grosseiro. O rapaz afirma então que ele diz, enquanto o outro pensa. Isso diz muito da sexualidade apresentada no filme, uma sexualidade reprimida.

PICNIC NA MONTANHA MISTERIOSA tem sido visto como uma influência direta para AS VIRGENS SUICIDAS, de Sofia Coppola, tanto pelo comportamento das meninas, quanto pela atmosfera conferida e também pelos tons adotados na fotografia e na direção de arte.

sábado, janeiro 02, 2021

ROMANCE À FRANCESA (Caprice)



"Não seja tão egoísta; seja infiel"
(Caprice)


Com o aparecimento do novo filme de Emmanuel Mouret, LES CHOSES QU'ON DIT, LES CHOSES QU'ON FAIT (2020), na lista dos dez melhores filmes do ano da Cahiers du Cinéma, tem sido objeto de discussão entre alguns cinéfilos essa melhor recepção que os filmes do diretor passaram a receber. Na verdade, pra mim já veio tarde, pois desde FAÇA-ME FELIZ (2009) que eu já me apaixonei pelo cinema dele. Mas esse filme tinha uma ligação maior com as comédias malucas da Velha Hollywood. Pareceu-me um claro herdeiro de LEVADA DA BRECA, de Howard Hawks, mas também do humor físico e de esquetes de Jacques Tati.

Com o tempo e com os demais filmes fui percebendo que Mouret estava se aproximando mais de Allen e de Rohmer. Essa impressão chega forte com este ROMANCE À FRANCESA (2015), que me deixou um gosto amargo no final, e que, com o tempo, foi crescendo em minha memória afetiva. Ainda guardo na memória algumas coisas que me incomodaram, e não sei se isso era proposital, mas no fim das contas isso importa pouco. Ou talvez importe para dizer mais sobre nós do que sobre o filme. 

A primeira cena do filme nos apresenta ao protagonista, Clément (o próprio Mouret), sentado em um banco de praça com seu filho, uma criança leitora voraz. Ele chama o garoto para passear, o menino não quer; nem ir ao cinema. Para ele só interessa a leitura. É fácil pensar que aquele garoto é, de certa forma, parte da personalidade do próprio autor, um pedacinho de seu ego. Assim como é, claro, o próprio protagonista, apaixonado por cinema e por teatro e que chora emocionado vendo algumas peças.

É em uma dessas peças que ele conhece a jovem Caprice (Anaïs Demoustier), uma ruiva simpática que claramente está tentando se aproximar dele. Ele, no entanto, não dá muita bola. Naquele momento, só lhe interessa a peça, e também a atriz da peça, Alicia Bardery (Virginie Efira). De certo modo, ele não se distingue tanto assim de seu filho no quesito "fechar os olhos para a realidade e se importar muito mais com a ficção".

O que o filme traz como uma espécie de fantasia dos sonhos para pessoas desengonçadas como Clément é o surgimento de Alicia, a atriz lá do teatro, em sua vida. Ele é um professor de crianças e quem aparece justamente na escola para contratar seus serviços como tutor do sobrinho é a famosa e querida atriz. Logo os dois começam a se interessar um pelo outro e a estabelecer um belo relacionamento. Como Alicia é uma mulher bonita, elegante, forte, mas também com suas vulnerabilidades, ele se acha em uma posição privilegiada, muito mais do que jamais imaginaria. Até que um dia Caprice volta para sua vida e a revira de pernas pro ar.

É interessante o quanto a personagem da jovem garota pode trazer sentimentos conflitantes. Ela tem algo de muito atraente e libertador, enquanto também é irritante na tentativa de invadir a vida e a privacidade do sujeito. Ela não dá trégua. Muito bonita a primeira cena do beijo deles dois. Mas passar a noite com Caprice se torna um tormento para Clément, que sofre com complexo de culpa. Em uma das várias tiradas do texto, há um diálogo em que Caprice diz a ele para não ser egoísta, propondo que ele seja amante dela, que fique com Alicia como esposa.

O que não dava para imaginar é que a obra, que começa bastante leve, lembrando SÓ UM BEIJO POR FAVOR (2007), nesse sentido, passe a trazer cargas: o peso da culpa, o peso de não saber o que fazer com a vida, mesmo quando a vida parece estar lhe trazendo uma maré de sorte. Aliás, outra tirada que eu adorei no filme, e que me lembra demais Woody Allen em seu pessimismo natural, é quando ele diz: "Quando você está com sorte, algo acontece para compensar."

Não vejo o filme como uma obra sobre traições ou adultério, embora também o seja. A questão se apresenta maior na relação complicada do protagonista com a própria vida, em especial a vida amorosa, sua incapacidade ou dificuldade de ser aquele cara decidido e resolvido que gostaria de ser. Há um personagem coadjuvante, o do diretor do teatro, que fala algo que se aplica muito a isso. Aliás, é curioso ficar percebendo como cada personagem do filme parece uma ramificação do ego do autor. E esse tipo de obra de arte mais confessional muito me interessa.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.