quarta-feira, maio 31, 2017

MELHORES AMIGOS (Little Men)























Ira Sachs, que anda conquistando boa parte da crítica desde pelo menos DEIXE A LUZ ACESA (2012), anda trilhando um caminho curioso em sua busca por chamar um público cada vez maior aos seus filmes de temática homoafetiva. Do seu primeiro filme de grande repercussão ao seguinte, O AMOR É ESTRANHO (2014), já se notava uma tendência do cineasta a se aproximar do mainstream, embora isso não seja exatamente um problema se a intenção é contar uma história em que o sexo não é um elemento tão importante. No caso, o mais importante é o amor entre os dois protagonistas.

E o mesmo acontece em MELHORES AMIGOS (2016), embora aqui não haja efetivamente uma relação de contato físico entre os dois meninos de 13 anos. Quase pode ser visto como um filme sobre amizade na adolescência sem a intenção de ver a história como sendo a do surgimento do primeiro amor, ou algo do tipo. Até porque o filme é muito sutil ao abordar essa amizade dos dois garotos.

Assim como em O AMOR É ESTRANHO, são questões de ordem socioeconômicas que fazem com que os protagonistas tenham seu relacionamento afetado. A trama nos apresenta primeiramente a Jake (Thoe Taplitz), um garoto que está se mudando para o Brooklyn com seus pais, vividos por Greg Kinnear e Jennifer Ehle. Os pais mudaram-se para essa nova casa, que foi deixada pelo patriarca, recém-falecido.

O velho alugava a preço barato um pedaço do edifício para uma mulher chilena (Paulina García) e seu filho Tony (Michael Barbieri, ótimo) cuidarem de uma pequena loja de roupas. A chegada dos filhos, que querem aproveitar mais o espaço e o potencial de lucro daquele lugar, acaba prejudicando a vida daquela família simples.

Os dois meninos, porém, sem saber o que acontece e vivendo suas vidas como pessoas daquela idade, sem as preocupações de adultos, acabam por se tornarem melhores amigos. E é justamente o modo delicado como o filme trata essa amizade que está o grande desafio e o grande mérito de MELHORES AMIGOS. No fim das contas, por mais que a história seja importante, é o que acontece no meio dos espaços entre os diálogos que torna o filme um dos mais bonitos trabalhos sobre a amizade na adolescência, esse espaço difícil em que a vida adulta começa a bater à porta.

É trazendo essa questão, a da iminência do futuro, que a cena mais bonita do filme é a de um diálogo entre Jake e seu pai, lá perto do final. MELHORES AMIGOS já nos havia ganhado forte àquela altura. E é difícil não ficar com os olhos marejados e o coração triste naquele momento. Só por isso filmes assim já merecem o nosso respeito. E esse ainda ajuda a elevar e trazer mais luz e interesse na filmografia passada e futura de Ira Sachs.

segunda-feira, maio 29, 2017

FACES DE UMA MULHER (Orpheline)

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Eis um filme que cresce à medida que pensamos nele. FACES DE UMA MULHER (2016), de Arnaud des Pallières, apresenta quatro estágios da vida de uma mesma mulher, mas de maneira desconcertante e um tanto confusa a princípio. Até que o espectador perceba que determinada atriz representa a mesma pessoa demora um pouco, embora essa estranheza e esse desconforto sejam bem-vindos e provoquem no espectador um interesse em unir as pontas.

A confusão se dá muitas vezes pelo fato de as personagens aparecerem com diferentes nomes, embora o filme, logo no início, desmascare uma delas com um nome falso. Trata-se de Renée (Adèle Haenel, de A GAROTA DESCONHECIDA), que tem sua rotina de vida (como professora de crianças) perturbada pela chegada de uma mulher recém-saída da prisão (Gemma Arterton). A chegada daquela mulher representa o fim de seu sossego.

Do ponto de vista formal, percebe-se, logo de cara, a fotografia que destaca os rostos com seus detalhes ressaltados: as olheiras nos olhos de Haenel; as sardas de Arterton; mais à frente os hematomas, feridas e uma maquiagem com um exagero no uso do vermelho dos lábios, como na tentativa de restaurar a beleza dessas mulheres maltratadas. E haja maus tratos. As mulheres do filme de des Pallières recebem porrada a todo instante. E isso dói também no espectador ver tais atos de violência, sempre praticados quase sempre por homens mais velhos.

Logo em seguida, somos apresentados a Sandra (Adèle Exarchopoulos, de AZUL É A COR MAIS QUENTE), uma jovem em seus 18-20 anos que está em busca de dinheiro, seja através de um emprego normal, seja através da "adoção" por um homem mais velho. Essa oferta, ela recebe de um senhor viciado em jogos e corridas de cavalos. A vida de Sandra cruzará com Tara (Arterton) também. Quem não perceber de início, mais à frente perceberá que estamos diante de um flashback da personagem anteriormente apresentada.

Mas o filme vai mais longe e nos apresenta a outras duas interessantes atrizes/personagens: Karine, a garota de 13 anos rebelde e que sai em festas noturnas para adultos e é violentada/castigada pelo pai; e a garotinha de 6 anos Kiki (Veja Cuzytek), que tem uma vida normal até que um evento envolvendo seus amiguinhos de infância muda sua forma de ver o mundo. Ou parece ser essa a intenção de o filme procurar dar motivo para o comportamento posterior da personagem, em suas diferentes encarnações.

Algumas situações ficam pouco claras, mas isso não chega a ser um grande problema. Ao contrário: só dá ao filme um charme todo especial. Os personagens masculinos, em sua maioria, são egoístas, violentos ou pouco compreensivos, mas dois deles fogem a essa regra, os personagens de Sergi Lopez e Jali Lespert. Este último é parte fundamental de um dos momentos mais especiais do filme, envolvendo a gravidez da protagonista.

Às vezes parece faltar em FACES DE UMA MULHER um pouco mais de coesão nas histórias dessas personagens, mas esse aspecto fragmentado pode ser visto como um ponto positivo em um filme que valoriza não apenas a narrativa, mas também a construção de climas tensos e sensuais e de um visual que sabe lidar muito bem com a vida sofrida dessa mulher múltipla, quebrada e fugidia.

domingo, maio 28, 2017

SETE FILMES VISTOS NO FESTIVAL VARILUX DE 2016























A edição do ano passado Festival Varilux de Cinema Francês foi uma das melhores, se não a melhor em termos de quantidade de ótimos filmes vistos. E o curioso é que boa parte desses filmes não são de cineastas cultuados ou renomados. São nomes relativamente novos e de menor expressão. Se em 2016 estava assim, este ano promete ser ainda melhor. Veremos. Enquanto isso, falemos um pouco destes sete filmes que deveriam ter tido mais espaço ao longo do ano no blog, mas que acabaram, por um motivo ou outro, ficando de fora.

CHOCOLATE (Chocolat)

O filme que abriu o festival, CHOCOLATE (2016), quarto longa-metragem de Roschdy Zem, tem como principal força a presença e o carisma de Omar Sy, como o primeiro artista de circo negro da França. A história de Rafael Padilla, que ficou conhecido como o palhaço Chocolat nos últimos anos do século XIX, é bem comovente. Descoberto por um artista de circo britânico, George Footit (James Thiérrée), ele e Footit tiveram dias de glória e sucesso como uma dupla na Paris da Belle Epoque. Mas a questão racial vem à tona, assim como o fato de que Chocolat sempre interpretava o sujeito que apanhava nos espetáculos, o que acabou o incomodando, assim como também sua vontade de alçar vôos maiores e provar que podia ser também um grande ator. A história de decadência, amizade, fortuna acaba com um gosto bem amargo, mas isso só torna o filme ainda mais forte.

MARGUERITE

Catherine Frot ganhou o César de melhor atriz em 2016 por seu papel em MARGUERITE (2015). Na verdade, a personagem Marguerite Dumont é uma construção fictícia em cima da britânica Florence Foster Jenkins, que ganharia um filme próprio quase na mesma época, dirigido por Stephen Frears: FLORENCE – QUEM É ESTA MULHER?. Mas o sexto longa-metragem de Xavier Giannoli tem o seu brilho todo próprio, até por ser menos cômico e mais trágico do que a versão de Frears da história, embora ambos tenham em comum sua parcela de tragicidade. A personagem é convencida de que é uma boa cantora, mas as pessoas só querem tirar proveito de seu dinheiro, e ainda por cima escarnecer de sua voz e do ridículo da situação. Há um cuidado com a direção de arte que chama a atenção no trabalho de Giannoli.

UM HOMEM, UMA MULHER (Un Homme et un Femme)

O clássico do festival do ano passado foi UM HOMEM, UMA MULHER (1966), de Claude Lelouch, Eu, particularmente, fiquei um tanto decepcionado com o filme, embora admita que se trata de uma obra que tem sim o seu charme. Gosto principalmente das cenas que não economizam diálogos entre os dois amantes. É quando o filme mais dialoga com o cinema contemporâneo. Mas o excesso de vezes em que a canção-tema toca e mais algumas cenas que parecem pouco expressivas para a construção do romance do casal acabam prejudicando um pouco. De todo modo, foi muito bom poder ver este filme, em cópia restaurada, no cinema.

VIVA A FRANÇA! (En Mai, Fais Ce Qu'il Te Plaît)

Quarto longa-metragem de Christian Carion, VIVA A FRANÇA! (2015) é mais um bom drama de guerra que fala sobre a resistência francesa nos tempos terríveis da Segunda Guerra Mundial. Neste filme, vemos o começo da invasão alemã no território francês e a imagem dos aviões avançando pelos céus talvez seja um dos momentos mais memoráveis, embora o drama mesmo aconteça nos momentos seguintes, quando inocentes são assassinados por soldados nazistas. O filme se passa em espaços rurais e se concentra em personagens que resolvem contrariar as ordens do governo francês e fugir para outros lugares, abandonando seu vilarejo. O personagem principal, porém, é o de um alemão refugiado na França, e que justamente por isso acaba correndo perigo. O fato de ele se perder de seu filho pequeno contribui para a força do drama. Há trilha do mestre Ennio Morriccone, produção caprichada, mas parece faltar algo para que seja o grande filme que almeja.

AGNUS DEI (Les Innocentes)

A diretora Anne Fontaine já havia comparecido ao Festival Varilux com alguns bons filmes, COCO ANTES DE CHANEL (2009) e GEMMA BOVERY – A VIDA IMITA A ARTE (2014). O novo trabalho, AGNUS DEI (2016, foto), é mais ambicioso. E talvez até mesmo seja o seu melhor filme, embora não tenha visto os demais. O próprio ponto de partida já é bastante curioso: dezenas de freiras polonesas aparecem grávidas em 1945, logo após o fim da Segunda Guerra. Ficamos logo sabendo que todas elas foram vítimas de estupro por parte de soldados do exército russo. O filme faz uma investigação cuidadosa do estado psicológico delicado, já que, além de terem passado por uma situação obviamente traumática, ainda há questões relativas à religião, à dificuldade de exposição do corpo, até mesmo para a enfermeira da Cruz Vermelha, muito bem interpretada por Lou de Laâge, que é chamada para atender àquelas mulheres religiosas. Há um momento especialmente bem emocionante.

LA VANITÉ

Provavelmente o filme que mais foge do convencional dentre os exibidos no Festival, LA VANITÉ (2015), de Lionel Baier, nos apresenta a um microcosmo habitado por um homem que deseja pôr fim à própria vida (Patrick Lapp), uma mulher destinada a executar o serviço (Carmen Maura) e um garoto de programa (Ivan Georgiev). O minimalismo do local contrasta com a complexidade da psicologia dos personagens e o modo criativo com que a história evolui. Sem falar no cuidado no uso das cores nos ambientes internos e até mesmo externos, claramente artificiais, feitos em estúdio. Embora seja um filme que lide com a questão da valorização da vida vs. desencanto, isso nunca é simplificado ou banalizado, o que só eleva o filme cada vez que pensamos nele.

A VIAGEM DE MEU PAI (Floride)

Na época de sua exibição no festival, A VIAGEM DE MEU PAI (2015), de Philippe Le Guay, foi exibido com o título de “Flórida”, tradução direta do título original. Trata-se de um dos belos exemplares do quanto o cinema francês sabe equilibrar a comédia do drama como poucas cinematografias conseguem. Ou seja, ver A VIAGEM DE MEU PAI, ao mesmo tempo que é um exercício muito gostoso, é também um estudo de personagem admirável, especialmente pela presença brilhante do veterano Jean Rochefort, um homem de 80 anos de idade que é cuidado pela filha (Sandrine Kiberlaine) e que tem o hábito de enxotar as enfermeiras e mulheres contratas para cuidar dele. Claramente com problemas de memória e outros que surgem com a idade, esse senhor tem a ideia fixa de visitar a filha ausente na Flórida. De certa forma, acaba conseguindo viajar. Belo filme do diretor de PEDALANDO COM MOLIÈRE (2013).

sábado, maio 27, 2017

NÃO MATARÁS (Broken Lullaby)























A cinefilia, como, aliás, qualquer forma de arte ou conhecimento, acaba abrindo portas para novas e novas portas. Soube que o novo e elogiado trabalho de François Ozon, FRANTZ, é remake de um filme de Ernst Lubitsch que recebeu o título no Brasil de NÃO MATARÁS (1932). Fiquei imediatamente curioso e um título que nem estava nos planos de ser visto, de uma hora pra outra, acaba furando essa fila infindável e caótica que é a de ver filmes em casa.

NÃO MATARÁS, mesmo tendo os mesmos problemas da grande maioria das obras do início dos anos 1930, quando o cinema falado estava se instalando, ou seja, ainda um pouco engessado, há uma fluidez narrativa muito boa, que nos fisga desde o começo, mas que é preciso esperar até perto de sua meia hora de duração inicial para finalmente ficar encantado com a história e seus personagens.

No começo, somos apresentados a um homem atormentado, o francês Paul (Phillips Holmes), que está em uma igreja para se confessar para um padre sobre algo que o incomoda bastante: o fato de ter matado um homem durante a Primeira Guerra Mundial, um alemão, a quem ele chega, inclusive, a ler a última carta endereçada à noiva. Por mais que o padre lhe diga que ele estava apenas cumprindo seu dever e lhe dê absolvição do seu pecado, o inconformado homem resolve viajar e conhecer a família do homem que teima em aparecer em seus sonhos.

Assim, o filme se transfere de Paris para uma pequena cidade da Alemanha, onde mora um simpático e atencioso médico, o Dr. Holderlin, vivido pelo amável Lionel Barrymore. Aliás, o que seria do filme se não fosse Barrymore, este homem que parece transferir o sentimento de amor para a tela e para o espectador? Ele é o pai do rapaz morto na guerra por Paul. E, assim como todos em sua vila, nutre um ódio enorme pelos franceses, que venceram a guerra e tiraram as vidas dos jovens habitantes.

Na mesma casa também vive Elsa (Nancy Carroll), a jovem ex-noiva de Walter, o soldado falecido, que trata o sogro como pai. E já se imagina que o destino vai colocar Paul e Elsa juntos, tendo este segredo tão difícil de ser contado pelo rapaz francês no meio do caminho. Afinal, quem em sã consciência chegaria à casa de um soldado morto para dizer que ele mesmo fora responsável pela morte de um membro querido de uma família? Por mais que a história seja envolvente, acredito que falta ao filme um pouco mais de interesse em ingressar nas profundezas das dores de seus personagens. Tudo parece até leve para as circunstâncias, e depende um bocado da colaboração do próprio espectador para ligar os pontos que parecem faltar.

Mas há o mérito da economia narrativa. É tudo contado de maneira muito rápida e simples, com uma elegância na condução da câmera que não deixa de ser admirável para aqueles tempos de equipamentos pesados e de retrocesso na arte de contar histórias por meio de filmes. Quando percebemos já estamos no belo final. Além do mais, NÃO MATARÁS é um filme que levanta uma mais do que justa bandeira antibelicista. Ninguém sabia que aquele momento de paz era só uma trégua para algo pior que viria.

quinta-feira, maio 25, 2017

REAL – O PLANO POR TRÁS DA HISTÓRIA























Os filmes, por mais que tentem retratar uma época, acabam sendo reflexo da época em que foram realizados. Com REAL – O PLANO POR TRÁS DA HISTÓRIA (2017) não é diferente. É possível perceber que a rixa existente entre esquerdistas e neoliberais que abre o filme é muito mais rancorosa hoje do que era naqueles tempos em que Lula ainda não tinha conseguido vencer uma eleição. É também um filme que acabou chegando em um momento particularmente infeliz para o PSDB, que quis usar o filme como propaganda dos tucanos.

Se bem que é bem possível ver o filme sem esse viés. Até porque, no fim das contas, Fernando Henrique Cardoso não aparece no filme como o criador da ideia do Plano Real. Ele apenas, espertamente, juntou uma equipe que trouxe uma ideia pré-existente em um trabalho de faculdade para a realidade brasileira. Foi um projeto arriscado, mas até hoje se elogia a criação de uma moeda forte, por mais que isso tenha custado bastante ao povo brasileiro, que sofreu um desemprego gigante, além de taxas de juros absurdos, tudo para manter a estabilidade da moeda.

E, por mais que vejamos claramente os problemas do filme, principalmente os de interpretação, escalação de atores e de diálogos, trata-se de uma narrativa até bem envolvente, muito por tratar de um assunto que interessa ao brasileiro médio, especialmente o que viveu os anos 1990. Não dava para esperar grande coisa de Rodrigo Bittencourt, o diretor da tenebrosa comédia TOTALMENTE INOCENTES (2012).

O filme foca na história de Gustavo Franco, que é mostrado como principal responsável pela existência do Plano Real, como também uma pessoa que tentou de tudo para que a moeda persistisse estável, mesmo com uma crise mundial e nacional que pedia que o Brasil cedesse. Não dá também para dizer que ele é exatamente um herói. E nisso o filme tem como mérito a boa interpretação de Emílio Orciollo Netto, no papel do egocêntrico e arrogante Gustavo Franco.

Por outro lado, tirando Tato Gabus Mendes como Pedro Malan, todos os demais personagens soam ridículos, seja Norival Rizzo, como FHC, seja Bemvindo Sequeira como o Presidente Itamar Franco. Paolla Oliveira mais uma vez só serve para trazer beleza para a tela, pois sua interpretação nunca esteve tão constrangedora. Se nas telenovelas já é assim, nos filmes, suas limitações se agigantam. Assim, como Orciollo Netto acaba aparecendo bem mais na tela, os problemas de interpretação do filme são menores do que se esperava, pelo trailer. Ainda assim, não deixa de ser ridículo quando ele grita "Eu não vou desvalorizar a minha moeda!".

Quanto ao atual momento brasileiro de polaridades extremas entre esquerdistas, costumeiramente chamados de comunistas (como se isso fosse uma ofensa), e neoliberais, ela transparece desde o começo, mesmo que nas entrelinhas, embora nada seja tão forte quanto a sequência da discussão no restaurante entre Franco e um amigo que votou no Lula. Não se sabe até quando o país vai se unir novamente para o próprio bem do país, mas a impressão que dá é de que esse cenário vai permanecer por mais um bom tempo. Ainda mais em tempos de governo ilegítimo e uma podridão generalizada, que dessa vez está tão feia como uma ferida exposta.

quarta-feira, maio 24, 2017

CÃES SELVAGENS (Dog Eat Dog)























Curioso o título brasileiro ter usado o adjetivo “selvagem”. Afinal, foi em CORAÇÃO SELVAGEM, de David Lynch, lá em 1990, que Nicolas Cage e Willem Dafoe fizeram sua parceria anterior, pra lá de memorável. Mas Dafoe era então um coadjuvante. Em CÃES SELVAGENS (2016), novo trabalho de Paul Schrader, ele está de igual pra igual com Cage, tão protagonista quanto ele. E enquanto Cage continua no piloto automático, mesmo que com um ótimo papel, Dafoe está brilhante.

Um dos aspectos mais admiráveis de CÃES SELVAGENS é o fato de nenhum dos três personagens, os ex-presidiários vividos por Cage, Dafoe e Christopher Matthew Cook, ser merecedor de nossa piedade. Também pudera, o que Dafoe faz com uma mulher logo no prólogo é algo tão brutal que não dá pra pensar nele em algo menos do que um monstro. O que acontece é que tudo é mostrado com muito humor, ainda que esse humor seja bem pesado.

Mas o que dá impressão é que seria necessário mesmo um cineasta da Nova Hollywood para fazer uma brincadeira tão pesada e sair no lucro. Schrader, brilhante roteirista, tem uma carreira como cineasta marcada por altos e baixos, e até uma aura de maldito. Fazia tempo que um filme do cineasta não pintava no circuito e desde o incidente envolvendo o prelúdio de O EXORCISTA, negado pelos produtores e lançado posteriormente em vídeo com o título de DOMINION – PREQUELA DO EXORCISTA (2005), que Schrader andava meio apagado dos holofotes, por mais que não tenha deixado de fazer e lançar filmes com uma boa regularidade.

Filme que se assiste com um sorriso de orelha a orelha (isso se você não ficar muito chocado com os personagens e as cenas), CÃES SELVAGENS também desperta umas boas gargalhadas, como na cena em que os três amigos resolvem sair, cada um, com uma mulher. E cada um em uma situação diferente. Todos eles, além de muito brutos e violentos, estavam desacostumados com o mundo exterior e acabam não sabendo aproveitar o prazer e a graça que o sexo oposto oferece.

Há quem vá achar tudo uma brincadeira de muito mau gosto, especialmente o duplo homicídio que abre o filme, mas a ideia talvez seja mesmo fazer uma obra em que o grotesco predomina, cujos exageros formais e narrativos andam de mãos dadas com seus personagens grosseiros, violentos e sem nenhuma esperança de conseguir um lugar naquele mundo estranho, depois de passarem tanto tempo atrás das grades. Se lembrarmos que Schrader é o roteirista de TAXI DRIVER (1976), podemos facilmente colocar esses novos personagens junto com o taxista psicopata do filme de Scorsese. Lembremos de sua cena levando a namorada para um cinema pornô. Mas, curiosamente, o roteiro é baseado em uma obra literária. Agora, cá pra nós, o que é aquele final, hein?

domingo, maio 21, 2017

CORRA! (Get Out)























2016 foi um ano muito especial para os filmes que traziam temática racial. Tanto que no Oscar deste ano foi MOONLIGHT – SOB A LUZ DO LUAR, de Barry Jenkins, o grande vencedor na categoria principal e O.J. – MADE IN AMERICA, de Ezra Edelman, na categoria de documentário, sendo que ambos já concorriam com pesos pesados da temática: UM LIMITE ENTRE NÓS, de Denzel Washington, e EU NÃO SOU SEU NEGRO, de Raoul Peck. Os quatro são obras que trouxeram uma rica e dura reflexão sobre o negro na sociedade americana.

Mas os filmes de horror, que muitas vezes são menosprezados, costumam ser excelentes análises políticas e sociais sobre a sociedade. Um dos exemplos mais claros disso é A NOITE DOS MORTOS VIVOS, de George A. Romero, que, aliás, possui um protagonista negro em plena década de 1960. Este e as demais sequências dos filmes que influenciaram definitivamente o que hoje se chama de filme de zumbi foram exemplares como representações do mundo.

Eis que este ano um filme de horror dirigido por um cineasta negro e que trata a questão do abismo existente entre brancos e negros nos Estados Unidos pegou muita gente de surpresa: CORRA! (2017), de Jordan Peele, que a princípio parece apenas a história de um rapaz negro, Chris (Daniel Kaluuya), que se vê aterrorizado com a expectativa de conhecer a família branca, ainda que liberal, de sua namorada Rose (Allison Williams, a Marnie da série GIRLS).

A aproximação com o horror vai acontecendo de maneira paulatina, com Peele tendo um domínio narrativo admirável, e ainda colocando um senso de humor original que envolve a plateia e faz rir, mesmo que seja de nervoso, em alguns momentos. O que deixa Chris mais cismado, logo que ele chega na casa da família dos pais da namorada são os criados: uma mulher e um homem negros, que mais parecem zumbis retirados dos filmes sobre zumbis haitianos, como A MORTA-VIVA, de Jacques Tourneur.

Sua tentativa de  conversar com eles só mostra o quanto sua ideia de que há alguma coisa terrivelmente errada naquela casa e naquela comunidade fazia sentido e não se tratava de paranoia – há uma cena em que a empregada negra chora e ri ao mesmo tempo, enquanto conversa com ele e outra em que ele leva um baita susto quando sai pra fumar um cigarro ao ar livre. São cenas de certa forma sutis, mas que antecipam, o cenário de horror e medo que vai sendo construído e que, no final apoteótico, eleva o filme à posição de um dos mais interessantes exemplares do gênero atualmente.

Assim, CORRA!, ao mesmo tempo em que funciona de maneira admirável como um filme de medo (os momentos mais eletrizantes não foram sequer mencionados aqui), o que já seria louvável, traz também um questionamento tanto da história de sofrimento do povo negro americano, que remonta à escravidão, quanto da questão do roubo, por parte dos brancos, da riqueza cultural afro-americana, o qual vem sendo feito explicitamente na música há muitas décadas e continua sendo.

sexta-feira, maio 19, 2017

A AUTÓPSIA (The Autopsy of Jane Doe)























Provavelmente estou dando um spoiler de um outro filme, mas fique à vontade para deixar de ler. Em A MORTE DE LUÍS XIV, de Albert Serra, há uma cena perturbadora para pessoas desacostumadas com imagens reais de partes do corpo humano dissecadas, como fígado, baço etc. No filme de Serra, certamente por ser tão realista, isso chega a incomodar mesmo, embora contribua ainda mais para a grandeza do trabalho do cineasta espanhol.

Pulemos então para este terror A AUTÓPSIA (2016), primeiro trabalho em língua inglesa do diretor norueguês André Øvredal. Imagina-se que o efeito do filme de Serra se estenderia por boa parte de um filme que lida com pessoas que retiram para análise partes do corpo de pessoas mortas. Mas não é bem isso que acontece: todas as cenas de autópsia do corpo da desconhecida que aparece são artificiais. Jane Doll parece uma boneca de borracha. E talvez seja mesmo, embora o ideal era que fosse mais real.

De todo modo, A AUTÓPSIA funciona justamente em sua primeira metade, quando acompanhamos pai e filho (Brian Cox e Emile Hirsh) se mostram felizes com seu trabalho de investigar a causa da morte dos cadáveres que chegam ao necrotério. E nós, do lado de cá da tela, também ficamos bastante intrigados com essa mulher desconhecida, que vai se revelando cada vez mais misteriosa a cada vez que eles cortam seu corpo.

O problema do filme está justamente quando ele se assume explicitamente de horror e todos os clichês já vistos em tantos outros trabalhos sobre casas assombradas e fantasmas ou outro tipo de ameaça sobrenatural acaba tornando tudo muito sem graça. Há poucas cenas de susto – e isso é até bom, torna o trabalho mais honesto –, mas os poucos que têm são frágeis.

A transformação do suspense de base criminal, ainda que saibamos que seria só o ponto de partida, em terror puro e simples, mas sem nada a acrescentar ao gênero, nem mesmo eficiência, acaba tornando a experiência de A AUTÓPSIA bem frustrante. Ficam as boas atuações de Cox e Hirsch, que dominam as cenas durante boa parte da narrativa, além do bom trabalho de direção de arte. Não deixa de ser um filme curioso e que merece a espiada.

sábado, maio 13, 2017

ALIEN - COVENANT























Ridley Scott com o tempo vem demonstrando, cada vez mais, tanto seu poder de criar imagens poderosas quanto suas fragilidades, quando mostra sua dificuldade em construir cenas de ação rápidas e eficientes. Essa fragilidade comparece com força em vários momentos de ALIEN – COVENANT (2017), sequência quase direta de PROMETHEUS (2012), na ordem cronológica da mitologia do universo Alien.

Mesmo não sendo o sucesso gigante esperado pela Fox, PROMETHEUS conquistou uma discreta geração de fãs. Além do mais, dessa vez, o nome “Alien” no título certamente surtirá um efeito maior nas bilheterias, agora que as intenções de Scott em voltar ao universo que ele deu início em 1979, com ALIEN, O 8º PASSAGEIRO, se tornaram bem mais claras. É quase como se ele dissesse: outra pessoa vai fazer uma continuação de BLADE RUNNER – O CAÇADOR DE ANDROIDES (1982), mas serei eu quem vai retomar as rédeas de uma franquia de sucesso iniciada por mim. E, assim, é possível que novas sequências de ALIEN venham no futuro, pelas mãos do próprio Scott.

Um dos pontos bem positivos de ALIEN – COVENANT é o cuidado com a construção das imagens que se manifesta desde o início, quando vemos o andróide Michael Fassbender despertando e mostrando sua perfeição como criatura sintética para seu criador. Ele se autodenomina David, em homenagem a uma escultura de Davi, o segundo rei de Israel, que vê na sala. Corta para uma imagem da nave Covenant, também com Fassbender, dessa vez supervisionando a espaçonave, enquanto a tripulação e um grande grupo de pessoas colonizadoras outro planeta dormem em suas câmeras criogênicas.

Porém, um acidente sério faz com que a nave seja abatida e danificada e muitos da tripulação acabem sido afetados. O próprio capitão é uma baixa. Billy Crudup, como Oram, acaba assumindo o posto, já que era o segundo em comando. O ego de estar no comando mexe com a cabeça de Oram, que fica até mesmo insensível à morte do capitão, companheiro de Daniels, vivida com relativo brilho pela inglesa Katherine Waterston, que foi destaque em ANIMAIS FANTÁSTICOS E ONDE HABITAM, David Yates, e VÍCIO INERENTE, de Paul Thomas Anderson.

O fascínio pelo visual das criaturas criadas pelo artista plástico H.R. Giger se mantém em ALIEN – COVENANT. Elas novamente surgem a partir do contato com o corpo humano, assimilando a organicidade dos corpos e os usando como fonte de materialização e efetivo nascimento, como sementes esperando um solo fértil para nascer e se desenvolver. Algumas das criaturas são menores e mais claras, e saem de dentro dos órgãos das vítimas em cenas gore bem interessantes; e uma delas é assustadoramente maior e de cor preta.

Elas acabam sendo o grande trunfo do filme, junto com a elegância da direção de Scott, mesmo com todos os problemas do roteiro fraco. Além do mais, algumas cenas são carentes de um maior cuidado, principalmente levando em consideração que, por mais que pudessem ter feito um filme B honesto com essa história, sabemos que não é o caso aqui. Afinal, estamos diante de uma superprodução, com todos os recursos necessários para fazer tudo no capricho. No entanto, na cena em que Daniels fica dependurada numa nave enquanto atira em uma das criaturas, tudo parece tão rápido e insípido e parecido com um videogame de geração ultrapassada, que se esta cena fosse deletada, seria para o bem do filme.

Scott é um excelente arquiteto de dramas também, embora nunca (ou raramente) tenha dirigido filmes feitos para chorar – o que não é um problema, de modo algum. No entanto, como gosta também de dirigir filmes caros e grandiosos, acaba derrapando com certa frequência, como foi o caso recente de EXÔDO – DEUSES E REIS (2014). Felizmente, sua volta ao espaço sideral com o ótimo PERDIDO EM MARTE (2015) fez com que ele tomasse novamente gosto por aventuras espaciais.

Mas, se por um lado, PERDIDO EM MARTE conseguia nos solidarizar com as angústias de seu protagonista, ALIEN – COVENANT. além de quase se assumir como um horror/sci-fi genérico, de tão desleixado que parece em certos momentos - as questões filosóficas de PROMETHEUS são quase que totalmente deixadas de lado ou mostradas de maneira muito rasas - seus personagens são rasos e desinteressantes. Por isso, a sorte é que quando Scott acerta, mesmo em um filme irregular como este, ele acerta bonito. O que acaba compensando.

segunda-feira, maio 08, 2017

TOP OF THE LAKE























No mesmo ano que TWIN PEAKS retorna, uma minissérie de prestígio mais recente, TOP OF THE LAKE (2013), também volta. Detalhe: ambas terão sua première com os dois primeiros episódios no Festival de Cannes. TOP OF THE LAKE não foi pensada para ser uma série, mas uma minissérie. E, de fato, há uma história fechada, contada em sete episódios de menos de uma hora cada.

TOP OF THE LAKE, assim como THE KILLING (2011-2014), é devedora do caminho aberto pela revolucionária série de David Lynch e Mark Frost. A principal diferença é que aqui não temos nem humor nem surrealismo. É tudo muito sério, inclusive. Até porque se trata de uma minissérie de denúncia dos abusos que as mulheres sofrem dos homens, que são mostrados quase em toda a totalidade como seres repugnantes.

Jane Campion, junto com Gerard Lee, são os criadores da produção, que nos apresenta ao caso de uma garotinha de 12 anos de idade que se descobre grávida. Passando uma temporada em sua cidade natal, Robin, a detetive de polícia vivida por Elisabeth Moss, é chamada para ajudar no caso. Com pouco esforço, ela consegue conversar com a garota, coisa que os policiais da cidade não haviam conseguido.

Aos poucos, vamos percebendo, à medida que a história nos apresenta mais aprofundadamente a protagonista, que ela tem seus motivos para estar bastante interessada no caso de Tui, a garotinha grávida, que já no segundo episódio desaparece. Teria fugido? Ou foi sequestrada? Está viva ou morta? O pai da menina tem algo a ver com isso? São várias perguntas que surgem e que permanecem sem serem contadas por alguns episódios. Lembrando que o pai da garota, Matt (Peter Mulan), é temido na cidade justamente por ser extremamente perverso. Logo no primeiro episódio, por exemplo, vemos do que ele é capaz.

O que deixa Matt enfurecido de verdade é a invasão de um grupo de mulheres pertencentes a uma espécie de comuna que carregam consigo traumas com maridos e amantes e que seguem uma estranha senhora grisalha chamada apensa de GJ, vivida por Holly Hunter, que havia trabalhado com Jane Campion em O PIANO (1993), filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes.

As cenas mostrando a paisagem da Nova Zelândia são excepcionalmente belas e contribuem para enriquecer a experiência de ver TOP OF THE LAKE. O problema é que a minissérie, a partir do terceiro episódio, perde um pouco o impacto dos primeiros, que nos deixam cheios de entusiasmo. Felizmente, ainda que de maneira anti-climática, o desfecho é bom, sem falar na direção de atores e todo o trabalho de interpretação, que eleva a série a uma categoria respeitável.

sábado, maio 06, 2017

HIROSHIMA MEU AMOR (Hiroshima Mon Amour)























Há filmes que precisam de um pouco de maturação da nossa parte para que sejam minimamente valorizados. Minha relação com HIROSHIMA MEU AMOR (1959) não era das melhores, em comparação com o quanto este filme é amado e cultuado por uma vastidão imensa de cinéfilos. Muito da culpa disso está no fato de eu não ter me conectado nas primeiras vezes com o universo do filme e também conta o fato de eu ter visto duas vezes na telinha – e confesso que achava maçante, como quase todos os trabalhos que havia visto de Alain Resnais.

Mas aí eu resolvo dar uma chance e rever o filme, desta vez no cinema, em uma cópia linda, remasterizada em 4K. Meu Deus! O que é aquilo? Que obra maravilhosa é essa? Foi como se uma cortina escura tivesse saído de meus olhos e eu finalmente pudesse ver a beleza singular desta obra, perceber a perfeição em cada cena, o romantismo e o antinaturalismo das falas dos personagens, uma atriz francesa (Emmanuelle Riva) e um arquiteto japonês (Eiji Okada), ambos casados, que se encontram e se amam em Hiroshima. A situação de ambos até lembra a de ANTES DO AMANHECER, de Richard Linklater, e sua sequência, já que aquele é o último dia no Japão da atriz francesa.

HIROSHIMA MEU AMOR, pelo menos em sua parte inicial, que mostra a conversa íntima e poética dos dois amantes em um quarto de hotel, enquanto falam sobre Hiroshima e vemos imagens da terrível herança deixada pela bomba atômica naquela cidade, é uma espécie de continuação do documentário em curta-metragem NOITE E NEBLINA (1956), sobre o holocausto e os campos de concentração nazistas. Vê-se que a verve documentarista e o interesse pelos horrores da guerra ainda eram elementos que assombravam Resnais. Para isso ele recorria à poesia falada para ajudar a compor a poesia em imagens.

O filme foi um dos marcos inaugurais da nouvelle vague francesa, quando lançado no mesmo ano de OS INCOMPREENDIDOS, de François Truffaut, no Festival de Cannes. Porém, Resnais já tinha muito mais tempo de estrada do que o jovem Truffaut. Seu primeiro curta é de 1936. Há um gap de 10 anos entre a obra posterior, mas isso, muito provavelmente se deve à invasão alemã na França durante a Segunda Guerra Mundial. A partir de 1946 ele não parou de experimentar e se aperfeiçoar.

HIROSHIMA MEU AMOR tem um erotismo sutil, mas de certa forma ousado para a época. Não há grafismo, mas há as vozes e os corpos. O erotismo nesses 15 minutos iniciais se funde com as imagens do horror das vítimas da bomba que destruiu aquela cidade, das imagens do museu que mostra vestígios daquela tragédia e de pessoas sofrendo em hospitais. Depois dos 15 minutos iniciais, estamos de volta a algo mais próximo da realidade, quando os dois terão que se separar, pelo menos por ora, para ir ao trabalho. É quando o filme se concentra mais no drama dos dois, sem no entanto deixar de mostrar assombrações do passado, como a história contada por ela sobre seu primeiro amor, um soldado alemão.

A história da personagem de Riva é tão intensa e sombria tinha tudo para eclipsar o fio principal da narrativa. Mas, como tudo no filme funciona à perfeição, essa história só ajuda a tornar HIROSHIMA MEU AMOR ainda mais poderoso, a dar ainda mais profundidade à personagem feminina e a torná-la ainda mais fascinante. A cena no restaurante, com ela se embriagando de vinho enquanto conta sobre seu passado, é tão cheia de amor e amargura que somos quase impossibilitados de não nos contagiarmos com essa imensidão de sentimentos.

E temos, claro, a construção visual na fotografia em preto e branco exuberante, mas também um tanto claustrofóbica. Porém, me pergunto o que seria do filme sem o roteiro poético de Marguerite Duras. As palavras são faladas de maneira bem pausada, para que sintamos o significado e a importância de cada uma delas, para que possamos sorver a poesia e o sentimento de paixão e angústia daquelas duas almas que estão prestes a se separar, mas que não conseguem se manter distantes uma da outra. E é por isso que não devemos nunca deixar passar uma experiência de ver os clássicos no cinema. É na telona que somos mais tragados pela força de obras magistrais como essa.

quinta-feira, maio 04, 2017

O CINEMA FANTÁSTICO ORIENTAL EM TRÊS FILMES























O Japão já tem uma longa tradição de filmes de horror. A Coreia do Sul tem crescido o número e a qualidade de filmes do gênero com o passar dos anos. E a China é um caso especial, até no filme selecionado aqui. Os três filmes foram vistos no cinema meses atrás, então vou mesmo ter que puxar da memória algumas impressões e sentimentos com relação a esses trabalhos, que certamente mereceriam um cuidado mais especial, mas pelo menos vou trazê-los de volta à minha mente.

CREEPY (Kurîpî: Itsuwari No Rinjin)

Antes de ganhar espaço em nosso circuito, o cinema do japonês Kiyoshy Kurosawa já era bastante cultuado pelos fãs do cinema de horror, especialmente aqueles que visualizam também as produções do outro lado do mundo. Assim, trabalhos seus como CURE (1997), KAIRO (2001) e DOPPELGANGER (2003) já eram vistos como exemplos de grande cinema de gênero. CREEPY (2016, foto) teve a sorte de encontrar um circuito alternativo mais receptivo a obras das mais variadas formas. O filme conta a história de Takakura (Hidetoshi Nishijima), um ex-detetive que é chamado por um antigo colega, Nogami (Masahiro Higashide), para investigar o caso de uma família desaparecida há seis anos. Enquanto isso, o detetive e sua esposa recentemente se mudaram para uma nova casa e conhecem um estranho vizinho (Teruyuki Kagawa), que tem uma esposa doente e uma filha adolescente. Pelo menos é isso que ele diz. O ator que faz o vizinho bizarro é impressionante. Um vilão perturbador e que não duvido que tenha aparecido no sonho de muitos espectadores impressionados. Algumas cenas são particularmente marcantes, como a do rapto da família, dentro do carro. É quando o filme de Kurosawa atinge verdadeiramente o tom de sonho/pesadelo. Até os tons de cores na fotografia parecem diferentes. Talvez o problema do filme seja a duração, um pouco longa.

A VIDA APÓS A VIDA (Zhi Fan Ye Mao)

Há filmes sobre tudo. Até sobre um espírito de uma mulher que usa o corpo do filho pequeno como veículo para que o marido mude uma árvore de lugar. Sim, A VIDA APÓS A VIDA (2016), do chinês Hanyi Zhang, tem essa história como mote. Mas sabemos que a história não é o mais importante nesse tipo de obra. Também não é um filme feito para assustar, mas que deve ser visto com ar de intriga e contemplação. Este primeiro trabalho do realizador é tão espiritual quanto terreno. A força da natureza é tão imensa em toda a narrativa e nos chamados tempos mortos (se é que dá pra chamá-los assim) que a questão espiritual às vezes passa a ser vista como algo orgânico, concreto, por mais que o filme em si não o seja. É difícil explicar, mas esse tipo de obra, justamente por isso, deve ser vista com carinho e atenção. Além do mais, há também espaço para o humor. Só há uma cena bastante incômoda de maus tratos de um animal que realmente incomoda.

O LAMENTO (Goksung)

Eis um filme desafiador. Tanto pela duração (2h36min) para um filme de horror, quanto pelo modo como a trama vai sendo desfiada de maneira cada vez mais bizarra e estranha. O LAMENTO (2016), terceiro longa do sul-coreano Na Hong-Jin, ganhou muita visibilidade e atenção nos festivais de cinema, inclusive os daqui do Brasil. Assim tivemos a sorte de ter este filme em nosso circuito, ainda que em lançamento reduzido. Trata-se de uma história um tanto pesada sobre assassinatos cruéis cometidos em um vilarejo. Os criminosos parecem estar fora de si e as autoridades acreditam que eles estão ou estavam sob efeito de alguma droga ou coisa parecida. Porém, o inspetor de polícia Jong-Goo (Kwak Do-Won) suspeita que os casos tenham uma origem sobrenatural, tendo ligação com um estranho homem japonês que chegara ao local. Enquanto investiga o suspeito, ele percebe que sua filha pode ser também uma vítima do ataque. Um dos pontos altos do filme é a cena em que vemos uma disputa espiritual entre dois feiticeiros diferentes. É quando vemos até que ponto O LAMENTO é capaz de chegar em ser bizarro e sobrenatural.

quarta-feira, maio 03, 2017

VERMELHO RUSSO























É interessante esse aspecto seletivo da memória. Costumamos nos lembrar de coisas aparentemente sem muita importância, mas que acabam ficando, por algum motivo, registradas em nosso banco de dados com muito mais vivacidade do que certas ações e situações supostamente mais importantes. O trabalho que as meninas de VERMELHO RUSSO (2016) fizeram foi muito de resgatar momentos marcantes e reencená-los fazendo uma nova viagem à Rússia, dessa vez parar interpretar elas mesmas.

A primeira viagem ocorreu em 2009, quando Maria Manoella e Martha Nowill foram a Moscou para estudar teatro, em particular o celebrado método de atuação de Constantin Stanislavski. E do jeito que o filme mostra deve ter sido tudo muito interessante, com um professor que não fala nada de português comandando os ensaios que as duas amigas fazem de Tio Vânia, de Anton Tchekov. A vida passa a interferir na arte e no modo como as duas interpretam cada personagem. Uma delas precisa se mostrar feliz e radiante; a outra precisa ser triste e com autoestima baixa.

A viagem de Manu e Marta, que são os nomes adotados para elas nessa encarnação no cinema, como personagens de ficção, acaba sendo uma sucessão de situações e momentos muito bons mas também muito angustiantes e aflitivos, seja porque elas estavam em uma terra distante, seja por terem que enfrentar suas próprias inseguranças, pondo em xeque a própria amizade, que no começo do filme parece inabalável.

Interessante notar que o trabalho do diretor Charly Braun, de ALÉM DA VIAGEM (2010), acaba se tornando quase invisível. O filme parece ser um projeto feito e comandado por Manoella e Martha, até por terem sido elas quem vivenciou tudo aquilo, além de serem donas de cada cena e da evolução de suas personagens, mesmo com a aparição de alguns rostos conhecidos em cena, como Michel Melamed e Fernando Alves Pinto. De todo modo, o filme anterior de Braun era também o relato de uma viagem e o novo trás o protagonista do anterior como algo próximo de um alter-ego do diretor, como o cameraman que acompanha as duas moças.

Algumas cenas fogem da linha narrativa principal e funcionam como achados durante a viagem, como a velhinha que elas encontram no corredor do hotel e que trabalhou durante muitos anos na Mosfilm, ou a conversa com os embaixadores do Brasil e de Portugal na Rússia, vistos em uma festa, além da própria beleza gélida da cidade, que funciona como uma terceira personagem. Essa brincadeira entre verdade e ficção não deixa de ser interessante e nos deixa curiosos para saber detalhes das filmagens e de ter a oportunidade de conversar com as atrizes e o diretor. Principalmente com as atrizes, na verdade, que além de tudo são encantadoras. Aliás, se não fossem o filme não teria ganhado tão facilmente a nossa simpatia.

segunda-feira, maio 01, 2017

ALÉM DA ILUSÃO (Planetarium)























Há pelo menos dois motivos para se querer ver ALÉM DA ILUSÃO (2016). O primeiro deles está no fato de que a diretora é uma das roteiristas do excepcional APESAR DA NOITE (2015), de Philippe Grandrieux; o segundo está na presença de Natalie Portman como protagonista. Mas há também outros bons motivos. Afinal, uma história sobre duas irmãs que têm o dom de se comunicar com os mortos e que atraem a atenção de um produtor de cinema francês que deseja flagrar através das câmeras o fenômeno é ou não é atraente?

Pois bem. Acontece que a diretora Rebecca Zlotowski, em seu terceiro trabalho na direção, parece não saber conduzir a sua trama. Tudo parece muito solto e perdido. Por mais que haja algo de intrigante nas personagens femininas (Natalie e a jovem Lily-Rose Depp, filha de Johnny Depp) e no personagem do produtor de cinema, vivido por Emmanuel Salinger, suas motivações ficam no ar.

Ou ao menos desinteressantes ao longo do filme, por mais que a fotografia e outros aspectos técnicos sejam agradáveis de ver. Pode-se dizer que há o mérito de conquistar o espectador no início, com uma história intrigante, com as duas irmãs se apresentando em um teatro de vaudeville para um número considerável de pessoas. O espetáculo mostra a comunicação com uma pessoa falecida.

O fato de elas terem sido convidadas para mostrar no cinema os seus dons não deixa de ser curioso, já que, àquela altura, havia efeitos especiais que poderiam muito bem enganar uma plateia facilmente, seja através de truques de edição, seja mexendo no próprio negativo, como quer fazer um dos amigos do produtor que resolve acolher as duas irmãs americanas em sua casa.

O tal produtor é um homem que vive recluso. Não é casado e diz que quer se comunicar com o irmão falecido. Acontece que a presença que aparece na sessão mediúnica não é do irmão, mas de outra pessoa desconhecida. Mas ainda assim muito interessante para o homem, pois o leva a uma sensação de prazer erótica totalmente inesperada. Aliás, esse é outro dos motivos de o filme poder ser considerado pelo menos curioso: afinal, está se tratando de uma pessoa fazendo sexo com um fantasma.

Mas, afinal, qual é o problema do filme? Ou será que o problema é com a relação do espectador do filme, já que há sim algumas críticas positivas, ainda que poucas, circulando sobre o trabalho, exaltando suas qualidades. Ainda assim, pode-se dizer que ALÉM DA ILUSÃO carece de uma atmosfera de sonho ou de maior intriga diante do que ele se propõe. De todo modo, ao menos não se trata de um trabalho qualquer, desses bons, mas suficientemente fáceis de serem esquecidos. Apesar de tudo, há algo de charmoso neste filme torto de Rebecca Zlotowski.