terça-feira, abril 28, 2020

A HISTÓRIA SEXUAL DE TARZAN (Tharzan - La Vera Storia del Figlio della Giungla)

Lembro que na virada do milênio vi na banca de revistas o VHS deste filme dirigido pelo cultuado Joe D'Amato. Fiquei tentado a comprar, fui deixar para depois e alguém comprou antes. Mas não esqueci do título e do quanto deveria ser tentador e excitante vê-lo. Ainda mais naquela época, em que os vídeos pornôs ainda traziam, vez ou outra, um fiapo de história para enriquecer o que era mais importante: a voltagem erótica e a boa realização das cenas de sexo.

Lembro até que o Carlão Reichenbach elogiou bastante A HISTÓRIA SEXUAL DE TARZAN (1995), principalmente por causa de Rosa Caracciolo, esposa de Rocco Siffredi, e que de fato é lindíssima. A quantidade de vezes que usamos o botão fast forward do controle remoto diminui consideravelmente quando ela está em cena. É verdade que em alguns momentos achei um tanto tedioso, mas creio que esta versão internacional é melhor que a versão italiana justamente por ser menor na duração e não encompridar muito nas cenas de sexo, no entra e sai, que me interessa bem menos do que as preliminares e as situações eróticas. Uma versão mais enxuta, portanto, dá à narrativa mais agilidade.

Vi em uma cópia sem legenda e dublada em alemão. Não entendi nada do que falavam (que vontade que eu tinha de ter uma moça falante de alemão ao meu lado para falar no meu ouvido o que eles diziam). De todo modo, as falas não importam muito, por mais que eu goste de saber o que dizem. Sexo verbal faz o meu estilo, diferentemente do que achava Renato Russo.

Como não dá para levar tão a sério essas paródias - afinal, são paródias -, ainda assim não deixa de ser engraçado citar detalhes como o cabelo bem cortado do selvagem Tarzan, que sequer tinha visto uma mulher na vida antes ao encontrar Jane. Talvez o galã do pornô não quisesse se sentir tão ridículo aparecendo de peruca ou mesmo uma barba grande. Aliás, quando ela tira a barba dele para levá-lo para a "civilização", nem barba ele tinha também. :)

No mais, quanto à natureza mais erótica das cenas de sexo, gosto muito das primeiras, na selva, com direito a macaquinho gritando e tudo, e da última, na cama, bem caprichada e com a Caracciolo exuberante, já que ela estava com mais maquiagem e em ambiente confortável, valorizando ainda mais a sua beleza, que naturalmente já é de cair o queixo. Também não podemos deixar de exaltar a beleza masculina de Rocco Siffredi, que durante muito tempo foi um modelo de perfeição para muitos espectadores inclusive masculinos do cinema adulto. E fez sucesso até mesmo no cinema mainstream, sendo convidado pela diretora Catherine Breillat para atuar em filmes como ANATOMIA DO INFERNO e ROMANCE.

O barato de A HISTÓRIA SEXUAL DE TARZAN está justamente na ideia. Afinal, quem nunca pensou nas intimidades de Tarzan e Jane que atire a primeira pedra. E o filme até usa aquele grito famoso dele para falar com os animais da selva. O que não deixa de ser engraçado também. Quando ele encontra Jane desacordada no chão, ele olha para aquela mulher linda, vê o que tem por baixo de sua roupa. E mesmo quando ela acorda, nua, não se assusta. Até gosta de estar ali. Não que nem saber mais de procurar os amigos que estavam fazendo talvez um safári pela África. Aliás, este foi um dos primeiros filmes pornográficos a ser filmado inteiramente na África Oriental (no Quênia), segundo informação do IMDB.

O filme deve ter feito bastante sucesso, já que, no mesmo ano, D'Amato voltou a reunir Rocco e Rosa para a continuação, A HISTÓRIA SEXUAL DE TARZAN 2, desta vez, com Jane voltando à selva em busca do amado.

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O VINGADOR TÓXICO (The Toxic Avenger)

O maior clássico da Troma. Até hoje não tinha visto. E é muito divertido, especialmente o terço inicial, quando acontece todo o processo de bullying ao rapaz desajeitado que faz a faxina até ele se transformar no super-herói violento do título. Há um exagero proposital no modo como são mostrados os jovens malvados (os caras matam crianças atropeladas por esporte). E há também uma bem-vinda exploração do corpo, que era algo muito presente no espírito dos anos 1980. Pena que lá pelo meio o filme perde um pouco o ritmo. Ainda assim, merece o status de clássico dos filmes B sem vergonha. Direção: Michael Herz e Lloyd Kaufman. Ano: 1984.

UMA NOVA AMIGA (Une Nouvelle Amie)

François Ozon aos poucos foi dizendo a que veio, foi ficando mais fácil perceber sua assinatura em suas obras. Tanto pelo gosto pela narrativa clássica quanto pelos temas. Aqui, ele olha com carinho para a figura da travesti. Mas quem eu gostei mesmo no filme foi a Anaïs Demoustier. Onde ele encontra essas moças encantadoras? Ano: 2014.

O AMANTE DUPLO (L'Amant Double)

Ozon segue brincando com gêneros. Aqui ele brinca de ser Cronenberg, Hitchcock, De Palma. Melhor ver o filme sem saber nada a respeito da trama. Gostei muito da Marine Vacht, a mesma de JOVEM E BELA (2013). Mas que aqui aparece sempre com os olhos com olheiras. É um dos trabalhos de Ozon com maior cuidado na direção de arte. Ano: 2017.

segunda-feira, abril 27, 2020

ESTADO ITINERANTE

A primeira imagem de um filme diz muito do que ele é e do que ele nos mostrará. No curta-metragem ESTADO ITINERANTE (2016), a primeira imagem que vemos é a de Viviana (Lira Ribas), jovem cobradora de ônibus, movimentando-se para fazer uma ligação em um orelhão. Na breve cena, há um senso de urgência que permeará a trama: o motorista pergunta a ela quantos minutos faltam para eles saírem. No pouco tempo que ela tem para conversar com a pessoa do outro lado da linha, sabemos que ela precisa de um lugar para passar a noite.

A própria imagem da noite, sempre mostrada com pouca iluminação artificial, é bastante explorada no filme, aparecendo tanto durante o trabalho da personagem, quanto em seu momento de descanso. Ou que seria de descanso, já que, com medo de voltar para casa e encarar um marido abusivo e violento, ela, assustada, tenta passar o tempo longe de sua residência. A opção por não mostrar a figura do opressor, inclusive, o torna ainda mais aterrador.

A diretora sabe que está lidando com o suspense, mas, principalmente, que está lidando com a dor e com os sentimentos de uma mulher abalada pela opressão e pela violência doméstica. E por isso há também uma ênfase na união feminina imediatamente após a cena mais antológica do filme, que é a cena em que ouvimos "Don't Cry", do Guns N' Roses. Após a catarse da referida cena, estamos já tão fragilizados com tudo, que ver uma colega de trabalho de Vivi oferecendo mais tempo para ela ficar em sua casa aumenta ainda mais o misto de sentimentos, entrando em cena a gratidão.

Ana Carolina Soares também tem consciência da necessidade de explorar o extracampo, nas cenas em que a protagonista aparece mais de perto, mas há cenas em que os planos gerais se mostram necessários para trazer suspense. Três exemplos: a cena no bar, com as quatro mulheres tomando cerveja e a chegada de alguns motoqueiros fazendo acrobacias; a cena da entrada na casa, perto do final, quando segundos parecem durar minutos, daí o sentido perfeito da palavra "suspense"; e o momento final, com a aproximação ameaçadora de um carro.

Quanto à referida cena de "Don't cry", sua explosão de emoções se deve tanto ao poder da canção em si, quanto à situação da protagonista e às escolhas da cineasta para a construção do plano. Além do mais, há algo de muito simbólico com a escolha da parceira de cena de Vivi, a atriz, mulher, trans e negra Cristal Lopez, que já carrega em si, mesmo que não a conheçamos, a condição de pessoa marginalizada pela sociedade machista e violenta. A tristeza da situação explode ao final da canção. Até então o que se mostrava nas atitudes de Vivi eram sorrisos tristes, tentativas de esquecer os problemas. E o que vem a seguir, junto com o final tenso da canção, é também o pranto de Vivi.

Com tudo isso, não deve demorar muito para que ESTADO ITINERANTE seja abraçado como um dos clássicos da nossa cinematografia.

Texto originalmente publicado no site da Aceccine, por ocasião de uma mostra dedicada a filmes premiados pela associação desde sua fundação.

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FORO ÍNTIMO

Queria ter me envolvido mais com o drama do juiz que é obrigado a ficar preso no próprio ambiente de trabalho para não ser assassinado. O filme utiliza de um fechamento da janela de aspecto para passar uma sensação de sufocamento e perturbação do personagem. Nem sempre funciona de maneira eficiente, mas gosto do visual, da fotografia preto e branco, dos poucos personagens que aparecem. E o ator principal tem pelo menos um momento de surto que deveria destacá-lo como um ator conhecido e importante. Direção: Ricardo Mehedff. Ano: 2017.

HEBE - A ESTRELA DO BRASIL

Que bela surpresa esta cinebiografia de Hebe Camargo, aqui brilhantemente interpretada por Andrea Beltrão, uma atriz que é adorada por gerações e gerações de crianças, jovens e adultos. O filme faz parte dessa leva de filmes de personalidades importantes do Brasil que ajudam a compor mais e mais a nossa história. Excelente a escolha da roteirista Carolina Kotcho de ambientar a trama apenas em determinado período da vida de Hebe, no caso, o ano de 1985. Há cenas verdadeiramente emocionantes. Nem é preciso ser fã da Hebe ou conhecedor de sua história. O filme de Farias é hábil também em dar alfinetadas com muita classe nesse governo atual. Assim, cada filme brasileiro é mesmo um gesto político. Vamos ao cinema ver filmes brasileiros, minha gente! Direção: Maurício Farias. Ano: 2019.

DIAS VAZIOS

Sinto-me atraído por histórias de solidão e sentimento de vazio de jovens, tanto em cidades grandes quanto em cidadezinhas. As histórias acompanham dois casais que se cruzam tanto pelo caminho real quanto pelo caminho da ficção, já que um dos rapazes está escrevendo um livro sobre o outro casal. A saída de cena de um dos personagens diminui um pouco o impacto do filme e eu saí do cinema pensando em não ter gostado do resultado. Mas aos poucos, em minha memória afetiva, o filme tem crescido, principalmente no modo corajoso como termina. Aliás, isso é meio que mérito do premiado romance do qual ele é adaptado. Bela estreia na direção de Robney Bruno Almeida. Ano: 2018.

domingo, abril 26, 2020

METRÔ DE NOVA YORK (SUBWAYStories: Tales from the Underground)

Curioso como eu escrevi sobre A NOITE DO DESEJO, de Fauzi Mansur, e esqueci de mencionar uma cena que muito me incomodou: a de um dos protagonistas se aproximando de mulheres no ônibus para se aproveitar sexualmente delas. Não que o filme e seu diretor sejam a favor de tal ato: apenas era algo presente na característica machista e abusiva do personagem, que mais à frente teria suas máscaras postas no chão. Na década de 1970, inclusive, essa coisa de se roçar nos ônibus seria sucesso imenso de público com A DAMA DO LOTAÇÃO, de Neville d'Almeida.

E por que falei sobre isso? Porque o melhor segmento de METRÔ DE NOVA YORK (1997) é o dirigido por Abel Ferrara, "Love on the A Train", no qual um homem (Michael McGlone) começa a ter um tipo de relação silenciosa com uma mulher (Rosie Perez) no metrô. No primeiro dia do encontro, ela, uma total estranha, toca a mão dele e lentamente a escorrega até encostá-la em seu sexo. A princípio, ele chega a imaginar que pode ser algum tipo de coincidência ou algo vindo da mente dele, mas todos os dias, no mesmo horário, os dois repetem e ampliam esse contato silencioso e extremamente sensual. Curiosamente, Ferrara já havia se mostrado adepto de situações eróticas dentro do metrô em uma cena de O REI DE NOVA YORK (1990).

O que temos aqui é um exemplar bem mais leve do que estamos acostumados a ver de Ferrara, por mais que o conto seja sobre um homem que se vê dividido entre a esposa, vivida por Gretchen Mol, que trabalhou com Ferrara em OS CHEFÕES (1996), e aquela mulher misteriosa e que poderia significar a ruína de seu casamento. Então, há a pulsão erótica, mas há também o homem dividido e profundamente tentado pelo pecado, se formos ver o curta por um viés católico, como é o cinema de Ferrara.

METRÔ DE NOVA YORK foi um projeto da HBO que contou com a colaboração de dez diretores. O canal fez um concurso solicitando a cidadãos nova-iorquinos a escreverem histórias reais sobre suas experiências no metrô da megalópole. As histórias vencedoras seriam adaptadas para um filme. Soube no IMDB que Spike Lee chegou a dirigir um segmento, mas que não chegou a uma edição final. Uma pena. Até porque os nomes mais ilustres da lista de diretores são apenas os de Ferrara e de Jonathan Demme, que abre e encerra o filme, em tom alegre.

Entre as outras boas histórias, destaco "The Red Shoes", dirigida por Craig McKay, em que um cadeirante entra em um vagão pedindo esmola e afirmando ser um veterano de guerra e que acaba por se desentender com uma mulher; "The 5:24", de Bob Balaban, com a participação brilhante de Jerry Stiller, como uma espécie de misterioso conselheiro para um jovem executivo; e "Sax Cantor Riff", de Julie Dash, que tem uma bela cena de uma moça cantando lindamente em um orelhão.

Enfim, por mais que o resultado seja bem irregular, o que já é de se esperar de um filme de segmentos com tantos diretores, vale a conferida, principalmente, claro, pelo ótimo material entregue por Ferrara.

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AS FÁBULAS NEGRAS

O filme que escolhi para homenagear o nosso querido José Mojica Marins no dia do seu falecimento foi este seu último trabalho na direção, ao participar desta produção a oito mãos com outros três nomes mais recentes do horror brasileiro. Nos créditos finais, o Mojica diz que até preferia ter a história do Saci contada com um menino de uma perna só apenas, mas, sendo um projeto do Aragão, a criação de um monstro mais aterrorizante para o papel do habitante da mata até que foi uma boa ideia. Das cinco histórias (duas são do Aragão), a que eu mais gosto é a do Petter Baiestorf, sobre a maldição de um lobisomem nos pampas. Gosto do andamento, do sangue jorrando e de sua bela conclusão. No mais, temos Loira do Banheiro (Joel Caetano), um monstro do esgoto e a Iara (ambos por Aragão). Bom compilado com aquela cara de produção feita por amigos para se divertir e exaltar o gênero horror com muito gore. Direção: Rodrigo Aragão, Petter Baistorf, José Mojica Maris e Joel Caetano. Ano: 2015.

O ÚLTIMO TRAGO

Não é um filme fácil, mas com um pouco de boa vontade para ver algo mais experimental e menos óbvio é possível apreciar a beleza de O ÚLTIMO TRAGO, do coletivo Alumbramento. Gosto especialmente do segundo e mais longo ato, em janela scope, que se passa quase todo em um bar abandonado em um sertão. Há duas cenas cantadas muito boas e há um cuidado com a direção de arte e com pequenos detalhes que chama a atenção. E temos os recortes de literatura que pontuam várias falas dos personagens, como que para enfatizar seus posicionamentos ideológicos, nem sempre fáceis de compreender, mas que são um convite à reflexão. Ainda gosto bem mais de COM OS PUNHOS CERRADOS (2014), como obra política, mas este aqui também me ganhou. Direção: Pedro Diogenes, Luiz Pretti e Ricardo Pretti. Ano: 2016.

HISTÓRIAS DE ESTOCOLMO (Stockholm Stories)

O único filme que pude ver (com sono, depois de um dia cansativo de trabalho) da Mostra de Cinema Nórdico acabou não me agradando muito. Me pareceu uma série de histórias bobas com potencial para serem boas. A maioria dos personagens ou é chato ou é desinteressante. Ainda assim, a sala do Cinema do Dragão estava lotada, teve apresentação de dois cônsules (um da Suécia e outro da Dinamarca, o mais engraçado) e uma embaixadora da Noruega (acho). Todos muitos simpáticos e dispostos a usar o português para se comunicar com a plateia. Bem legal. Direção: Karin Fahlén. Ano: 2013.

sábado, abril 25, 2020

A NOITE DO DESEJO

É tentador fazer de imediato uma comparação deste A NOITE DO DESEJO (1973), de Fauzi Mansur, com o clássico de Walter Hugo Khouri NOITE VAZIA, ou até mesmo com outros exemplares khourianos, que costumam apresentar homens à procura de sexo para não apenas satisfazer seus instintos mais primitivos, como também preencher algum vazio na alma. Então, o filme de Mansur seria uma versão bem menos existencialista e chique, já que o que vemos aqui são dois trabalhadores pés-rapados em busca de prostitutas que possam oferecer um serviço que eles possam pagar.

Os personagens são vividos por Ney Latorraca (Toninho) e Roberto Bolant (Giba) e somos apresentados à pobreza deles logo nas cenas iniciais. Toninho, por exemplo, mora com a mãe em uma casa que mal tem água encanada, e namora uma moça bonita do subúrbio. Sexo antes do casamento, nem pensar para a moça. Aliás, que bonito quando os dois estão dando uns amassos e ao fundo ouvimos "Você não me esqueceu", do cancioneiro de Roberto Carlos, tão presente em tantos filmes da Boca do Lixo e em produções cariocas também.

Soube, lendo o excelente texto de Andrea Ormond, presente no livro Ensaios do Cinema Brasileiro - Vol. 1, que a trama paralela que acontece no filme e que, a princípio, parece destoar um pouco da principal, foi incluída porque a obra de Mansur foi retalhado pela censura. Então, a solução, muito inventiva, aliás, foi criar uma trama à parte para correr em paralelo que também envolvesse o universo da prostituição. Na tal trama, vemos a prostituta grávida Selma (Selma Egrei, linda!) e o namorado do interior que sai à sua procura nos bordéis, vivido por Ewerton de Castro.

No fim das contas, o resultado acabou deixando o filme até mais rico e mais charmoso. Mérito da equipe de primeira linha do filme. Vejam só: a fotografia ficou a cargo de dois gigantes: Ozualdo Candeias e Antonio Meliande; a montagem foi feita por Inácio Araújo e pelo próprio Mansur, com assistência do monstro Jean Garrett; e o roteiro foi co-assinado com Luiz Castellini, que fez pequenos clássicos da nossa pornochanchada.

Naquela época - início dos anos 1970 - o grafismo nas cenas de sexo ainda era muito sutil nas produções eróticas brasileiras. Por isso, vemos, por exemplo, a personagem de Marlene França, uma das prostitutas e talvez a personagem mais rica do filme, escondendo sua nudez na cama em determinado momento. Aquilo só se justificaria por um tipo de autocensura e não por certo pudor partindo de uma profissional do sexo segura de si.

A montagem feita para salvar o filme (e ainda bem que o salvou), por mais que o tenha deixado charmoso e bonito, sem falar que é brilhante a edição do clímax, alternando as duas tramas paralelas freneticamente; apesar disso, deixou algumas coisas um tanto confusas, como um possível acordo existente entre os personagens de Bolant e Betina Viany. Além do mais, a chegada da polícia no hotel de (décima-)quinta categoria parece também um pouco estranha, por mais que, de propósito ou não, possa trazer uma espécie de alegoria tanto do Brasil do auge dos anos de chumbo quanto da situação do próprio filme retalhado.

Porém, como grandes filmes são feitos de grandes cenas, não há como negar que há muitas delas em A NOITE DO DESEJO. A conversa no bordel enquanto esperam a vinda da segunda garota de programa; a chegada no hotel vagabundo; o encontro de Pedrinho (Ewerton de Castro) com sua ex-noiva nas ruas dos bordéis e clubes de striptease; o amanhecer chegando no hotel do Centro; a cena de Toninho pedindo dinheiro à noiva no ônibus. É cinema de dar gosto. Torto, sujo e feito com brilhantismo por uma turma que sabia o que fazia.

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SEXO - SUA ÚNICA ARMA

Se não fosse a conclusão, eu poderia dizer que se trata de uma pequena joia quase esquecida ou subestimada do cinema brasileiro. Ainda assim, não fica a dever a muitos filmes exploitation de vingança produzidos nos Estados Unidos, na Europa ou na Ásia. Na trama, Selma Egrei interpreta uma jovem mulher que é adotada por uma família de descendentes de italianos. Ela se faz de cega para plantar o caos naquele lugar. Fica logo claro isso e fica também muito divertido quando ela começa a transar com os homens da família. Talvez tenha faltado mais força na parte do horror e em uma conclusão mais satisfatória. O que fica é mais a tragédia da família do que o gosto da vingança da mulher. Selma Egrei já havia trabalhado com o então já veterano diretor Geraldo Vietri em ADULTÉRIO POR AMOR (1979). Ano: 1981.

QUARTO CAMARIM

Acredito que seja um filme que ficará presente na memória por um bom tempo, mesmo com suas imperfeições. Ou sei lá se dá pra chamar assim. Acho que trata-se mais da relação da gente como o filme, do quanto criamos certas expectativas que são frustradas. Na trama, uma sobrinha busca reencontrar a seu tio Roniel depois de 27 sem qualquer contato. Porém, seu tio agora se chama Luma, é travesti, performer, trabalha como cabeleireira e vive em São Paulo. Direção: Camele Queiroz e Fabricio Ramos. Ano: 2017.

A GAROTA DO CALENDÁRIO

Não sou tão fã do cinema de Helena Ignez como diretora, mas uma vez que a gente já sabe que verá um filme fora dos padrões comuns, é bem agradável de ver. Só que eu queria ver mais Djin e menos Guerreiro. Mas o personagem dele é muito legal, sim. E a questão do sonho versus realidade é uma das coisas que eu mais gosto no filme. Mais do que as frases de efeito colocadas para os personagens. O legal é que lembra algumas coisas do cinema dos anos 60-80. Ano: 2017.

quinta-feira, abril 23, 2020

OS CHEFÕES (The Funeral)

Coisas que nos aborrecem acontecem o tempo todo. Mas quando elas acontecem justamente nesses dias de confinamento, afetam ainda mais a tentativa de paz que queremos ter. Mas isso é só um pequeno desabafo e uma forma de iniciar a escrita, que estava travando por causa desse pensar naquilo que me incomoda e naquilo que precisa ser feito para trazer um pouco mais de alento para o espírito. Pois bem, falemos então de algo que, apesar do conteúdo um tanto pesado e às vezes até mórbido, é o que tem me trazido mais ânimo para continuar atualizando este espaço.

Falemos de mais um filme de Abel Ferrara revisto, OS CHEFÕES (1996), última parceria do cineasta com seu roteirista de longa data Nicholas St. John. Na época que o filme foi lançado, ele foi abraçado por muitos não-fãs de Ferrara, por ser um trabalho mais próximo de um formato mais acadêmico, por tecer mais as relações entre os personagens em uma estrutura mais ou menos convencional, por assim dizer, e também por dar um tremendo espaço para o excelente elenco. Ou seja, se o Oscar fosse um prêmio menos careta, este filme estaria lá nas categorias principais.

Aliás, se eu já havia me admirado com o elenco de O REI DE NOVA YORK (1990), o que temos aqui é algo fenomenal: Christopher Walken, Chris Penn, Annabella Sciorra, Isabella Rossellini, Vincent Gallo, Benicio Del Toro, Gretchen Mol e Victor Argo, para citar os mais conhecidos. Ou seja, se em O REI DE NOVA YORK o forte estava no elenco masculino, aqui a presença feminina também é brilhante, até para fazer um contraste com o sangue quente da família, em especial as personagens de Sciorra e Rossellini.

Porém, antes de mais nada, assim como vários outros trabalhos de Ferrara, OS CHEFÕES (acho um horror este título brasileiro genérico) reflete sobre a vida e a morte. A morte aparece de maneira muito mais realista e chocante, nunca banalizada. Assim, a imagem da chegada de um caixão na casa de uma família já é por si só um momento de muito impacto, já que vemos também o choro das mulheres da família. E um maior clamor ainda quando veem o rosto do morto, o jovem Johnny, vivido por Vincent Gallo.

Os diferentes momentos de encarar a morte, seja na posição de pessoa prestes a morrer, seja na de executor, são muito angustiantes também. E há aquele momento muito especial em que a família de gângsteres leva o personagem de Del Toro para olhar para o rosto do morto, ainda prostrado na sala, à espera do momento do funeral. E em todos esses momentos, Ray, o personagem de Christopher Walken, se mostra extremamente admirável e até mesmo adorável, na sua maneira de tentar compreender os motivos de tal pessoa ter cometido o crime.

Ao se preparar para matar um rapaz ele diz que já sabe que vai queimar no inferno e que a melhor coisa a fazer é se acostumar com a ideia. Há toda essa relação muito associada ao pecado como maldição para aquela família. O padre diz em determinado momento: "a única maneira de qualquer coisa mudar é esta família passar por uma total transformação".

Outro momento que mostra o quanto seus personagens têm uma noção de bem e mal está na cena de Chez (Chris Penn) tentando convencer uma jovem a ir para casa com cinco dólares, em vez de enveredar pelo mundo da prostituição. Quando ela diz que prefere receber 10 e transar com ele, Chez age de maneira extremamente violenta com a garota. Afirma que ela vendeu sua alma. Aliás, a personalidade de Chez daria para fazer todo um artigo a respeito, já que em outro momento ele é visto como louco pela própria esposa, vivida por Isabella Rossellini, que dá a ele uma ideia de ir a um hospital especializado e supostamente abençoado por uma santa.

Cada cena, cada conversa, em especial as que se passam em momento pós-morte de Johnny, são carregadas de grande força dramática. Já os flashbacks focados em Johnny, que trazem luz para quem ele foi, não possuem a mesma força e talvez sejam o calcanhar de Aquiles do filme. Nesses momentos, vemos sua presença em reuniões comunistas, sua tentativa de entender a vida de maneira filosófica e seu amor pelo cinema e pelas artes (a frase "A vida não faz sentido sem o cinema" sai da boca dele). E o filme começa com sua imagem dentro de uma sala de cinema, vendo Humphrey Bogart em A FLORESTA PETRIFICADA, o que ajuda a contextualizar o momento da narrativa: década de 1930. E há também um momento-chave da infância de Johnny que é destacado.

Há quem ache o final brusco demais. E talvez seja mesmo. Mas os cortes e a violência brutal e o tom trágico só tornam o filme mais impressionante e cheio de força e vigor, acentuando o ar de maldição da família. Perfeitamente coerente com o espírito do cinema de Ferrara.

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MILLENNIUM - A GAROTA NA TEIA DE ARANHA (The Girl in the Spider's Web)

Acho que a história, mesmo sendo até um pouco convencional, daria pano pra manga para um super filme. E até que não faltou uma produção boa, mas faltou inventividade. A gente percebe que há dinheiro, mas tem horas que parece um supercine, de tão genérico. Em alguns momentos a construção do mito Lisbeth parece razoável, mas depois perde a força, com a trama. E o que é aquela trilha sonora qualquer coisa? Ao menos eu achei charmosa a vilã de vermelho. Parece coisa de quadrinho italiano. Direção: Fede Alvarez. Ano: 2018.

O DOUTRINADOR

Pra começar, o filme traz um herói que vê a saída para acabar com a corrupção matando os bandidos. Mas o filme tem outros problemas. Personagens ruins, roteiro ruim, vilões caricatos... Pena, pois o Bonafé tinha codirigido o ótimo LEGALIZE JÁ - AMIZADE NUNCA MORRE (2017). quando o roteirista traz para a realidade brasileira, o teor direitista se intensifica. Há o colega do policial que questiona os seus atos e oferece alguma contrapartida na discussão, mas tudo é muito simplista, carregado. Direção: Gustavo Bonafé e Fábio Mendonça. Ano: 2018.

A PRIMEIRA NOITE DE CRIME (The First Purge)

Destaque para o elenco de negros e também para o teor mais político e mais interessante, levando em consideração a nova ordem mundial, com essa onda de ode à violência como necessidade para combater os problemas do mundo. Direção: Gerard McMurray. Ano: 2018.

segunda-feira, abril 20, 2020

CASA

Ultimamente tenho voltado a prestar mais atenção à astrologia. Até para entender o que está acontecendo no mundo. O cenário no céu apresenta uma poderosa conjunção em capricórnio dos planetas Plutão, Saturno e Júpiter, algo que não acontece há centenas de anos. A última vez, ao que parece, foi no século XII. E a última conjunção Plutão/Saturno em capricórnio foi em 1914, quando deu início a Primeira Guerra Mundial. No meio disso tudo há também os tais eclipses no eixo capricórnio-câncer, que vêm acontecendo desde 2018. No atual cenário, a casa de câncer, a casa do lar, é fortalecida. Daí tenhamos que ficar em casa em um cenário de completa mudança social, política e econômica. Como não sou astrólogo e não quero me alongar também com o pouco que tenho lido e assistido em lives interessantes, fico por aqui, apenas para fazer um link com um dos melhores filmes brasileiros que tive o prazer de ver neste início de ano, e ainda inédito no circuito comercial.

CASA (2019), de Letícia Simões, lida com a família de uma maneira bastante ousada por parte da diretora. Já havia me tornado um admirador da cineasta quando vi o belo O CHALÉ É UMA ILHA BATIDA DE VENTO E CHUVA (2018), tão sensível ao nos apresentar as cartas do romancista Dalcídio Jurandir, enquanto a diretora atravessa os lugares por onde ele passou no Pará. É uma experiência linda. Uma viagem de barco e uma exploração de lugares e pessoas fantásticos. O trabalho em CASA é mais corajoso pois a diretora se expõe muito mais.

Não se trata apenas de se desnudar de maneira sutil através de trabalhos que dizem muito de si sem escancararem a porta. O que vemos aqui é algo muito intenso. Letícia, a diretora, visita a mãe em Salvador. Sua mãe, Heliana, é uma mulher com características muito próprias. Bipolar, mantém a sete chaves arquivos de fotos, cartas e escritos acumulados ao longo de muitos anos. Essa questão de guardar da mãe é muito forte e muito fascinante também.

Mas o que tornaria as tensões fortes seria a presença de outro personagem central da narrativa, a avó de Letícia, mãe de Heliana. A avó, de nome Carmelita, vive em uma casa de repouso e recebe visitas da filha com alguma frequência. Acontece que Heliana guarda uma mágoa imensa da mãe, pelo fato de ela ter lhe batido muito quando ela era criança e isso ter causado feridas profundas. Assim, Heliana é sempre muito ríspida e agressiva com Carmelita. E nada tão tenso como a reunião das três para um jantar em família. E tudo é flagrado pelas lentes da diretora.

Acompanhar as três gerações de mulheres é também objeto de muito interesse, já que cada uma carrega o espírito de seu tempo, com o que há de positivo e negativo nisso. Heliana deseja muito que Letícia lhe dê um neto, mas a cineasta diz que não pretende ter filhos, o que causa certo desgosto à mãe. Letícia se separou e quer seguir um caminho de liberdade, sem amarras com as convenções sociais, por mais que guarde semelhança com a mãe no que se refere à vontade de deixar algo registrado. No caso, documentários sensíveis e femininos sobre afetos e relacionamentos. Que o tempo esteja do lado de Letícia Simões, para que possamos ter o prazer de ver mais trabalhos seus.

+ TRÊS FILMES

O CHALÉ É UMA ILHA BATIDA DE VENTO E CHUVA

Eu era o único espectador na sessão deste belo filme sobre o paralelo entre as cartas poéticas do romancista Delcídio Jurandir lidas pela diretora e a viagem que ela própria fez ao interior do Pará, com foco na educação. Uma pena que mais gente não está dando o devido valor a essas pequenas grandes obras que aparecem para nos fazer viajar, sentir e pensar no outro. A narração da diretora é linda, alternando sua própria experiência com as palavras do sofrido escritor. As cenas nas escolas públicas também são tocantes. Direção: Letícia Simões. Ano: 2018.

BIXA TRAVESTY

Não conhecia o trabalho de Linn da Quebrada e por isso é muito importante ter o cinema como elo de ligação com a arte que dialoga mais com uma pequena parte do público. As cenas de que eu mais gosto no filme são as que apresentam Linn e sua amiga Jup apresentando um programa de rádio e desconcertando as visões quadradas de gênero, dando seu recado para machistas e falando com seu público também. As cenas de performance também são boas, além de imagens do passado, que servem para dar ainda mais profundidade a essa personagem fantástica. É um filme que também trabalha bastante com a relação com o corpo, especialmente o corpo nu. Direção: Claudia Priscilla e Kiko Goifman. Ano: 2018.

RESSACA

Um dos mais tristes e ao mesmo tempo mais bonitos filmes sobre o cenário político brasileiro recente. Aqui vemos o quanto os artistas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro sofreram quando se viram sem receber seus salários, mas bastante apegados àquilo que sabem e gostam de fazer. RESSACA não é só mais um filme sobre a dura realidade brasileira (e mais especificamente no Rio), mas principalmente uma declaração de amor à arte. Ao apresentar o filme no Cine Ceará 2019, a diretora fez um discurso muito emocionado sobre a necessidade de políticas de apoio à cultura. Muito bem construída também a divisão do filme em capítulos/personagens. Uma surpresa e tanto. Direção: Patrizia Landi e Vincent Rimbaux. Ano: 2019.

domingo, abril 19, 2020

FLEABAG - SEGUNDA TEMPORADA (Fleabag - Season 2)

Quando vi a primeira temporada de FLEABAG (2016) não entendi tanto o motivo de tantos amarem a série, embora tenha gostado bastante. Ao ver a segunda temporada (2019), depois de quase um ano, foi que a série me ganhou e talvez eu tenha finalmente entendido. Acredito que pelo fato de que, enquanto a primeira temporada é mais centrada na culpa, esta segunda é uma história de amor. E me fez rir muito mais, talvez por eu já ter criado um pouco mais de familiaridade com os personagens e principalmente com a protagonista, mas creio que também pelo fato de Phoebe Waller-Bridge ter azeitado seu trabalho de criadora, roteirista e atriz principal, de modo que tudo ficasse perfeito. Sim, perfeição não é uma palavra exagerada quando se fala deste trabalho único.

Na primeira cena desta segunda temporada, que se passa depois de alguns anos e dias dos eventos da primeira, vemos a protagonista limpando o nariz sangrando em um banheiro. Perto dela, uma moça, no chão, também tem está com o nariz sangrando. Fleabag (Waller-Bridge) olha para a audiência na sua tradicional quebra da quarta parede e nos diz: isto é uma história de amor. Assim, por mais que nos esqueçamos por um momento do que ela falou, já que somos imersos a uma discussão familiar que acontece em um restaurante onde se passa todo o primeiro episódio, aos poucos, ao longo da temporada, lembraremos disso.

Distribuída ao longo de apenas seis episódios que duram menos de meia hora, às vezes pouco mais de vinte minutos, a segunda temporada de FLEABAG tem uma estrutura fragmentada de série de TV mesmo. Poderia sim ser vista como um único filme marcado por capítulos, mas cada episódio tem uma cara própria. Por exemplo, se o primeiro episódio se passa todo dentro do restaurante e mostra uma protagonista um tanto calada por causa de sua fama de causar confusões, tendo como amigos apenas a nós, espectadores, os episódios seguintes serão marcados por outros eventos, como a festa em homenagem a mulheres de negócios organizada por Claire (Sian Clifford), a irmã workaholic de Fleabag, ou aquele mais centrado em flashbacks dolorosos e que nos aprofunda na história da nossa heroína.

Mas o coração desta temporada é sim a história de amor. E como as melhores histórias de amor já criadas, esta lida com um tipo de amor impossível. Se não exatamente impossível, no mínimo, com um tanto de obstáculos. No caso, a paixão que evolui por um jovem padre (Andrew Scott) cujo nome nunca é mencionado, assim como não são mencionados os nomes do pai (Bill Patterson) e da madrasta (a oscarizada Olivia Colman). O padre é apresentado já no episódio inicial. Ele será responsável por presidir a cerimônia de casamento do pai e da madrasta.

Esse padre tem algumas peculiaridades, como falar muito palavrão e beber muito. Essa distinção do que se costuma esperar de um padre é logo posta em cheque. Assim como a natureza antissocial, pelo menos naquele momento, pelo menos diante da família que não gosta tanto assim dela, de Fleabag. E isso talvez tenha atraído a atenção do padre. Tanto é que ele é o único que percebe os momentos em que a personagem fala para a câmera.

Um amigo meu acredita que isso se dá pelo fato de que o padre talvez seja a única pessoa que presta atenção de fato nela. É possível. Mas acreditei, enquanto via os episódios, que isso se dava devido a algum tipo de aproximação com Deus ou com a espiritualidade, algo de metafísico, já que o dom de contar a própria história para um grupo de pessoas enquanto as demais agem como se alheios ao que o destino lhes reserva, é apenas da protagonista, uma espécie, portanto, de deus. Porém, pensar nisso é também pensar no quanto a personagem sofre em não saber dirigir a própria vida, ao fazer tudo errado.

Na antológica cena do confessionário, quando ela diz isso ao padre, quando ela se abre finalmente, mostrando-se humana, demasiado humana, é o momento em que o sacerdote se aproxima dela e corre o risco de sacrificar seu sacerdócio, sua intenção de abdicar do amor de uma mulher (ou de um homem) para amar apenas a Deus, ou algo do tipo. Pela primeira vez, vemos Fleabag apaixonada - e não correndo atrás de sexo casual para aplacar a dor e a culpa -, e o amor apresentado é do tipo avassalador.

E chegamos, então, ao intenso e último episódio, o que apresenta o casamento do pai e da madrasta, embora esse evento seja apenas um pano de fundo para o turbilhão de emoções na vida dos personagens, principalmente Fleabag, Claire e o padre. Embora Phoebe Waller-Bridge seja delicada também o suficiente para não pesar a mão, o aperto que fica no peito nos momentos finais da série é tão familiar a quem já amou, que nem é preciso dizer muito. As poucas palavras, as expressões e as imagens nos bastam.

+ TRÊS COMÉDIAS

MINHA MÃE É UMA PEÇA 3 - O FILME

Temos aqui um filme que é quase que completamente devedor do talento de Paulo Gustavo, corroteirista, junto com a diretora Susana Garcia, e que consegue fazer rir de cenas bem banais, como na cena inicial, fazendo compras na feira. O filme relaxa, por mais que em certo momento a voz histriônica da protagonista tenha ferido um pouco meus ouvidos. Isso aconteceu no primeiro filme também. Mas creio que o problema é comigo. As cenas envolvendo o casamento de Dona Hermínia são muito boas e talvez seja o ponto alto do filme. A sala estava lotada numa quinta-feira. E era apenas uma das quatro salas do multiplex a exibir o filme. É um fenômeno, sem dúvida. Ano: 2019.

AS TRAPACEIRAS (The Hustle)

Impressionante como estragaram o filme original, o ótimo OS SAFADOS, de Frank Oz. Se bem que já faz tanto tempo que vi que não saberia dizer o que há de novidade. Provavelmente é outro filme. Mas isso nem importa muito. O que importa é que há poucos momentos realmente engraçados no filme e isso prejudica e muito o que poderia ser uma comédia divertida. AS TRAPACEIRAS melhora quando entra em cena o personagem de Alex Sharp, um dos protagonistas de COMO FALAR COM GAROTAS EM FESTAS. Direção: Chris Addison. Ano: 2019.

CHORAR DE RIR

Simpático mas bastante irregular comédia sobre comediante de sucesso (Leandro Hassum) que tenta a carreira de ator dramático no teatro e se vê frustrado com o que acontece. Hassum tem o velho problema de não ser sempre engraçado mas aqui o seu papel é próximo do dramático. O bom elenco de apoio ajuda. Direção: Toniko Melo. Ano: 2019.

sábado, abril 18, 2020

SEDUÇÃO (Cat Chaser)

Achava que não encontraria uma cópia legendada deste filme menor de Ferrara, que infelizmente não teve um bom resultado, muitos dizem por ter sido arruinado na sala de montagem pela Fox e acabou sendo lançado apenas em VHS. O corte original tinha 157 minutos, o que não quer dizer que tudo constaria, mas ver um filme de resultado confuso e com fortes problemas de ritmo com apenas 90 minutos é sinal de que os cortes feitos foram para prejudicar o filme. Inclusive, o próprio ator Peter Weller se recusou fazer a voice-over na pós-produção e outra voz é ouvida, o que não deixa também de ser muito estranho.

A princípio essa voice-over que SEDUÇÃO (1989) traz parece uma marca tanto da adaptação do romance de Elmore Leonard (e que foi roteirizado pelo próprio romancista) quanto da própria característica dos filmes noir. A mim não me incomodou tanto, mas não deixa de parecer uma muleta, levando em consideração o resultado do filme.

Uma das vantagens de SEDUÇÃO para a carreira que Ferrara seguiria de maneira gloriosa a partir de O REI DE NOVA YORK (1990) é que, desde então, ele não abriria mão da montagem final, ou pelo menos de negociar com veemência para que sua visão e sua vontade estivessem no corte definitivo. Foi mais ou menos o que aconteceu com David Lynch quando dirigiu DUNA e desde então jamais faria outro projeto que não fosse pessoal. Ferrara, no entanto, faria ainda um projeto de encomenda, mas é um baita trabalho, OS INVASORES DE CORPOS - A INVASÃO CONTINUA (1993), para a Warner.

Na trama de SEDUÇÃO, Paul Weller é um ex-marine que agora gerencia um pequeno hotel na Flórida. O excesso de luz do lugar, inclusive, até destoa da característica mais noturna dos trabalhos de Ferrara. Outro local que também é explorado no filme é a República Dominicana, onde se passa boa parte da trama, e onde o protagonista tem um reencontro com um amor do passado, a femme fatale vivida por Kelly McGillis. O reencontro dos dois fica um pouco no ar, um tanto confuso. Sem falar que a reunião deles acontece com já cerca de meia hora de filme.

Ela tem um marido milionário, mafioso que parece ser suficientemente perigoso para que a mulher peça divórcio. E há um acordo pré-nupcial, que garante a ela 2 milhões de dólares em caso de separação. Mas as coisas se complicam a ponto de a mulher sugerir ao amante que mate o marido, um clichê dos filmes do gênero, mas que ainda é bem-vindo quando resulta em um bom trabalho.

Mesmo para Ferrara, as cenas de sexo passam longe de serem tórridas e as cenas de violência e gore parecem moderadas. Claro, isso depende do interesse e/ou tolerância de cada espectador. SEDUÇÃO vale mais pela curiosidade, especialmente para quem está acompanhando a carreira do cineasta, como é o meu caso.

+ TRÊS FILMES

MORTO NÃO FALA

Dennison Ramalho tem pelo menos uma obra-prima em sua filmografia, o curta AMOR SÓ DE MÃE (2003). E há muito de AMOR SÓ DE MÃE neste seu primeiro longa, como o protagonista que comete escolhas terríveis e precisa pagar um alto preço, além do uso tanto do horror de fantasmas quanto do uso de gore. Quem eu gostei mais no filme foi de Bianca Comparato. Sua cena com uma faca na mão no ápice do filme é uma beleza. Aliás, o filme é cheio de momentos brilhantes e que tiram o filme de um torpor que de vez em quando parece se instalar. Na expectativa pelo próximo filme de Ramalho. Ano: 2018.

RAIVA

Curioso como o cinema português gosta de falar sobre a miséria em seu país. Até mais do que o Brasil, que sofre muito mais com isso. Aqui a temática é bem-sucedida, mesmo que o diretor leve a trama para 1950. O espaço geográfico é de uma tristeza e de um isolamento que dá uma angústia só de ver. E depois tem toda a preocupação para conseguir uma coisa básica, como um pão para comer. Leonor Silveira, ainda que envelhecida e com uma personagem naturalmente sofrida, continua bela. Direção: Sérgio Tréfaut. Ano: 2018.

VERMELHO SOL (Rojo)

Chama a atenção o cuidado formal da direção desde as primeiras cenas. E mais ainda na cena do restaurante, a primeira cena tensa e que dá o tom do filme. Depois há mais coisas que parece que serão o enredo principal, mas acabam funcionando como uma espécie de painel do estado das coisas daquele momento da Argentina (anos 70), mas que deve estar refletindo para a atualidade também. Filmaço! Direção: Benjamín Naishtat. Ano: 2018.

quinta-feira, abril 16, 2020

TROPAS ESTELARES (Starship Troopers)

Às vezes eu me sinto um tanto travado até para escrever para o blog, pois, por algum motivo, me sinto um pouco na obrigação de compartilhar também informações adicionais sobre o filme para os leitores, sendo que isso demanda tempo e pode tirar a fluidez do texto, dependendo do dia. Então, vou tentar fazer um texto mais memorialista e sem entrar muito em detalhes da produção, apenas em impressões e no que eu tenho de intimidade e amor pelo cinema de Paul Verhoeven.

Sempre tive medo de voltar a ver TROPAS ESTELARES (1997) na tela pequena e o meu amor pelo filme diminuir. Isso pode acontecer e foi abordado recentemente em debate sobre a revisão de MAD MAX - ESTRADA DA FÚRIA no podcast Cinema na Varanda. No caso do filme do Verhoeven, havia algo também de muito assustador na sessão para mim, em especial com a cena da chegada da infantaria no planeta dos insetos e o encontro com o primeiro bicho, seguido da chegada de uma multidão deles.

Na época eu já era entusiasta do cinema de Verhoeven, embora ainda não conhecesse sua fase holandesa. Mas havia tido o prazer de ver no cinema O VINGADOR DO FUTURO (1990), INSTINTO SELVAGEM (1992) e SHOWGIRLS (1995). Aliás, é importante lembrar que ele vinha de uma obra bastante controversa, eleita por muitos como o pior filme do ano e coisa do tipo. Uma injustiça, na verdade. Mas isso não é assunto para esse espaço. Já até revi SHOWGIRLS anos atrás.

Assim, TROPAS ESTELARES guarda mais relação com ROBOCOP - O POLICIAL DO FUTURO (1987), por causa da crítica ácida ao nacionalismo levado às últimas consequências. No caso do filme dos insetos gigantes, essa crítica é ainda mais intensa e mais cheia de elementos de humor e sátira, embora possa ser incompreendido por parte do público como uma obra de exaltação do fascismo ou coisa do tipo, o que é um absurdo em se tratando tanto do trabalho do diretor quanto da própria epóca um tanto mais cínica em que vivíamos.

Agora na revisão, o que temos é uma obra que se mostra extremamente divertida e envolvente, inclusive na apresentação de seus personagens, que por mais que sejam como Barbies e Kens, isso não impede que sejam personagens de certa profundidade, além de exemplares da beleza e dos impulsos da juventude. Isso vale para os quatro personagens que formam o quadrado amoroso: Johnny Rico (Casper Van Dien), Carmen (Denise Richards), Dizzy (Dina Meyer) e Zander (Patrick Muldoon). Dos quatro, apenas Denise Richards ganharia maior fama, depois atuando em hits como GAROTAS SELVAGENS e se tornando uma Bond girl em 007 - O MUNDO NÃO É O BASTANTE.

Essa aproximação com os personagens torna o filme mais empolgante quando eles são jogados em um território perigoso, o planeta dos insetos gigantes. A propósito, que impressionante a criação desses monstros, hein. Tanto aqueles que parecem mais assustadores por se mostrarem mais difíceis de morrer e cheios de pernas cortantes, quanto os grandões, como a "mãe", apresentada em uma ótima cena na caverna, e aqueles que soltam fogo, como se fossem mísseis. Assim, podemos dizer que, dentro daquele momento em que já não nos impressionávamos mais com nenhum tipo de efeito especial desde JURASSIC PARK, do Spielberg, o filme de Verhoeven conseguiu esse feito.

TROPAS ESTELARES se tornou um dos maiores e melhores filmes do holandês maluco, dentro de uma filmografia que já era pra lá de admirável.

+ TRÊS FILMES

O PRIMEIRO HOMEM (First Man)

Não deixa de ser um tanto decepcionante, levando em consideração os dois trabalhos anteriores de Damien Chazelle. E também por ser um trabalho até que bem clássico. Mas é um filme que não deixa escapar sua intenção ambiciosa e que, felizmente, tem uma produção tão boa que consegue recriar muito bem a odisseia do primeiro homem indo para a Lua. Ano: 2018.

22 MILHAS (Mile 22)

Peter Berg parece um discípulo melhorado de Michael Bay. Neste 22 MILHAS, eu não me incomodei com a edição picotada. Acho que combinou bem com o ritmo e com a tensão, que é intensa, o tempo todo. Mas o melhor de tudo foi poder matar a saudade da Lauren Cohan. Como eu gosto dessa mulher...Que ela apareça com mais frequência no cinema. Ano: 2018.

CÍRCULO DE FOGO - A REVOLTA (Pacific Rim - Uprising)

Não sei se é porque eu vou com um pouco de má vontade (já não gostei do primeiro, dirigido pelo del Toro), ou então é mesmo tudo uma bagunça nesse filme aqui. Decupagem ruim em tudo, nas cenas de ação até que melhoram um pouco lá perto do final, mas aí não adianta mais. Há uma cena em que o vilão diz: não está se impressionando com o monstro gigante, então vamos ver se não se impressiona com isso aqui. Um saco esses monstros gigantes e robôs gigantes.. Saudades de EVANGELION... Direção: Steven S. DeKnight. Ano: 2018.

domingo, abril 12, 2020

O VÍCIO (The Addiction)

O filme de vampiros de Ferrara, O VÍCIO (1995), é de uma lindeza fenomenal. E é impressionante como costuma ser colocado de lado, mesmo quando se fala de filmes de terror. A escolha pela fotografia em preto e branco foi perfeita para dar a tom de homenagem a Murnau, presente em outras obras do diretor, mas que aqui se constitui parte ainda mais clara (ou mais escura) da forma.

Em certo momento, me lembrei de MARTIN, de George A. Romero, mas só por um momento. Acredito que por causa da cena da seringa. O filme vai seguindo seu próprio caminho, trazendo muitas discussões filosóficas para a narrativa. Mas nada disso valeria se não fosse uma delícia como exemplar do gênero horror do início ao fim. Adianto que é, desde já, um dos meus favoritos do cineasta.

Os temas e obsessões de Ferrara se repetem e se complementam nesta metáfora sobre o vício nas drogas, que se apresenta como uma continuação de outras obras que também lidavam com o tema, VÍCIO FRENÉTICO (1992) e OLHOS DE SERPENTE (1993). Há também intersecção com outros filmes do diretor, como a semelhança da orgia dos vampiros com o clímax de SEDUÇÃO E VINGANÇA (1981).

Lili Taylor, como a doutoranda em Filosofia que se transforma em vampira, é talvez a melhor personagem do cinema de Ferrara. Nem é pela materialização definitiva de uma vampira em um cinema que já apresenta personagens vampirescos, mas por ela parecer una com a personagem em seus momentos de agonia, êxtase, angústia ou total indiferença com a vida alheia, sugada que estava pelas forças das trevas.

Em determinado momento, ela encontra um vampiro com muita experiência de vida (Christopher Walken) que lhe traz mais perguntas que respostas. E ela precisa ouvir enquanto sente dor as frases: "você não é nada. Você não é uma pessoa. Você não é nada." E isto nem chega a ser um ponto de virada para a conversão da protagonista. Para chegar a esse momento seria necessário vivenciar a famosa frase de William Blake:"o caminho dos excessos leva ao palácio da sabedoria". Só depois da orgia de sangue que ela se antecipa a algum tipo de iluminação espiritual.

Nesse sentido, O VÍCIO é um dos filmes com um dos finais mais felizes da obra de Ferrara. E é interessante saber que Nicholas St. John, o roteirista parceiro do diretor, escreveu o roteiro quando perdeu seu filho. Foi um meio de encontrar a verdade e a luz em um mundo de escuridão. Por mais que seja mais um filme que prestigia e celebra a noite e as sombras, ele também oferece variados pontos de lucidez e questionamento a partir de discussões e reflexões sobre a maldade humana.

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HALLOWEEN

Uma surpresa bem positiva esta continuação direta do clássico de 1978. Depois de recepções não muito positivas dos filmes do Rob Zombie, David Gordon Green consegue um tom ideal para o retorno do psicopata incansável Michael Myers. A ideia de ignorar todas as continuações e reboots acaba sendo um acerto para evitar a bagunça e a homenagem a Carpenter ser mais eficiente. Quase chega a ser ótimo. Ano: 2018.

A FREIRA (The Nun)

Corin Hardy até que tinha um filme de horror bem interessante no currículo, o subestimado A MALDIÇÃO DA FLORESTA (2015). Pena que ele ficou preso neste preguiçoso e sem-graça A FREIRA, mais um caso a se pensar sobre o futuro do horror clássico, que parece estar em decadência. Nem sei se o próprio James Wan seria capaz de fazer outro de seus milagres no gênero. Viva o pós-horror, então. Ano: 2018.

MEDO PROFUNDO (47 Meters Down)

Infelizmente as circunstâncias não favorecem qualquer julgamento do filme. Saí três vezes no meio da sessão para reclamar de múltiplos problemas (projeção tremida, som baixo, ar condicionado). Assim não dá, dona Cinépolis. Vou ter que fazer uma reclamação formal e ver se eles criam vergonha. Quanto ao filme, creio que seja apenas ok. Ou menos que isso, na verdade. Direção: Johannes Roberts. Ano: 2017. ATENÇÃO: depois de relatar à gerência esses problemas, ocorridos em 2018, a sala 10 onde eu vi este filme ficou ótima.

sábado, abril 11, 2020

OLHOS DE SERPENTE (Dangerous Game / Snake Eyes)

Primeiro trabalho de Abel Ferrara que foge da categoria "filme de gênero", OLHOS DE SERPENTE (1993), feito em acordo com a Warner, depois de alguma concessão por parte do diretor na sci-fi de terror OS INVASORES DE CORPOS - A INVASÃO CONTINUA (1993), a produção acabou não ganhando tanta força assim, já que a própria estrela do filme, Madonna, insatisfeita com a quantidade grande de cortes de cenas suas por parte do diretor, rogou praga no filme e referiu-se a Ferrara como um canalha.

Ferrara, por sua vez, se defendeu, em entrevista: "ela é a porra de uma escrota. Como se a gente ficasse de sacanagem tirando as melhores cenas do filme só pra encher o saco dela. É preciso ser muito paranoico pra dizer uma porra dessas".

E, assim, mais uma produção do diretor acaba entrando na lista de obras mais ou menos malditas de sua filmografia. Também não foi um filme fácil para grande parte dos espectadores. É uma obra um tanto difícil e cheia de aparentes travas, já que vemos o filme dentro do filme, Mother of Mirrors, como também as cenas do cotidiano do cineasta, sua relação com a família se desgastando, bem como a confusão entre personagem e ator vivida pela dupla de protagonistas da produção, Madonna e James Russo.

No tal Mother of Mirrors, eles vivem um casal que está passando por uma crise enorme, já que ela se converteu ao Catolicismo e decide viver uma vida pacata e longe dos excessos, enquanto ele ainda quer continuar com a vida de drogas, álcool e sexo promíscuo que os dois estavam acostumados a viver. Inconformado com a decisão da esposa, ele parte para a violência. Como o ator confunde a vida real com a ficção (precisa usar cocaína e beber muito para entrar no personagem), até na cena de estupro, o sexo não consentido é real.

Há também algo de repulsivo em Eddie Israel, o cineasta vivido por Harvey Keitel, como se o ator ainda estivesse impregnado do "mau policial" de VÍCIO FRENÉTICO (1992). Uma cena como a da piscina, de Keitel e Madonna dançando e se beijando, poderia ter, se não algo de romântico, ao menos alguma coisa de excitante. Ao contrário. Isso é proposital ou acidental? É um problema do filme ou uma qualidade?

De todo modo, isso é coerente com a obra de Ferrara. Como acontece com os homens das ruas em SEDUÇÃO E VIGANÇA (1981), a violência masculina se materializa estúpida no personagem de James Russo. Sua namorada/traficante que tenta trazer algo de excitante, por exemplo, chupando seu dedo e perguntando se Sarah Jennings (Madonna) havia feito sexo oral com ele daquela maneira, recebe uns tapas, como que merecendo uma punição por ser indecente ou algo do tipo. Isso acontece em oposição ao personagem que ele interpreta no filme, que implora para que a esposa volte a ser como era antes. Em comum, a falta de respeito quanto à vontade e à ação da mulher.

Há também algo de interessante na construção do personagem de Keitel. Ele anseia pela transformação, inclusive insatisfeito com a forma como os personagens de seu filme estão presos a suas identidades fechadas, deixando-o frustrado. Em paralelo, Eddie termina sozinho, destruindo sua vida familiar em nome de uma suposta honestidade. Ele fica cansado de mentir para a esposa, tendo dormido com um grande número de mulheres enquanto esteve casado.

Quem interpreta a esposa de Keitel é Nancy Ferrara, esposa do diretor. Simbólico? Talvez, mas quem Ferrara queria para o papel, na verdade, era a cineasta Jane Campion.

+ TRÊS FILMES

3 FACES (Se Rokh)

Vendo 3 FACES, fico me perguntando por que não se fazem mais filmes assim. Tão simples, mas tão fáceis de agradar como que por uma magia. O segredo de uma grande direção está aí. Não sei muito sobre os bastidores e nem como está a situação de Jafar Panahi no Irã, mas esse homem merece mais respeito por parte dos governantes de seu país. Na falta de Kiarostami, talvez ele tenha tomado a posição de cineasta mais importante de lá. Uma verdadeira viagem pelo interior de um país distante e complicado, mas hospitaleiro. Ano: 2018.

A CÂMERA DE CLAIRE (La Caméra de Claire)

Outro delicioso filme de Hong Sang-soo. Para quem está habituado com o estilo do cineasta, é certamente um prazer. Não é mais do mesmo, pois ele sempre está acrescentando algo ao seu processo. É como se aqui ele nos mostrasse uma nova maneira de ver a vida através da filosofia da mulher estrangeira que tira fotografias. O romance nos bastidores com Kim Min-hee é novamente posto em discussão, mesmo que boa parte do público fique sem saber. Ano: 2017.

O ARTISTA DO DESASTRE (The Disaster Artist)

Da temporada de premiações de 2018, este é um dos filmes que eu mais estava empolgado para ver. Não é tão bom quanto eu gostaria que fosse, mas entretém que é uma beleza. E ajuda a gente a pensar no aspecto trágico do personagem Wiseau. Embora dê pra rir um bocado também. Está longe de ser um ED WOOD, mas comparar os dois filmes é quase inevitável pela temática. Direção: James Franco. Ano: 2017.

sexta-feira, abril 10, 2020

A GRANDE JORNADA (The Big Trail)

Não sei por que passei tanto tempo achando que A GRANDE JORNADA (1930) era apenas o primeiro filme importante de John Wayne, o filme que não tinha dado certo, um western menor. E eis que, ao ler um texto do amigo Chico Fireman, percebi que estava muito enganado. Estava deixando de ver uma das obras mais ambiciosas e importantes de seu tempo, além de contar com a direção sempre confiável do mestre Raoul Walsh.

De todo modo, foi até bom só ver agora, pois, provavelmente as cópias existentes em DVD só devem conter a versão padrão, a versão que foi lançada em 35 mm, com formato de tela mais comum para a época, a 1,2:1. A versão que eu vi foi a de 70 mm, com janela de aspecto de 2,1:1. Ou seja, quase o padrão usado posteriormente para o que se chamaria de cinemascope, na década de 1950.

Pouquíssimas salas dos Estados Unidos exibiram a versão em 70 mm, já que o país estava ainda enfrentando a Grande Depressão e os cinemas já haviam gastado bastante com a transição do cinema mudo para o cinema falado. Assim, A GRANDE JORNADA, tendo custado uma fortuna, acabou por se tornar um fracasso de bilheteria em seu país de origem, embora tenha tido bastante sucesso na Europa.

Um dos cartazes do filme dizia: "The most important picture ever produced". E, de fato, desde CAVALO DE FERRO, de John Ford, feito na era do cinema mudo, não se havia feito algo tão grandioso do ponto de vista também da relevância para a História dos Estados Unidos, de sua expansão para o Oeste. Na trama de A GRANDE JORNADA, um grupo enorme de pessoas sai do Mississipi em direção ao Oeste, a fim de se estabelecer. No grupo, há todo tipo de pessoas, inclusive alguns bandidos, que seriam os antagonistas do personagem de Wayne. Há também um interesse amoroso para o protagonista, vivida pela bela Marguerite Churchill.

A GRANDE JORNADA impressiona desde as primeiras imagens. Em tempos de computação gráfica, é admirável o tanto de gente, cavalos, carroças, que o filme dispõe. E aquilo tudo foi feito na aurora do cinema falado e em cenários de verdade. Na época, o som ainda era um obstáculo, e é natural, vez ou outra, percebermos um silêncio comum de se encontrar em produções do início dos anos 1930. Mas aqui em menor escala: até para a música havia uma preocupação, já que se tratava de um grande épico.

Há também espaço para o riso, como nas cenas em que determinado personagem sempre fala mal de sua sogra e depois ela aparece para lhe dar uma dura. É algo que ainda funciona bastante nos dias de hoje. Dei boas risadas. Há outros momentos dignos de atenção, coisas pequenas, como a atenção para as mulheres fazendo coisas do cotidiano, como lavarem os cabelos, ou cenas com os animais. Afinal, a intenção daquele povo de atravessar quilômetros e quilômetros de terra perigosa era levar o máximo que podiam para se estabelecer.

Quanto ao personagem de Wayne, Brek Coleman, ele tem um jeito honrado que nos faz apreciá-lo desde o começo. É um herói no sentido mais puro da palavra. É capaz de matar, mas é compreensível para a época. Na cena em que Ruth Cameron (Churchill) tenta pedir para que ele não vá atrás de seus algozes, ele afirma que é preciso. E lhe traz certa segurança quanto a isso. Por mais que alguns vilões pareçam saídos de animações - um deles parece o Brutus de Popeye -, tudo isso pode ser relevado em prol da aventura, da emoção e das tantas cenas admiráveis, como as difíceis passagens por tempestades de chuva e neve, por uma guerra contra os índios, por um desfiladeiro, ou por um rio violento.

Outra coisa admirável, não relacionada diretamente ao filme, mas ao gênero western em si, é o quanto o cinema o abraçou e o transformou em uma mitologia. Sendo que, quando o cinema começou com força no início do século XX, a distância entre os acontecimentos mostrados nos westerns não era assim tão grande, embora desse impressão. Que bom que filmes como esse foram criados, apreciados e se tornaram uma febre no mundo todo.

+ TRÊS FILMES

DOIS IRMÃOS - UMA JORNADA FANTÁSTICA (Onward)

Sei que tenho meus problemas com as animações mais tradicionais, mas suspeito que este é um belo exemplo de que a Pixar anda perdendo a mão e entregando filmes menos inventivos. Aqui vemos a história de dois irmãos que tentam, de alguma maneira, reencontrar o falecido pai, através de um feitiço. E a ideia é até bem boa e nas mãos de um diretor habilidoso poderia resultar em algo bastante sensível, tanto no que se refere à ausência do pai, quanto no relacionamento entre os dois irmãos, tão diferentes entre si. Mas faltou um pouco de tato e o que temos é uma aventura que parece muito um videogame, no sentido de passar etapas para se chegar a um fim. Mas tudo pode ser besteira minha e o público pode estar gostando. Uma moça estava comentando que chorou o filme inteiro ao fim da sessão, por exemplo. Direção: Dan Scanlon. Ano: 2020.

UM LUGAR SILENCIOSO (A Quiet Place)

Um dos mais belos e inventivos filmes de monstro e de futuro pós-apocalíptico dos últimos anos. Talvez tenha faltado só um pouco para ser um grande filme. Mas tanto a ideia quanto a realização são notáveis. Pena que a sala 2 do UCI Iguatemi estava uma bosta. Imagem mais escura e mais lavada do que nunca. Pra completar, a projeção não acertou direito o quadro, deixando espaço na parte de cima da tela, e o som estava com problema também. Direção: John Krasinski. Ano: 2018.

WESTERN

Não consegui gostar tanto assim deste celebrado filme, embora tenha achado bem interessante o estudo sobre a masculinidade e a alegoria com o gênero americano por excelência em um formato despojado de enfeites. Senti falta de mais mulheres. Aquele bando de macho idiota conversando e fazendo besteira me encheu o saco. Direção: Valeska Grisebach. Ano: 2017.

quinta-feira, abril 09, 2020

9 LIVES OF A WET PUSSY

Voltando um pouco no tempo em minha peregrinação pela obra de Abel Ferrara, chego a seu primeiro longa-metragem, o pornô 9 LIVES OF A WET PUSSY (1976), assinado com o pseudônimo Jimmy Boy L. Dizem que se não fosse a participação como performer do próprio Ferrara na cena em que ele é um pai (ou seria avô?), que é embriagado por duas irmãs para servir de objeto sexual para ambas, poucos descobririam que esse filme teria sido dirigido pelo hoje famoso cineasta. A tal cena, aliás, possui elementos bíblicos, fazendo uma referência ao conto das filhas de Ló, presente no livro de Gênesis. Há quem diga que isso é uma indicação das obsessões do autor escondida no filme.

No mais, a apreciação de 9 LIVES é um tanto difícil, por não ser exatamente um pornô muito animador, do ponto de vista erótico, já que as cenas de sexo são filmadas sem muita inventividade nos quesitos voltagem erótica e fantasia. O que vemos são tradicionais cenas de sexo convencional, uma cena de threesome (a tal cena com Ferrara), uma de sexo lésbico, muito sexo oral; enfim, nada de mais, a não ser a beleza física da protagonista (Pauline LaMonde), que é homenageada nos créditos finais, com justiça.

Além da beleza na textura das imagens, do ponto de vista narrativo, é um filme que se formou especialmente na edição, com a inclusão de uma voice-over da personagem da moça apaixonada por Pauline, vivida por Dominique Santos. Ela recebe cartas de Pauline, em que a jovem conta suas aventuras. Assim, a ideia é trazer para aquelas cenas algum elemento que as torne mais eróticas ou mais transgressoras, já que, pelo material bruto, elas parecem bem burocráticas para quem já viu muito pornôs, tanto os da era do vídeo quanto os clássicos feitos em película. Santos também aparece diversas vezes como a apresentadora das historietas.

O filme já contava com pelo menos dois companheiros de Ferrara: o roteirista Nicholas St. John, também com um pseudônimo nos créditos, e aparecendo em uma cena como um chofer; e o compositor Joe Delia, que trabalharia em uma dúzia de filmes com o cineasta. Inclusive, o trabalho de Delia é outro elemento que ajuda a valorizar o filme, trazendo tanto um tipo tradicional de som mais funkeado característico dos pornôs da época, quanto também alguns elementos que parecem saídos de filmes de horror e que parecem deslocados, e acabam por trazer uma interessante sensação de estranheza e desconforto. Para quem é interessado na obra do diretor, vale ver. Inclusive, no ano passado lançaram nos Estados Unidos uma versão em BluRay. Por causa da assinatura do diretor, acabou por se tornar um cult movie.

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CATS

Estava achando, com todas essas brincadeiras de pior filme do ano que o povo andava fazendo, tirando onda dos problemas e dos aspectos bizarros e tal, achava que ficaria minimamente animado. Que nada: bastam 15 minutos de cantoria ruim e brega que a gente já pensa no martírio que serão aqueles quase duas horas de duração. Felizmente consegui ficar com sono para que a tarefa fosse menos dolorosa. Até algo de natureza erótica, por mais sutil que seja, não me pegou ou me inspirou, por mais que eu valorizasse o tempo inteiro o corpo de Francesca Hayward, que faz a gata Victoria. Quanto aos demais astros, é muita vergonha junta, meu Deus. Direção: Tom Hooper. Ano: 2019.

ANTIPORNO (Anchiporuno)

Diferente de MULHER MOLHADA AO VENTO, de Akihiko Shiota, o trabalho que Sion Sono fez para o projeto roman porno reboot foi bem diferente e talvez até mais ousado. Só que não me conquistou, no sentido de que toda a nudez e todo o sexo que é mostrado é no sentido de causar mal estar. Se é esta a intenção, beleza. Ele foi bem-sucedido. E é até possível que o filme cresça na minha memória afetiva. Ano: 2016.

KIKI - OS SEGREDOS DO DESEJO (Kiki, el Amor Se Hace)

Bem divertida comédia sobre amores e diferentes taras. Senti falta de mais ousadia no que se refere ao erotismo, mas já era de esperar. Ainda assim, não é filme para se esnobar, não. Há muitos momentos bem bonitos e alguns até corajosos e polêmicos, como a história do médico que botava sonífero na mulher para poder transar com ela. Direção: Paco León. Ano: 2016.

terça-feira, abril 07, 2020

ERASERHEAD

Como estou lendo a biografia Espaço para Sonhar, escrita pelo próprio David Lynch e por Kristine McKenna, senti necessidade de rever ERASERHEAD (1977), que eu devo a mim uma revisão desde quando vi TWIN PEAKS - O RETORNO (2017), que contém muitos elementos do primeiro longa-metragem do cineasta. Aliás, basta ver ERASERHEAD para perceber que já estava tudo ali, tanto a genialidade de Lynch e suas obsessões, quanto os conceitos que seriam aproveitados e aprofundados em suas obras posteriores.

Algo que me fez sorrir sozinho lendo a biografia foi ver o quanto Lynch queria que o preto da fotografia ficasse o mais preto possível. "Nunca estava suficientemente escuro para ele", dizia o diretor de fotografia Herb Cardwell. E é de fato uma fotografia admirável que passou por dois nomes, já que o filme demorou muito a ficar pronto. A pré-produção foi em 1971 e as filmagens começaram em 1972. Apesar de ter sido inicialmente bancado pela AFI, pararam por falta de dinheiro - o orçamento ultrapassou o planejado. Depois, com financiamento adicional, puderam finalmente exibir a primeira versão com 1h50 em 1976 e a versão definitiva, com um corte de 20 minutos, no ano seguinte.

Outra coisa que me fez rir com o coração foi a descrição de Lynch como um sujeito que todo mundo gosta, que pede para fazer coisas meio loucas, como cordões umbilicais de verdade tirados de ninhadas de cachorros. Além do mais, alguns coisas nos remetem diretamente ao Agente Dale Cooper, de TWIN PEAKS (1990-1991), como na descrição de Peggy Reavey, sua primeira esposa: "As pessoas adoram trabalhar para David. Se você fizer algo insignificante, como levar-lhe uma xícara de café, ele fará você pensar que fez a coisa mais importante do mundo."

ERASERHEAD conta a história de Henry Spencer (Jack Nance, que depois faria Pete Martell, o homem que encontrou o corpo de Laura Palmer, em TWIN PEAKS). Henry engravida uma jovem mulher e é meio que forçado pelos pais da jovem a casar com ela. Surge um filho disforme, a mulher não aguenta a angústia de viver naquela casa e vai embora, e ele fica sozinho com o bebê. Enquanto isso, há um mundo sobrenatural que é misteriosamente explorado, com personagens enigmáticos como o Homem do Planeta e a Dama do Radiador, uma moça com bochechas exageradamente grandes.

A primeira vez que vi ERASERHEAD achei se tratar de um filme sobre a dificuldade ou a incapacidade de encarar a paternidade ou a vida adulta. Mas provavelmente eu esteja errado, ou parcialmente errado. Lynch costuma dizer que este seu primeiro longa-metragem é seu trabalho mais espiritual e que a maioria das pessoas não consegue perceber isso.

A atração de Lynch pelo bizarro e por coisas fora do ordinário já se apresentavam desde seu trabalho com a pintura. Como aqui temos um longa-metragem, há uma infinidade de aspectos que se destacam, ou mesmo curiosidades de bastidores, como o depoimento de Charlotte Stewart, a jovem que interpretou a esposa de Henry. Ela disse: "Antes de rodar, David sempre fazia uma ferida supurante na entrada do meu ouvido direito. Ela não aparecia, mas sabíamos que estava lá." Havia também o caso de uma atriz que Lynch achava bonita demais para o papel e, por isso, colocava um sinal cabeludo em seu rosto para trazer um pouco de feiura para ela.

O ambiente é o de cidades industriais poluídas. Há poucas cenas externas e poucas ainda diurnas. O filme foi quase todo filmado à noite. E há todo um cuidado com o desenho de som e com a trilha sonora que hoje são marcas reconhecidas do cinema de Lynch. Podemos ver o quanto isso já estava presente desde esse seu primeiro trabalho de grande impacto. O ladrido do cão, o apito do trem, o chiado da máquina, o som vazio do quarto e outros tantos pequenos ruídos, tudo isso foi feito com muita precisão, com muito cuidado.

O aspecto onírico, marca registrada da grande maioria dos filmes de Lynch, está tão presente em ERASERHEAD que o que temos é algo parecido com um sonho dentro de um sonho. E há muito o que relacionar com obras posteriores do diretor, já que o filme se passa em um universo que parece o mesmo do black lodge de TWIN PEAKS e outras obras. Inclusive, a cabeça gigante de bebê deu origem, muito provavelmente, à cabeça flutuante do Major Briggs, em TWIN PEAKS - O RETORNO. É desses filmes que merecem uma revisão inúmeras vezes, a fim de perceber e apreciar seus vários detalhes, e até entender mais seus simbolismos.

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TECHNOBOSS

Não deixa de ser admirável o grau de independência e de ousadia que o cinema português trilha. Certamente a presença de um sujeito como Miguel Lobo Antunes, em sua primeira atuação no cinema, seja mais atraente para os espectadores portugueses, já que ele é um homem que esteve envolvido durante muitos anos na cena político-cultural do país. Aqui temos um filme um tanto estranho sobre um técnico em câmeras de segurança, cancelas etc, que se vê envolvido com sentimentos de solidão e uma atração pela recepcionista de um hotel. Mas não há muita ação ligada ao romance. O que há mais é a rotina tediosa do protagonista, uma fotografia com pouco grau de nitidez, canções desconcertantes cantadas por Miguel Lobo e uma imagem pouco atraente para os estrangeiros de Portugal. Direção: João Nicolau. Ano: 2019.

TORRE. UM DIA BRILHANTE (Wieża. Jasny Dzień)

Eis um filme que nos coloca em nossa própria insignificância, a ponto de não sabermos o que estamos vendo. É uma história de horror? Um drama sobre uma mãe biológica que chega para mudar a vida de uma família? Sim, as duas coisas. Acho que o problema é a dificuldade de "entrar" no filme, em sua atmosfera. Nesse sentido, entender ou não entender é só um detalhe. Direção: Jagoda Szelc. Ano: 2017.

O ÚLTIMO CAPÍTULO (I Am the Pretty Thing That Lives in the House)

Gosto muito do começo do filme. Parecia promissor. A narração da Ruth Wilson é literária, no bom sentido do termo. Mas justamente quando o filme entra mais no campo da literatura, ele vai começando a ficar maçante e sonolento. Há uns pequenos sustos bem bons e um grande susto também, mas no geral é um filme de muitos silêncios. Faltou mais terror no terror. Direção: Osgood Perkins. Ano: 2016.

segunda-feira, abril 06, 2020

OS INVASORES DE CORPOS - A INVASÃO CONTINUA (Body Snatchers)

Sei que não está fácil para ninguém viver nesta quarentena. Mas, ao mesmo tempo, não deixa de ser um privilégio de quem pode ficar em casa. Por isso, não posso ficar reclamando, embora os sentimentos de angústia e ansiedade oscilem. Embora eu esteja há duas semanas conseguindo ver um filme por dia, esses filmes nunca foram vistos sem interrupções. OS INVASORES DE CORPOS - A INVASÃO CONTINUA (1993), de Abel Ferrara, foi o primeiro a quebrar essa regra na madrugada de ontem.

Isso se deve tanto ao meu interesse pela obra do cineasta, interesse que vem crescendo a cada dia, quanto ao acerto do diretor na condução deste filme de horror e ficção científica que já contava com duas versões muito queridas realizadas décadas atrás, a de Don Siegel, VAMPIROS DE ALMAS (1956), e a de Philip Kaufman, INVASORES DE CORPOS (1978). Ferrara tinha a missão, portanto, de fazer algo tão bom e tão atraente quanto os de seus antecessores.

Pena que o filme não tenha ganhado uma distribuição decente nos Estados Unidos e no mundo. Tinha tudo para ser um sucesso popular incrível. Foi o filme de maior orçamento dirigido pelo cineasta - 20 milhões de dólares -, e o primeiro e único em scope, mas que, por ser descoberto mais em home video ou na televisão, a maioria das pessoas acabaram vendo-o mutilado. Eu, pelo menos, a primeira vez que o vi foi na TNT, que, além de tudo, costuma cortar cenas de nudez. Então, eles mutilam duplamente: com cortes nos lados e de cenas.

O namoro de Ferrara com o cinema de horror já estava presente desde o seu primeiro longa no cinema mainstream, O ASSASSINO DA FURADEIRA (1979), e também depois com SEDUÇÃO E VINGANÇA (1981), mas é com OS INVASORES DE CORPOS que ele abraça com força o gênero, trazendo junto com ele dois grandes mestres do horror, Stuart Gordon e Larry Cohen, que colaboram no roteiro. Junte-se a isso, a participação do então roteirista de Ferrara, Nicholas St. John. Logo, não tinha como dar errado. Gordon, inclusive, ia ser o diretor contratado para a produção, mas, por algum motivo que desconheço, foi substituído.

A história se passa em uma base militar americana e acompanhamos a chegada de uma família que se estabelece naquele espaço, devido ao trabalho do engenheiro químico Steve Malone (Terry Kinney). Com ele, vão a esposa Carol (Meg Tilly), a filha Marti (Gabrielle Anwar, linda!) e o filho pequeno Andy (Reilly Murphy). É principalmente na personagem de Gabrielle Anwar que o filme se concentra. É a partir dela que algumas sugestões e simbolismos podem ser melhor pensados.

Na trama, os seres humanos daquela base (ou do mundo todo?) estavam tendo seus corpos desintegrados e substituídos por duplos alienígenas. A propagação do mal estava se tornando cada vez maior e o primeiro a notar é o garotinho Andy, cujos colegas de sala de aula já estavam todos substituídos por aliens. Ele também percebe que a mãe havia sido substituída. Aliás, vale destacar que um dos momentos mais impressionantes e assustadores do filme é a de Meg Tilly, já transformada, se declarando para a família; e, seguida, fazendo aquele grito para chamar a atenção dos outros invasores na rua.

No catálogo que estou lendo sobre Ferrara, um dos escritores afirma que o conceito de que a única história é a história do mal une a obra de Ferrara à de alguns de seus contemporâneos. Lembrei do quanto isso pode ser verdade, em especial se pensarmos em Lynch, em Cronenberg, em Verhoeven, e em Carpenter, para citar alguns.

Um aspecto muito presente na obra de Ferrara é a rebeldia. E isso pode ser visto principalmente em Marti, a personagem de Anwar. O fato de ela fugir à nova ordem estabelecida, a ordem dos invasores, não deixa de ser um ato de rebeldia. Embora, simbolicamente, se possa dizer que ela estaria também renunciando à própria metamorfose da adolescência. Com relação aos símbolos, alguns falam que o filme fala sobre a AIDS, outros, sobre Hiroshima, sobre futuras guerras químicas e biológicas. Hoje em dia, porém, OS INVASORES DE CORPOS ganha contornos ainda mais alarmantes e próximos da nossa realidade, diante da pandemia em que estamos vivendo.

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NÓS (Us)

Não sei se fui com muita sede ao pote, mas a questão é que eu esperava uma obra-prima de NÓS. De todo modo, o talento de Jordan Peele está mais em cenas separadas do que no todo, que sofre com problemas de ritmo. O que não quer dizer que não curti o filme. Admiro muita coisa - o que é a interpretação de Lupita? - e fiquei ainda encucado com a alegoria que ele apresenta. Acho que também faltou mais força no horror de mostrar alguém parecido: lembro agora de dois filmes que fazem isso com muito mais impacto: O HOMEM DUPLICADO, de Villeneuve, e o curta O DUPLO, de Juliana Rojas. Mas NÓS é um filme que vai crescendo na memória, graças, principalmente, às ótimas cenas de destaque. Tem uma com a Elisabeth Moss que é sensacional. Ano: 2019.

JURASSIC WORLD - REINO AMEAÇADO (Jurassic World - Fallen Kingdom)

Que surpresa linda! J.A. Bayona pega uma franquia fadada a se repetir, põe sua mão autoral e nos presenteia com cenas que trazem a sua mão boa para o terror e também para o drama e para questões envolvendo crianças e família. O terceiro ato é maravilhoso. Arrepiei. Ano: 2018.

HAN SOLO - UMA HISTÓRIA STAR WARS (Solo - A Star Wars Story)

Tanta gente falando mal que eu, já ressabiado com o nome de Ron Howard na direção, não esperava encontrar uma aventura tão agradável. Gostei de todos os personagens e de como a história é redondinha e cheia de momentos empolgantes, embora a sensação de perigo nunca esteja assim tão presente. Pontos altos: a cena do trem, o reencontro de Han com Q'Ira, o primeiro encontro com Chewie e as cenas estreladas por Paul Bettany, como o principal vilão. No mais, se deixassem, o filme bem que podia ser mais sensual, graças à Emilia Clarke. Se na época da Princesa Leia e da Rainha Amigdala podia... Ano: 2018.

domingo, abril 05, 2020

VÍCIO FRENÉTICO (Bad Lieutenant)

Estava cogitando não rever VÍCIO FRENÉTICO (1992) por causa da distância temporal que o vi. Mas 11 anos já é um tempo considerável e a intenção agora é me tornar mais íntimo do cinema do diretor. Talvez tenha me impactado menos desta vez. Me deixou mais desconcertado do que exatamente angustiado com a descida aos infernos do mau policial do que na primeira experiência. Talvez porque a performance de Keitel é, por exemplo, mais intensa, mais catártica e mais explícita no modo como ele grita de dor e vazio existencial. Mas ao menos ele consegue chorar e gritar. É diferente de outros personagens ferrarianos, que engolem o choro e se fecham na posição de vampiros. Como bem diz a junkie vivida por Zoë Lund, em determinado momento do filme: "os vampiros têm sorte, eles podem alimentar-se dos outros."

Porém, o filme cresce à medida que penso mais nele, e que também leio mais a respeito dele e a respeito da sua importância na iconografia da obra de Abel Ferrara. Quando geralmente se fala no trabalho do cineasta este é um dos filmes que primeiro vem à memória, tanto por ser marcante quanto por estar cheio de elementos que sintetizam a mitologia do diretor.

VÍCIO FRENÉTICO lembra um pouco DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA, de Robert Bresson, mas é mais pela forma como o protagonista se aproxima de um estado de busca da morte através de ações pecaminosas, como o excesso de álcool (como em Bresson), das mais diversas drogas, das orgias, das apostas perigosas e crescentes, da irresponsabilidade profissional, de uma ação próxima a de um estuprador, ao abordar duas jovens em um carro e pedir que elas façam "coisas" para ele, em troca de não levarem uma multa.

Mas, diferente de Bresson, um grande niilista, Ferrara carrega traços de otimismo, até por acreditar na religião, no embate entre as forças do bem e do mal. Há a crença em um deus, em forças do bem que possam agir na transformação da vida das pessoas. O problema é que essas pessoas são suicidas, os heróis ferrarianos não chegam a se jogar no precipício imediatamente, parecem acreditar que merecem cada dor e cada tortura infligida ao próprio corpo. As drogas, por mais que tragam prazer, servem ainda mais para aproximar esses personagens de seu fim, de distanciá-los da graça, de promoverem a angústia e o vazio existencial.

Na trama, Harvey Keitel é o mau policial, um personagem cujo nome nunca é pronunciado e nem aparece nos créditos. Ele está mais interessado nas apostas em jogos de beisebol do que em seu ofício; está mais interessado em cheirar cocaína e consumir álcool e outras drogas do que em se importar com sua família. Assim, o principal caso investigado pela polícia no filme, que é o de uma freira estuprada por dois homens no altar, é mais investigada por seus colegas do que por ele, que está mais preocupado em estuprar com os olhos todas as mulheres atraentes que passam em sua frente.

Como estamos diante de um filme de Ferrara, também estamos diante de personagens que têm uma visão de mundo totalmente distinta e buscam, de alguma maneira, uma espécie de perdão ou redenção, mesmo que de forma torta. Como o poderoso gângster de O REI DE NOVA YORK (1990), que pretende construir um hospital para crianças, ou a jovem muda que se transforma em justiceira depois de passar pela experiência de estupro em SEDUÇÃO E VINGANÇA (1981).

Aqui, o mau policial até passa por uma espécie de encontro com Jesus na igreja, até pede perdão, urrando e chorando no chão. Ao colocar os jovens estupradores em um ônibus ao final do filme em vez de matá-los, ele estaria procurando um tipo de redenção, acreditando que estaria fazendo uma boa ação para alcançar um tipo de perdão, influenciado pela fala da freira, que diz ter perdoado os dois homens pelo ato abominável.

VÍCIO FRENÉTICO é o primeiro trabalho de Ferrara que foge do rótulo "filme de gênero". Há uma preferência pelas imagens escuras, por uma fotografia mais dura, menos bonita, pela imagem dos becos e dos lugares mais decadentes de Nova York, ao invés das imagens que servem como cartão-postal. Isso combina com a miséria do personagem e do clima noturno do filme. Mesmo a cena final, que se passa durante um dia (chuvoso), é uma cena que é vista à distância. Isso pode ter uma série de significados, mas talvez um deles seja o distanciamento do protagonista dos olhos do espectador, o seu completo abandono e aniquilamento, algo que já havia sido preparado com a cena imediatamente anterior, dele se distanciando da câmera, ao som de "Pledging my love", de Johnny Ace.

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TRINTA ANOS ESTA NOITE (Le Feu Follet)

Não sei se ver um filme sobre depressão e desejo de tirar a própria vida nestes tempos sombrios é a melhor pedida. De todo modo, me interessou bastante por se tratar de outro clássico de Louis Malle (adorei o ASCENSOR PARA O CADAFALSO, 1958). Este aqui também tem algo que podemos ver transbordar nos filmes de Khouri. Não o jazz, nem a excitação da noite, mas a melancolia, a extrema melancolia. No caso, a música ao piano de Erik Satie acentua um tipo de sentimentalismo que em alguns momentos me irritou bastante. De todo modo, como o protagonista é uma pessoa que se julga incapaz de trazer alegria para a vida das pessoas, talvez seja acertado retratá-lo como alguém um tanto irritante. Isso se mostra presente em especial nas conversas que ele tem com duas personagens femininas, no começo e no fim do filme. Ano: 1963.

UM ELEFANTE SENTADO QUIETO (Da Xiang Xi Di Er Zuo)

Acredito que as quase quatro horas de duração do filme funcionam muito bem para que tenhamos tempo de nos afeiçoarmos aos personagens e seus dramas. Como o filme lida também com suicídio, é difícil não fazer uma reflexão sobre o próprio suicídio de seu jovem diretor, aos 29 anos. Desse modo, aquilo que o filme apresenta, sua desesperança, seria um reflexo dos sentimentos de seu autor. Gosto particularmente dos dois personagens adolescentes (a menina e o garoto), mas os dramas dos homens mais velhos também são sentidos. A questão de ser útil ou inútil no mundo é posto em cheque algumas vezes. Até eu fiquei pensando no que eu sou útil nesta vida. Direção: Bo Hu. Ano: 2018.

NO PORTAL DA ETERNIDADE (At Eternity's Gate)

Interessante essa obsessão do cinema por Van Gogh. Talvez pela questão da loucura, da orelha, de sua morte, da expressividade particular de seus quadros. O interessante aqui é ver o pintor ter sua história de vida contada por um artista plástico também. Há várias passagens inventivas e que funcionam bem para causar algum mal estar na forma como o pintor sente e vê o mundo, mas no fim eu senti falta de mais impacto dramático. Direção: Julian Schnabel. Ano: 2018.