sexta-feira, abril 03, 2020

O REI DE NOVA YORK (King of New York)

Uma coisa que me veio à mente vendo O REI DE NOVA YORK (1990) e observando o ano de lançamento do filme foi o fato de ter ocorrido no mesmo ano de OS BONS COMPANHEIROS, a obra-prima de Martin Scorsese. Abel Ferrara já falou em entrevista que Scorsese é sim uma grande influência em seu trabalho e já em filmes anteriores isso se mostrava aparente, mas não tanto quanto neste seu primeiro filme mais centrado na máfia - embora também nos mostre o ponto de vista dos policiais.

Mas, se por um lado, o filme de Scorsese foi lançado em quase todo cinema do mundo, a obra do Ferrara teve um lançamento muito mais modesto. Na minha cidade, por exemplo, eu não lembro de ter passado em nenhuma sala. Vi o filme em DVD, pela primeira vez, em 2003, e até tem um registro tosco disso aqui no blog.

Revê-lo foi algo totalmente novo, como se estivesse vendo pela primeira vez, principalmente levando em consideração que ando fazendo um estudo entusiasmado sobre a obra de Ferrara, durante esta quarentena.

Interessante que, nos textos anteriores sobre Ferrara, eu vi várias vezes os críticos comentarem a influência de F.W. Murnau em sua obra. E essa aproximação do diretor americano com o genial alemão transparece como homenagem em uma cena em que o protagonista (Frank White, vivido por Christopher Walken) adentra um espaço reservado de um grupo de gângsters. Lá eles estão assistindo a NOSFERATU.

E, prestando mais atenção, vi o quanto as sombras exercem um papel importante neste filme. Além da sugestão de que Frank White, que só sai de casa apenas à noite, com seu sobretudo preto, se esgueirando pelos cantos, seria uma espécie de vampiro moderno. Inclusive, seu jeito manso de falar lembra o dos sugadores de sangue nobres do cinema clássico. A única vez que White sai durante o dia é dentro de sua limusine preta, e para matar um policial no cemitério, durante o funeral do amigo, com uma metralhadora.

O filme começa com White saindo de sua prisão, sendo libertado depois de passar muitos anos preso. Em liberdade, ele fica hospedado em um hotel luxuoso de Nova York. Sua expressão é sempre melancólica, mesmo quando sorri ou faz aquela vozinha aguda, um elemento bizarro, mas que parece forçar um pouco mais um aspecto de humanidade ao anti-herói.

O niilismo, algo presente na obra de Ferrara desde muito cedo, comparece de maneira muito mais forte em O REI DE NOVA YORK. A impressão que temos ao ver aqueles personagens é que parecem ser almas que se desviaram de Deus, ou anjos caídos e sempre em constante estado de revolta, talvez porque o conceito católico fique nas entrelinhas, sem precisar ser expressado.

Talvez para compensar o mal que já fez, White tem a intenção de ser prefeito de Nova York, de fazer algum bem àquela cidade. Se não para compensar o mal, pode ser uma visão diferente, deturpada ou não da realidade. Ele afirma que "a humanidade nasceu para existir além do bem e do mal desde o começo." Seu primeiro projeto é a construção de um hospital para crianças, usando o dinheiro adquirido de seu império de cocaína.

Essa ambiguidade moral também transparece no modo como são mostrados os policiais (David Caruso, Wesley Snipes, Victor Argo). Apesar de claramente serem agentes da lei, é preciso agir contra essa lei, burlar as regras, para poder dar cabo do inimigo. É assim que pensa o personagem de Caruso, é assim que eles acabam agindo quando a situação fica mais delicada.

Falando em atores, é impressionante o salto que Ferrara deu a partir deste filme, trazendo um elenco masculino de peso (Walken, Lawrence Fishburne, Caruso, Argo, Steve Buscemi, Giancarlo Esposito). O elenco feminino não traz nenhum nome de grande peso, mas há pelo menos dois grandes destaques pela beleza, carisma e sensualidade. Janet Julian, que faz a amante de White, e Carrie Nygren, que faz uma de suas guarda-costas (aliás, que inusitado ter duas guarda-costas mulheres, fugindo totalmente do convencional).

É também um filme que acentua a imprevisibilidade. Há muitas cenas que puxam o tapete do espectador, a começar pela sequência do primeiro encontro de White com a gangue de Jump (Fishburne), que transparece tensão, para se transformar em abraços e dancinha de comemoração de amigos. Há uma primeira conversa de Frank com Jennifer (Janet Julian), que também se parece hostil, mas logo à frente os dois se revelam amantes. Inclusive, a cena do metrô, com ele a beijando e tocando seus seios em um vagão vazio, é talvez a mais sensual de um filme que se caracteriza também pela sensualidade.

E falando em sensualidade, como esquecer a cena de Melanie (Carrie Nygren, linda), uma das guarda-costas de Frank, lambendo cocaína do abdômen de um homem, enquanto afrouxa seu cinto? Durante a cena, Frank passa, olha no quarto e seu olhar é difícil de definir o que está sentido com o que vê. Assim, o desejo, a pose, a dança, as drogas, a música (o rap, principalmente), tudo é muito quente, erótico e convidativo.

No mais, se um grande filme se constrói de grandes cenas memoráveis, não há como negar que estamos sim diante de um grande filme. Como esquecer a cena da perseguição de carros com a polícia na noite chuvosa? Ou a cena de Jump, mesmo sentindo uma dor terrível por causa dos tiros de Dennis em sua barriga, rindo ao ver que o parceiro de Dennis está agonizando?

A partir de O REI DE NOVA YORK, Ferrara chegou a um momento sublime e glorioso de sua carreira. E é muito excitante estar acompanhando tudo isso, em ordem cronológica.

+ TRÊS FILMES

CALMARIA (Serenity)

É um filme que vale ver tanto por seu bom elenco (Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Diane Lane, Jason Clarke), como pela maneira como brinca de desconstruir a trama de um film noir (solar). O problema é que a história vai ficando um pouco desinteressante, quando deveria, ao contrário, ficar mais empolgante, pela virada e tal. Ainda assim, é um filme que merece a espiada. Inclusive, melhor não estragar algumas surpresas. Direção: Steven Knight. Ano: 2019.

O PESO DO PASSADO (Destroyer)

Acho que seria um bom filme com uma direção melhor. A história também não ajuda muito, mas também não há nada de muito errado. E a edição é até ok. Falta é força na direção para tornar o drama bom o suficiente para que a gente se importe com os personagens. Principalmente com a protagonista (Nicole Kidman). Gosto da parte final da trama. Direção: Karyn Kusuma. Ano: 2018.

TRAFFIK - LIBERDADE ROUBADA (Traffik)

É um suspense até eficiente, mas há certas coisas que me incomodaram e que acabam por dar à produção um ar de Supercine. Aquela personagem da policial é horrível e algumas coisas parecem bem de mau gosto, como uma cena em que toca uma linda canção da Nina Simone durante um ato de puro horror. Isso não dá pra perdoar. Direção: Deon Taylor. Ano: 2018.

Nenhum comentário: