terça-feira, junho 30, 2020

ESPELHO DE CARNE

Não recordo exatamente o ano em que vi pela primeira vez ESPELHO DE CARNE (1985) na televisão. Mas lembro do impacto que foi quando o vi, até por ter visto ainda muito jovem, com os hormônios em ebulição e muito animado com as cenas sensuais que o filme trazia. Mas, ao mesmo tempo que o filme me atraía pelo bom erotismo, foi também uma obra que durante muito tempo eu dizia que era o filme brasileiro que mais me assustava.

O que é um grande mérito para um filme que explora bastante o erotismo e consegue fazer essa virada de chave quando se aproxima de seu final. Claro que podemos dizer que o diabo que a personagem de Hileana Menezes diz ver é uma metáfora das mais profundas culpas diante de tanta libertinagem/liberdade que o espelho aflorou, mas, há, sim, uma busca no filme por um tom de terror.

Tive o prazer de assistir a um debate com o diretor Antonio Carlos da Fontoura na Mostra de Cinema Curta Circuito, que neste ano teve que se reinventar, em tempos de quarentena, mas que teve o lado bom de possibilitar que pessoas de várias cidades do mundo pudessem ter acesso aos filmes e aos debates. Fontoura contou que houve, durante as filmagens, uma série de eventos estranhos acontecendo, como o fato de Hileana afirmar que de fato viu um demônio.

Hoje em dia, infelizmente, o filme é mais lembrado pela cena do "quem perder, vira", na qual Daniel Filho e Dennis Carvalho apostam o acesso ao traseiro do outro. Não deixa de ser uma cena simbólica, tanto do machismo que ainda impera, quanto da posição de superioridade da pessoa que está desempenhando o lado "ativo" do sexo. Além do mais, tanto Daniel quanto Dennis já eram vistos como pessoas bastante poderosas da Rede Globo. A cena ainda continua divertida. Mas a culpa é do espelho.

O espelho misterioso e que traz à tona os instintos mais primitivos e os desejos mais ardentes das pessoas que estão ali perto é comprado em um leilão e instalado no quarto de um apartamento de um casal burguês (Dennis e Hilieana). Três visitas surgem e também são contaminados pela força do espelho: as personagens de Maria Zilda e Joanna Fomm e o já citado Daniel Filho.

Baseado em uma peça de teatro que não chegou a ser encenada, o filme se passa quase que inteiramente dentro do apartamento, principalmente no quarto e na sala. Isso barateou bastante os custos e possibilitou que a produção, naqueles tempos de Embrafilme, fosse bastante viável, além de também continuar sendo atraente, em especial quando trazia elencos globais como esse. Eu, por exemplo, na época da novela GUERRA DO SEXOS, de 1983, era apaixonado por Maria Zilda. Eu ainda era criança, mas ela, junto com Maitê Proença, talvez tenham sido as minhas primeiras aspirações no campo da sexualidade.

Há uma cena especialmente carregada de sensualidade e de alta temperatura erótica, que é a cena da diarista, que chega para fazer faxina no quarto e, sob influência do tal espelho, começa a tirar a roupa e a se masturbar. A cena ainda tem muita força e é representativa também do abismo social, já que as mulheres ricas veem o ato daquela mulher na cama como sendo um ultraje.

Enfim, foi ótimo poder rever o filme e ainda ter a honra de participar do debate com o realizador.

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REPÚBLICA DOS ASSASSINOS

Um privilégio poder testemunhar um dos momentos mais brilhantes do cinema brasileiro. E em um instante em que o povo brasileiro estava com muita coisa entalada na garganta. Daí mostrar a polícia como um bando de bandidos prontos para executar as pessoas a sangue frio e como uma alegoria do país em tempos de ditadura. Além do mais, que puta elenco! Que interpretação assustadora do Tarcísio Meira! Que linda que está Sylvia Bandeira (mais ainda do que em BAR ESPERANÇA!) Que foda que é a cena do beijo na boca de Anselmo Vasconcelos e Tonico Pereira ao som de Roberto Carlos. Direção: Miguel Faria Jr. Ano: 1979.

DE PERNAS PRO AR 3

Resolvi dar uma chance a este terceiro filme da franquia da Ingrid Guimarães pelo simples fato de ser a Julia Rezende dirigindo. E, mesmo sem ter visto os demais, creio que possa ter feito alguma diferença. Ainda que ela tenha pegado uma franquia em andamento. Não sendo um filme para gargalhar o tempo todo, mas uma história de rejeição e readaptação de uma mulher, o filme tem força em vários momentos. Mas eu diria que muito da força está no elenco jovem: na menina que é a suposta rival da protagonista (Samya Pascotto - onde encontraram essa menina?) e no filho. Algumas cenas foram prejudicadas pelo excesso de exibição nos trailers. Ano: 2019.

UMA NOITE EM SAMPA

Diverti-me bastante com esta comédia sobre o medo paralisante gerado em boa parte pela paranoia das classes mais privilegiadas. Mas é verdade que é um dos trabalhos mais irregulares do Ugo Giorgetti. Ano: 2016.

segunda-feira, junho 29, 2020

CASAMENTO PROIBIDO (You and Me)

Ao que parece, há quase uma unanimidade entre a crítica ao dizer que CASAMENTO PROIBIDO (1938) é um dos filmes menos importantes de Fritz Lang. O crítico Lewis Jacob disse que era o menos importante, mesmo vendo-o como relevante no sentido de ajudar a quebrar certas fórmulas hollywoodianas. E acho isso muito curioso, pois eu achei o filme uma delícia, por mais que pareça desequilibrado na utilização do humor.

O filme é a terceira e última parceria de Lang com a atriz Sylvia Sidney, que esteve com ele em FÚRIA (1936) e em VIVE-SE UMA SÓ VEZ (1937), dois trabalhos muito mais próximos da tensão e da tragédia, enquanto que CASAMENTO PROIBIDO é uma comédia romântica leve, ainda que também trate com seriedade o assunto que já havia sido tratado no título anterior, que é o posicionamento da sociedade diante de ex-presidiários.

A trama pode ser até um pouco inverossímil, mas não me importo: um dono de uma loja de departamentos contrata um grande número de ex-presidiários, pessoas que ainda estão em liberdade condicional. Ele acredita que, mais do que doar dinheiro, o melhor meio de ajudar essas pessoas é oferecê-las um emprego, algo muito difícil numa sociedade que costuma maltratar e estigmatizar essas pessoas. É um tipo de empregador que, se existir, não deve ser nos Estados Unidos.

Um homem e uma mulher que trabalham na mesma loja de departamentos se apaixonam. O contato entre eles na loja já passa um tipo de carinho e sentimento muito bonito na cena em que eles se cruzam em um escada rolante e tocam a mão do outro. Logo ficamos sabendo que ele, Joe (George Raft), está mudando de cidade. Ela, Helen (Sylvia Sidney), sabe que ele já cumpriu pena, mas mesmo assim gosta dele. Não demora muito para que aquela tensão de um amor não contado exploda e os dois acabem se casando. Mas a confusão vem do fato de que ela esconde algo dele.

Sylvia Sidney está sensacional em uma cena em que dá uma aula de lucro/prejuízo a um grupo de gângsteres que desejava assaltar a loja. A cena é talvez o ponto alto da atriz dentro dessa trilogia de Lang, fugindo da figura de mulher carinhosa e um tanto chorona que permeava os trabalhos anteriores. Aqui vemos a jovem mulher dando uma lição nos marmanjos, depois de eles serem pegos em flagrante. Em muitas partes da cena é fácil nos pegarmos com um sorriso no rosto. E isso é muito bom, por mais que Lang pareça falhar ou ao menos deixar passar uma certa estranheza em uma cena que deveria mesmo ser hilária. É o caso da cena dos gângsteres falando do quanto sentem saudades dos tempos da prisão. Essa estranheza tem o seu charme. Até parece Lang tirando de seus filmes anteriores.

Outra coisa que chama a atenção logo de início é a música que abre o filme, que, a princípio, eu pensei se tratar de uma crítica ao capitalismo (afinal, a canção diz que tudo que você precisa, você tem que conseguir com dinheiro), mas é uma espécie de brincadeira com o lema "o crime não compensa". Não se pode conseguir as coisas na vida assim tão facilmente.

Pena que o filme tenha sido um fracasso nas bilheterias americanas e tenha deixado Lang em inatividade por dois anos, e trazendo um sentimento errôneo de que os seus trabalhos realizados na Alemanha eram superiores ao período hollywoodiano. Mas sua história nos Estados Unidos estava apenas começando.

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MAMMA MIA! LÁ VAMOS NÓS DE NOVO (Mamma Mia! Here We Go Again)

Um musical bem desleixado e feito meio que para aproveitar que havia um monte de gente boa pronta para o projeto e não porque havia uma boa ideia, um bom roteiro ou mesmo boas ideias para as cenas musicais. Ainda assim, achei emocionante a cena de "Dancing Queen". E olha que nem sou muito fã da canção. Mas fiquei arrepiado com o misto de sentimentos que a cena traz. Direção: Ol Parker. Ano: 2018.

KINGSMAN - O CÍRCULO DOURADO (Kingsman - The Golden Circle)

O primeiro filme, eu havia gostado, mas era um tipo de diversão escapista e esquecível, com exceção de algumas cenas, com a da igreja. Mas aí vem essa continuação que não é baseada em HQ nenhuma do Mark Millar. Só aproveitam para cagar em cima dos personagens que ele criou. E o problema não é só nas ideias, mas principalmente na condução da coisa. Mais irritante que comédia que não faz rir ou sorrir é filme de ação que se esforça para empolgar e só cansa. Ainda mais tendo quase duas horas e meia de duração. E o que é aquilo com o Elton John, hein? Estou querendo lembrar de uma parte do filme que eu gostei e não consigo. Direção: Matthew Vaughn. Ano: 2017.

DESPEDIDA EM GRANDE ESTILO (Going in Style)

É mais um filme bacana sobre amizade do que uma história cômica sobre um assalto. Mas funciona nos dois aspectos, graças ao excelente trio de veteranos. Só achei que me pareceu um pouco longo para uma comédia despretensiosa. O que importa também é que dá pra dar boas risadas. E tem uma parte que parece uma versão cômica de uma cena do filme recente do Loach. Direção: Zach Braff. Ano: 2017.

domingo, junho 28, 2020

THE SOUVENIR

Desconhecia o trabalho de Joanna Hogg. Aliás, sequer sabia da existência da cineasta, que já está em seu quarto longa-metragem. Quando vi THE SOUVENIR (2019) não sabia o quanto o projeto era pessoal para a diretora. Não apenas pessoal: é autobiográfico; baseado em suas memórias de quando tinha 20 e poucos anos. Até mesmo o apartamento em que morava foi reconstruído a partir de uma fotografia que ela tinha. A história se passa em Londres, no início da década de 1980. E aborda um relacionamento que hoje podemos facilmente observar como sendo tóxico.

O filme ganhou um dos principais prêmios do Festival de Sundance do ano passado e é curioso como não chegou a ter uma repercussão boa o suficiente no Brasil, talvez por não ter tido um lançamento nos cinemas. Foi lançado nos streamings neste período da quarentena. Ainda assim, acaba passando batido em meio a tantas opções disponíveis, mesmo que a grande maioria das opções não valha o nosso valioso tempo.

Só o fato de ser um filme baseado em uma memória já me provoca o interesse, já alimenta a minha relação com ele. A própria diretora hesitou bastante em materializá-lo, justamente por tratar de algo tão íntimo e tão incômodo. É um projeto que ela alimentou desde 2015. Para conseguir uma atriz para interpretar sua personagem na juventude ela escolheu a semi-estreante Honor Swinton Byrne, filha de Tilda Swinton. A atriz só tinha no currículo de atriz uma pequena participação em UM SONHO DE AMOR, de Luca Gaudagnino, estrelado por Swinton.

Na trama, Honor é Julie, uma jovem estudante de cinema que conhece um homem um pouco mais velho, Anthony (Tom Burke), por quem se interessa e se apaixona. O homem é arrogante, lacônico, costuma apontar defeitos na moça, quando ele mesmo não parece ter lá suas qualidades. Nem bonito ele é. Ele esconde uma vulnerabilidade que surgirá aos poucos, à medida que formos conhecendo mais o personagem.

Em entrevista com a diretora ao jornal britânico The Guardian, a atriz Honor Swinton Byrne afirma: "Toda pessoa na faixa dos 20 anos não sabe o que está acontecendo em sua vida. Você está tentando descobrir no que você é bom, quem você é, o que você quer, quais são seus limites. E você comete erros e tem problemas de auto-confiança." Então, o que Anthony faz com Julie é se aproveitar desse momento mais delicado de se estar em seus 20s. Por mais que possamos nos solidarizar com os problemas de Anthony mais perto da segunda metade do filme, a relação vampírica é difícil de perdoar, de aceitar, ainda mais sendo Julie uma pessoa tão doce.

É impressionante a atuação de Honor. Nem parece estar atuando, de tão natural que é sua performance. Seu trabalho também foi de pesquisa: ela chegou a ler os diários da diretora dos anos 1980, a fim de buscar identificação e conhecimento sobre ela e ajudar na formulação da personagem. E Joanna Hogg imprime um trabalho realista nos diálogos que torna o filme verdadeiro em muitos aspectos.

THE SOUVENIR causa bastante desconforto, pois, desde o começo, a relação que se estabelece entre Julie e Anthony não parece agradável. Vemos tudo com certo distanciamento, não parece ser fácil se apegar ao personagem masculino como ela se apegou. Fica-se o tempo todo querendo que ela saia desse relacionamento e a pergunta vem e é feita à própria diretora na referida entrevista: "Por que ela ficou com Anthony por tanto tempo?". Ela afirma que é uma pergunta que não é possível responder.

Há no filme uma espécie de valorização e de saudosismo do mundo analógico. E isso é mostrado tanto nas cenas em que Julie está fotografando os amigos nas festas intimistas, quanto nas aulas de cinema a que ela assiste ou nas fitas cassete que ela coloca para escutar em seu aparelho de som. Aliás, é muito bom o uso bastante pontual da música no filme, entrecortando os silêncios.

O filme foi rodado cronologicamente em 16 mm e percebemos claramente a textura diferente e o bonito grão na fotografia. Cada rolo de 16 mm tem duração de 11 minutos, então havia o aspecto divertido de lidar com essa limitação. E essa opção por filmar em ordem cronológica pode ter influenciado positivamente na construção dramática da protagonista.

No fim dos créditos, anuncia-se um THE SOUVENIR - PARTE 2, que já está em fase de pós-produção e será lançado no próximo ano. Segundo a diretora, a parte dois começa quase que imediatamente onde termina a primeira e vai de 1985 até o final da década. Fiquemos atentos para mais um mergulho na memória e nos sentimentos de Joanna Hogg.

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STAR 80

E o filme de despedida de Bob Fosse foi este drama tenso sobre a morte de uma playmate e atriz iniciante, no filme vivida por uma Mariel Hemingway tão doce que às vezes chega a incomodar. Mas não tão incômodo quanto o namorado aproveitador e escroto vivido por Eric Roberts, um ator menor que talvez tenha aqui seu maior papel, como um psicopata difícil de se livrar. O filme se estrutura às vezes como um documentário, nas cenas em que alguns personagens contam para a polícia suas versões da história. A vítima é Dorothy Stratten, morta aos 20 anos de idade pelo ex-namorado. Seu último filme foi MUITO RISO E MUITA ALEGRIA, de Peter Bogdanovich, que teve uma depressão severa depois do ocorrido. Ano: 1983.

ALÉM DAS PALAVRAS (A Quiet Passion)

Conheço muito pouco ou quase nada da poesia de Emily Dickinson. Mas depois de ver este filme sempre que ler um poema dela vou ficar pensando na vida dela, no que ela passou (e não passou). Filme de silêncios, angústias e tentativas de autoafirmação diante de um mundo hostil. Cynthia Nixon está ótima, mas Jennifer Elhe rouba a cena também. Assim como a interpretação poderosa de Keith Carradine, como o pai de Emily. Direção: Terence Davies. Ano: 2016.

COMO VOCÊ É (Como as You Are)

Pra quem viveu de forma intensa a década de 1990 é bem interessante ver este filme que retrata uma juventude com dificuldade de lidar com a energia ou com os sentimentos. Tem algo na conclusão que não me agrada, mas até chegar lá é um belo filme. Direção: Miles Joris-Peyrafitte. Ano: 2016.

sábado, junho 27, 2020

VIVE-SE UMA SÓ VEZ (You Only Live Once)

Todo homem - em seu nascimento - é dotado da nobreza de um rei. Mas a mancha do mundo logo o faz esquecer até o direito de nascimento.
Padre Dolan (em cena de VIVE-SE UMA SÓ VEZ)


Retomo hoje a peregrinação pela obra de Fritz Lang com seu segundo filme realizado nos Estados Unidos. É também sua segunda parceria com a atriz Sylvia Sidney, que combina muito bem com um ar de mulher carinhosa e amável. De fato sua personagem é tudo isso e muito mais. Ela espera o namorado (Henry Fonda) sair de um período de três anos da cadeia. E o filme começa justamente no momento da saída do personagem da prisão, sem aquela cara de alegria. Não foi sua primeira vez na cadeia e ele tem suas razões para acreditar que o mundo lá fora pode não deixar que ele sobreviva como uma pessoa honesta. Esse já era um assunto tratado, ainda que de maneira não tão direta, em O TESTAMENTO DO DR. MABUSE (1933).

VIVE-SE UMA SÓ VEZ (1937) é uma espécie de mix de Romeu e Julieta com Bonnie & Clyde. Seus heróis, Joan (Sidney) e Eddie (Fonda), estão destinados a um final infeliz, como já podemos prever desde as primeiras cenas do filme. Em determinada cena, o casal está em um de seus momentos mais felizes, recém-casados, em uma hospedagem bonita e bucólica e veem sapos. Eddie diz que quando um sapo morre, o outro morre também: não consegue viver sem o outro. Daí a lembrança de Romeu e Julieta logo nos primeiros momentos.

Herdeiro de uma safra de filmes de preocupação social dos anos 1930, da qual o anterior de Lang, FÚRIA (1936), também faz parte, VIVE-SE UMA SÓ VEZ também é uma espécie de proto-film noir. A atmosfera hostil está no ar. Mas aqui há uma tendência, inclusive pelo uso da música, muito presente, em canalizar para um melodrama, o que não chega a ser um problema, mas que em alguns momentos incomoda um pouco.

O filme também apresenta a sociedade como extremamente cruel. Primeiramente pela incapacidade de lidar com ex-presidiários, o que os deixa à margem e muito mais propensos a voltarem ao mundo do crime. O sistema judiciário é questionado, pela facilidade de levar pessoas inocentes para a prisão. A crueldade se manifesta de maneira mais forte em dois momentos do filme: quando Eddie corta os pulsos deliberadamente às vésperas da execução e é imediatamente levado para fazer uma transfusão de sangue para estar apto a ir para a cadeira elétrica (isso é muito cruel!); e na cena da expectativa dos editores dos jornais, que já têm guardadas três opções de primeira página no dia do julgamento, de acordo com o resultado, mas com uma espécie de torcida pela infelicidade do homem.

O filme possui umas elipses curiosas. Quando corta para a cena em que Eddie já está na véspera de ir para a cadeira elétrica, fiquei com a impressão de que aquilo tudo tinha sido resolvido da noite para o dia, quando na verdade são cinco meses. Ainda assim, um espaço de tempo curto. Não sei o quanto era condizente com o que de fato ocorria. O mesmo ocorre com o nascimento do bebê. Não deixa de ser um tipo de montagem mais moderna. Não sei se já era comum na época.

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JOVEM MULHER (Jeune Femme)

Que baita filme esse, hein! Do início ao fim, respira e passa uma vitalidade impressionante. Que atriz que é essa jovem Laetitia Dosch. É mais um exemplar de um grande filme dirigido por uma mulher que pudemos ver no brilhante ano de 2017 de nosso Senhor. JOVEM MULHER nos pega pelo braço e não nos deixa desinteressados. Ao contrário: o desfecho é lindo. Direção: Léonor Serraille. Ano: 2017.

VICTORIA E ABDUL - O CONFIDENTE DA RAINHA (Victoria & Abdul)

O que houve com Stephen Frears? De toda maneira, este VICTORIA E ABDUL não deixa de ser um filme bem simpático e divertido, e que ajuda a enriquecer mais um momento da vida da Rainha Victoria nos cinemas. Os protagonistas estão ótimos e o outro ator que faz o segundo indiano é hilário. Ano: 2017.

NÃO SE PREOCUPE, ESTOU BEM (Je Vais Bien, Ne T'En Fais Pas)

Acho que nem sabia quem era Phillippe Lioret (o diretor), mas foi só ver o cartaz e as fotos da Mélanie Laurent no MKO que quis logo ver este filme.. E é um belíssimo filme sobre amor de irmã. E um bocado doloroso também. E que bom ver a Mélanie assim novinha, antes de fazer BASTARDOS INGLÓRIOS. E quanta força ela imprime na tela. Maravilhosa. Ano: 2006.

quinta-feira, junho 25, 2020

TIGERTAIL

Ainda que seja o primeiro longa-metragem de Alan Yang na direção, estamos diante da obra de um criador que teve a oportunidade de imprimir a sua marca na televisão, especialmente com a série MASTER OF NONE, da qual ele é cocriador, junto com Aziz Ansari. Ambos são pessoas nascidas nos Estados Unidos, mas com um aspecto físico que entregam que são descendentes de asiáticos. E TIGERTAIL (2020) é um filme muito pessoal de Yang, já que é inspirado nas memórias de seu pai.

Mas, embora possamos falar do aumento do número de cineastas americanos de origem asiática filmando nos Estados Unidos com uma língua que não o inglês, isso ainda é pouco, levando em consideração o número enorme de pessoas chinesas, taiwanesas, japonesas, coreanas, indianas etc. que vivem na chamada "terra das oportunidades". Mas falemos daquilo que talvez seja o principal mote de TIGERTAIL, que é a questão das escolhas na vida, de suas repercussões e da força das memórias.

Somos apresentados a Grover, um senhor sexagenário vivido por Tzi Ma, rosto muito conhecido inclusive de filmes hollywoodianos. Grover mora nos Estados Unidos há alguns anos e está de volta depois do funeral de sua mãe, que morava em Taiwan. Seu relacionamento com a jovem filha adulta Angela (Christine Ko) não é tão fácil. Ele é um homem muito fechado, não costuma ser a pessoa mais simpática do mundo e tem um histórico de ter sido bastante grosseiro com a filha durante a infância dela.

Yang faz um filme de idas e vindas no tempo, com as cenas de flashback gravadas em 16 mm, com aparência mais suja, e as cenas do presente em limpíssimo digital. Um dos méritos do filme é trazer o entusiasmo da juventude, representado principalmente pela relação que Grover teve com uma moça em Taiwan. Era uma jovem especial, o relacionamento dos dois era divertido, eles conversavam bastante. Mas eis que Grover conhece a filha do patrão e tem a chance de ir com ela para os Estados Unidos. Sem dinheiro e filho de família pobre, ele vê a possibilidade de casar com essa outra moça, com quem tem pouca aproximação e pouco interesse afetivo, como chance de vencer na vida. Mesmo que para isso tenha que abandonar o amor de sua vida.

Os hiatos apresentam os diferentes estágios da vida dos jovens casados, e inclusive oferece espaço para que conheçamos a vida da esposa de Grover, que, quando está distante do marido, se mostra outra pessoa, muito mais solta, mais feliz, o que só prova o quanto o marido era uma presença repressora.

Em entrevista ao site GQ.com, o cineasta conta que muito da ideia de filmar TIGERTAIL veio de suas conversas com o pai e especialmente de uma viagem que ambos fizeram para Taiwan, quando o pai o apresentou a lugares importantes de seu passado. E isso é mostrado no filme também, de forma a acentuar a forte memória que ele ainda carrega dos melhores anos de sua vida.

Por isso, o negócio é aproveitar que a Netflix dispõe de uma pequena joia como essa para ser vista e revista por um número imenso de pessoas no mundo inteiro. E, pelo amor de Deus, não façam a besteira de não ver o filme em suas belas línguas originais (mandarim, taiwanês e inglês) em detrimento de qualquer dublagem que seja.

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PARASITA (Gisaengchung)

Tive dificuldade de colocar em palavras o quanto gostei e o tanto que me incomodou (ainda que esse incômodo seja algo positivo). É um filme que borra as fronteiras entre bem e mal, ao acentuar uma sociedade com um alto grau de diferença econômica, como EM CHAMAS (de outro diretor fantástico da Coreia do Sul), feito um ano antes. Mas a dobradinha que se faz de PARASITA é com NÓS, de Jordan Peele, sendo que ainda tem a vantagem de ser mais envolvente. Talvez por nos conquistar inicialmente como comédia para depois ir trazendo suas surpresas. Direção: Bong Joon-ho. Ano: 2019.

UM DIA DIFÍCIL (Kkeut-kka-ji-gan-da)

Filme muito louco de ação e suspense sobre sujeito que atropela um homem na estrada e dá um fim inusitado ao cadáver. É mais do que isso e o diretor faz questão mesmo de exagerar para provocar o riso e adotar um tom cartunesco. Muito boa a iniciativa da Fênix de trazer este filme para o nosso circuito. Direção: Seong-hun Kim. Ano: 2014.

TRUQUE DE MESTRE - O 2º ATO (Now You See Me 2)

O primeiro filme eu já tinha até esquecido. E este segundo, então, é um tédio só. Principalmente pra quem não liga muito pra esse lance de ilusionismo e o filme tenta a todo custo que você fique fascinado com as bobagens que mostram. Nem o bom elenco salva. Direção: de Jon M. Chu. Ano: 2016.

quarta-feira, junho 24, 2020

7500

Longa-metragem de estreia do alemão Patrick Vollrath, 7500 (2019) consegue montar uma história de muita tensão que se passa totalmente dentro da cabine de um avião atacado por terroristas. O fato de termos uma visão limitada acaba por tornar tudo ainda mais interessante. Em uma produção convencional teríamos toda a reviravolta com os passageiros sofrendo a pressão e o terror da situação (ataque físico dos terroristas, avião prestes a cair etc). Em vez disso, e até como forma de diminuir os custos de produção, temos uma obra que foge da vulgaridade.

E é também uma obra que se pretende realista. O ator que interpreta o capitão do avião é um verdadeiro piloto, e muito do ótimo desempenho de Joseph Gordon-Levitt se deve ao fato de ele ter aprendido com o profissional e ter criado certa intimidade com a cabine, com seus botões, alavancas, meios de comunicação etc. Para trazer este realismo, o filme até namora o documentário, se iniciando com imagens de câmeras de segurança de um aeroporto de Berlim, com uso do silêncio como trilha sonora.

E, de fato, Vollrath parece querer construir um thriller anti-hollywoodiano, no sentido de sair das convenções da maioria dos filmes de ataques ou sequestros em aviões. A câmera não é estática, mas permanece boa parte do tempo focada no personagem de Gordon-Levitt, como se houvesse uma terceira pessoa ali dentro da cabine como testemunha. E essa testemunha somos nós, os espectadores.

O filme é bem-sucedido especialmente em sua primeira metade, quando a tensão crescente nos mantém interessados e muito curiosos com o desenrolar da situação. Porém, quando vemos que há uma resolução acontecendo pouco depois da segunda metade da narrativa, vemos que o diretor e seu corroteirista não souberam desenvolver um desfecho satisfatório.

Enquanto os terroristas estão apenas, com exceção de um deles, do lado de fora da cabine, lutando para entrar, o medo e a tensão se manifestam de maneira bastante intensa. Inclusive, com as ameaças de morte a membros da tripulação e de passageiros se intensificando e se tornando ainda mais dramáticas.

Talvez a estrutura de filme B também funcionasse melhor se o diretor optasse por um projeto de duração ainda menor, com cerca de 70 minutos, por exemplo. Isso tornaria o filme, além de mais enxuto, muito mais eficiente na construção da tensão e da densidade dramática, já que a meia hora final quase leva tudo a perder. Ainda assim, 7500 é um thriller muito bem-vindo e mais um exemplo de filme feito por um novo time de cineastas que têm surgido nesta virada de década.

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PROJETO FLÓRIDA (The Florida Project)

Que filme lindo!! Demorou um pouco pra me ganhar, mas quando me ganhou, encheu meu coração. Estava precisando de uma obra dessas. E a garotinha, que gigante que é a performance da menina Brooklynn Prince. O diretor Sean Baker se revela um dos novos grandes cineastas surgidos nos últimos anos, filmando com uma luz extraordinariamente linda, como se para esconder a escuridão da vida dos personagens. Ano: 2017.

O CASTELO DE VIDRO (The Glass Castle)

É o caso de filme que tem uma narrativa prejudicada por tentar se ligar demais à obra original. Ou talvez nem seja só esse o problema: algumas opções da direção são bem manjadas. O que conta pontos a favor são os dois personagens principais: o pai meio sem noção vivido pelo Woody Harrelson e a filha, vivida pela Brie Larson na fase adulta. Interpretações bem boas. Direção: Destin Daniel Cretton. Ano: 2017.

CHRISTINE

O filme já se torna interessante pela própria história mórbida, da âncora que se mata ao vivo e em cores. Sinto falta de mais impacto, mas talvez o filme queira ser mais sutil mesmo, mais respeitoso com a personagem. E Rebecca Hall está sensacional! Performance digna de Oscar. Direção: Antonio Campos. Ano: 2016.

terça-feira, junho 23, 2020

HARAKIRI

Nunca tinha experimentado fazer uma peregrinação com um vai e vem voluntário. Mas é mesmo deliberado isso, já que tenho mais dificuldades de ver os filmes mudos, e ganho muito entusiasmo quando vejo os clássicos falados. A intenção é ver todos os filmes de Fritz Lang. Creio que eu chego lá. Assim, volto agora no tempo para o seu segundo longa-metragem disponível, ainda que a cópia que eu tenha visto seja bem precária, mal dando para ver direito o rosto dos personagens.

HARAKIRI (1919) foi um filme feito entre os dois episódios de AS ARANHAS, mas é claramente uma obra muito mais modesta. Inclusive na duração (cerca de uma hora), seja pelos cenários, seja pelo uso mais corajoso da câmera, coisa que já se manifestava de maneira forte em AS ARANHAS: PARTE 1 - O LAGO DOURADO (1919), com o forte senso de aventura, mas principalmente pela produção mesmo.

Já HARAKIRI, por ter uma origem teatral, já tem por si só um caráter mais centrado nos atores. Não necessariamente nas falas, já que, por ser cinema mudo, economizava-se nas palavras. A peça do americano David Belasco, Madame Butterfly, inclusive, é querida do cinema e da televisão, tendo sido adaptada já diversas vezes. Ao que parece, Lang foi o primeiro a adaptá-la para o cinema.

É mais um filme desses do início da carreira de Lang que mostra certo fascínio pelas culturas exóticas, e provavelmente deve trazer algumas informações erradas sobre a cultura japonesa e o budismo. De todo modo, o que conta aqui é o tom de tragédia, que é o aspecto que mais chama a atenção e desperta algum interesse logo no começo, quando o pai da protagonista deve cometer suicídio com uso da espada. Sua filha vai, então, de futura sacerdotisa a gueixa e depois a esposa de um oficial da marinha europeu em muito pouco tempo. Dá impressão de que a narrativa é um pouco apressada ou atabalhoada, mas pode ter sido falta de atenção de minha parte.

Engraçado ver esses filmes em estado ruim de imagem, ainda mais sendo mudos e com personagens com os rostos todos brancos. Passa a impressão de que estamos vendo fantasmas, assistindo histórias de fantasmas. Dá um certo ar místico à experiência. Mas confesso que agradeço o fato de o filme só ter uma hora de duração. E sei que sua importância é mais por ser um treino e um aprendizado para o grande cineasta que estava surgindo.

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NAUSICAÄ DO VALE DO VENTO (Kaze no Tani no Naushika)

Talvez na década de 1980 a mensagem ecológica e de amor aos bichos e à natureza fosse tão urgente quanto é agora, mas, por razões óbvias, fica difícil não imaginar que esse tipo de filme não se aplica ao momento atual. Segundo longa-metragem de Hayao Miyazaki, é uma ficção científica distópica que se passa em um mundo pós-apocalíptico, um universo que o cineasta cria de maneira bastante inventiva. E há essa heroína fantástica, que tem uma relação linda com os animais, chegando até a ter uma espécie de superpoder. Ainda acho que o filme cai um pouco com a chegada da rainha má e das guerras, mas isso faz parte. É preciso haver o problema. E Miyazaki estava só começando. Fiquei interessado no mangá, que deve sair pela JBC em breve. Ano: 1984.

A DESPEDIDA (The Farewell)

Bela comédia dramática sobre a reunião de uma família em torno da doença terminal da matriarca. É um filme que se pretende pequeno, inclusive nos gestos, que são contidos, mesmo quando alguns personagens não se aguentam e começam a chorar, como na cena do filho da matriarca ou a do neto, durante uma festa. A trama envolvendo uma mentira lembra um pouco o inferior ADEUS, LÊNIN!. Este é bem mais simpático e mais complexo na apresentação da união das culturas chinesa, americana e japonesa, já que a família mora em diferentes países. Mas quem brilha mesmo é Awkwafina, como a neta da Nai Nai. É através dela que muito do sentimento do filme é filtrado e chega ao espectador. Destaque também para o bem cuidado desenho de produção. Direção: Lulu Wang. Ano: 2019.

A MULHER QUE SE FOI (Ang Babaeng Humayo)

Achei um bocado inferior aos outros dois filmes do Lav Diaz que vi. Dá impressão de que o prêmio em Veneza foi mais pelo conjunto da obra, mas ainda assim tem a sua força. Também posso por a culpa no meu corpo fragilizado, que não estava aguentando ar condicionado pesado numa sala com uma dúzia (no máximo) de pessoas. Em outras circunstâncias, certamente teria gostado mais. Ano: 2016.

segunda-feira, junho 22, 2020

WASP NETWORK - REDE DE ESPIÕES (Wasp Network)

Uma pena que Olivier Assayas tenha errado a mão. Ele é um dos cineastas franceses mais importantes surgidos nos últimos 40 anos. Vi cerca de uma dúzia de filmes dele e nunca vi nada tão desconjuntado até então. Talvez tenha faltado uma melhor amarração da trama, que por ser de espionagem, já se torna complicada. Mas as opções que ele toma não parecem ter sido felizes. Não há motivos práticos, por exemplo, para contar a história com jogos cronológicos de idas e vindas.

A primeira aparição de Gael García Bernal, quando o filme volta um pouco no tempo, serve para esclarecer para o espectador o jogo de espionagem que ocorre. Até então, ficava no ar uma sensação de falta de reais motivações por parte dos personagens cubanos que deixaram a terra natal para tentar algo melhor nos Estados Unidos. Pelo menos, é o que se poderia pensar a princípio: que se tratava de um filme que criticava o governo de Fidel Castro.

A narração fica à mercê de uma montagem confusa e alguns personagens secundários não parecem ter tanta importância assim. A importância de alguns deles só se materializa de fato no final, quando o filme vai falar dos destinos dos personagens reais. O próprio personagem do Leonardo Sbaraglia é um desses, que não diz muito a que veio. Coadjuvante de luxo.

De todo modo, foi bom ver tanta gente da América Latina e da Espanha junta, todos atores e atrizes muito bons, que mereciam um filme melhor, claro. Mas quem em sã consciência ia achar que WASP NETWORK - REDE DE ESPIÕES (2019) ia resultar em um desastre, tendo Olivier Assayas na direção e com um elenco de peso desses? Há quem diga que é um filme de produtor, do brasileiro Rodrigo Teixeira. Mas será que diriam o mesmo se fosse um sucesso?

Quanto ao elenco, é uma das poucas coisas que fazem valer a pena ver o filme, apesar de tudo. Temos representantes de peso de vários países: Penélope Cruz (Espanha), Edgar Ramírez (Venezuela), Gael García Bernal (México), Ana de Armas (Cuba), Wagner Moura (Brasil) e o já citado Leonardo Sbaraglia (Argentina). Ou seja, todos eles já muito conhecidos de produções internacionais de peso, sejam de Hollywood, sejam europeias ou mesmo brasileiras, no caso do nosso Wagner Moura.

Aliás, é bom perceber ao menos que Moura está melhor do que no horrível SERGIO, exibido recentemente também na Netflix. Inclusive, ele faz par romântico com Ana de Armas em ambos os filmes. E os momentos dos dois juntos funcionam melhor aqui do que as confusas situações envolvendo conspirações internacionais. Até uma cena sensual com eles novamente. E aqui parece menos gratuita, mais natural, com a beleza em flor de Ana.

Mas gigante mesmo é Penélope Cruz. Há pelo menos uma cena emocionante com ela. Uma das últimas é a mais tocante. Na trama, ela vive com o marido (Ramírez) em Cuba. Ele é piloto de aviões; ela trabalha em uma fábrica de borracha. Os dois têm uma filha pequena. Ele pega o avião e vai para Miami, deixando-a, e passa a ser visto no país como um traidor. As reais intenções do marido veremos a seguir.

A tal Wasp Network do título é uma rede de espiões cubanos que trabalham nos Estados Unidos para deter uma contrarrevolução que segue com força no início dos anos 1990 contra Cuba, uma espécie de guerra fria tardia. O filme é baseado no livro Os Últimos Soldados da Guerra Fria, de Fernando Morais.

Pelo que dizem algumas críticas de pessoas que puderam fazer uma comparação entre as duas obras (literária e cinematográfica), uma das armadilhas a que Assayas caiu foi tentar ser fiel demais ao livro e acabar não dando conta de tantos personagens e subtramas. Uma cena que lembra um pouco Assayas é a de um jovem que implanta bombas em hotéis. Um dos poucos momentos dignos do filme. Ainda assim, é uma obra que merece ser vista, nem que seja por consideração ao cineasta.

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A GRANDE JOGADA (Molly's Game)

Se não fosse a Jessica Chastain eu não teria aguentado este filme. É o típico filme de roteiro e cujo enredo não é suficientemente interessante. No caso, todas as cenas de jogos eu achei desinteressantes, por mais que o filme se esforce para não aborrecer o espectador, com a rapidez típica dos americanos. Gostei da participação do Kevin Costner como o pai. Direção: Aaron Sorkin. Ano: 2017.

VERÃO 1993 (Estiu 1993)

Eu, que geralmente não tenho muita paciência para filmes com crianças, gostei bastante deste. A diretora Carla Simón foi muito feliz em contar essa história em que parece que nada acontece, mas justamente por isso há uma força nas imagens e no modo delicado como a mudança na vida da criança é retratada. Ano: 2017.

MA MA

Acho que fazia tempo que eu não via um filme recente que se entregasse de corpo e alma ao melodrama sem medo de ser cafona. Linda essa história, e linda a Penélope. Também gosto muito da montagem, do modo como Julio Medem intercala tempos diferentes num vai e vém temporal muito bem acertado. Além do mais, chorar um litro de lágrimas não faz mal a ninguém. É catarse bem-vinda. Ano: 2015.

domingo, junho 21, 2020

A PRIMEIRA TRANSA DE JONATHAN (Mischief)

É ótimo quando a gente redescobre um filme e fica encantado. Assim aconteceu com A PRIMEIRA TRANSA DE JONATHAN (1985), de Mel Damski, filme que assisti na época que foi exibido na televisão. Tive que pesquisar e ver que foi em 1989. Eu estava na escola ainda e lembro da repercussão que houve entre os amigos. Aliás, era impressionante como os filmes exibidos em TV aberta eram populares e sempre motivo de debate entre as pessoas logo no dia seguinte.

Em 1989 eu já era por assim dizer um cinéfilo. Foi meu primeiro ano de cinefilia. Mas eu confesso que desmerecia esses filmes de juventude da década de 80. Até mesmo os de John Hughes eu até um dia desses não fiz muita questão de rever, mesmo já sendo quase uma unanimidade entre a crítica como exemplar do que de melhor se fazia sobre filmes sobre a juventude.

Então, o meu interesse em rever A PRIMEIRA TRANSA DE JONATHAN, passados mais de 30 anos (!!!), era apenas para rever a tal cena da primeira transa do rapaz com a belíssima Kelly Preston, com a maravilhosa imagem de seus gloriosos seios. Pode não ser um motivo muito nobre, eu sei, mas se eu fosse um poeta conseguiria convencer vocês do quanto isso transcende a mera esfera da excitação baseada em imagens gráficas.

Pois bem. Eis que, desde o começo do filme, com canções clássicas dos anos 1950 emoldurando a trama e seus personagens e tornando a experiência de ver o filme muitíssimo agradável, fui conquistado. E a conquista só aumenta à medida que vamos nos aproximando dos personagens colegiais, o desengonçado Jonathan (Doug McKeon), o novato na cidade e com pinta de conquistador Gene (Chris Nash), e seus respectivos interesses amorosos, a loira Marilyn (Kelly Preston) e a morena Bunny (Catherine Mary Stewart).

Gene logo se torna uma espécie de guru das conquistas para Jonathan. E também um defensor do rapaz, que costuma sofrer bullying na escola. O sonho de Jonathan é poder ao menos beijar Marilyn. Mas Gene diz que isso é pouco. Ele deve ir até o fim. E tirar de vez a virgindade. A amizade dos dois é bonita de ver e mais à frente veremos que o filme é mais sobre essa amizade do que sobre o relacionamento com as belas meninas. E também sobre as descobertas da vida jovem, as dores e as delícias das primeiras experiências.

A PRIMEIRA TRANSA DE JONATHAN é também um filme de provocar muitos risos. E é de fato um clássico, já que muitas cenas eu me lembrava. A cena do lenço para tentar dar um volume na calça; o lápis caindo no chão para ver a calcinha de Marilyn na sala de aula; a professora mandando Jonathan se levantar da cadeira; a famosa cena dos amassos no carro. Todas elas são um convite ao riso.

Vi numa excelente cópia em 1080p com legendas em inglês para surdos que trazem as letras de todas as canções. Assim pude pesquisar a linda canção que toca na primeira vez de Jonathan com Marilyn: "My prayer", clássico da banda The Platters. Antes de eles se beijarem ela faz uma citação a UM LUGAR AO SOL, de George Stevens, diz ser fã da Elizabeth Taylor etc. E a cena em si é uma beleza.

Aliás, referências cinematográficas não faltam. Há uma mais do que explícita a JUVENTUDE TRANSVIADA, de Nicholas Ray. Gene e o rival, namorado de Bunny, arriscam uma daqueles desafios de carros, inclusive. Isso, depois da sessão do filme de Ray no drive-in.

O filme lida com dois diferentes tipos de interesses amorosos: aqueles que estão mais centrados no desejo e no sexo, como é o caso de Jonathan com Marilyn (que, por mais que tentem taxá-la como superficial, ela é bastante carinhosa e gentil); quanto o de Gene e Bunny, de paixão e uma conexão mais espiritual. O fato é que, para minha surpresa, A PRIMEIRA TRANSA DE JONATHAN se tornou um dos meus filmes favoritos sobre a juventude.

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TE PEGUEI! (Tag)

Muito divertido este filme sobre um bando de marmanjos quarentões que ainda brincam de pega-pega. Dá pra dar umas boas gargalhadas. E há espaço para as mulheres brilharem nas cenas engraçadas também. Legal também saber que é baseado em uma história real. Direção: Jeff Tomsic. Ano: 2018.

SEXY POR ACIDENTE (I Feel Pretty)

O filme se mantém bem mesmo prolongando a piada ao longo de toda sua metragem. Pena que não consiga evitar o discurso açucarado que estraga e fala o que já era óbvio. Dessas coisas de dar vergonha mesmo. Mas Amy Schumer não teve culpa. Está muito bem. Direção: Abby Kohn e Marc Silverstein. Ano: 2018.

BAYWATCH - S.O.S. MALIBU (Baywatch)

Esperava mais de BAYWATCH. Ainda assim, é uma comédia com momentos muito bons. Zac Efron continua ajudando a dar brilho às comédias que participa. E a Alexandra Daddario... meodeos! Direção: Seth Gordon. Ano: 2017.

sábado, junho 20, 2020

FÚRIA (Fury)

Interessante a comparação que costumam fazer entre Fritz Lang e Alfred Hitchcock. Ambos seguem trajetórias com algumas similaridades, como o ótimo uso do suspense. Porém, foi Hitchcock quem soube melhor enfatizar este aspecto e ganhar o título de mestre do gênero. Mas temos outro ponto em comum: no ano de lançamento de FÚRIA (1936), Lang e Hitchcock trabalharam com a mesma atriz. Sylvia Sidney também esteve em SABOTAGEM, produção inglesa do mestre do suspense. Mas sua parceria seria maior com Lang, com quem faria uma trilogia que acompanhava o cinema social americano dos anos 1930. Depois de FÚRIA, os filmes seguintes foram VIVE-SE UMA SÓ VEZ (1937) e CASAMENTO PROIBIDO (1938).

É importante vermos que Lang era um estranho em terras americanas. Chegou até mesmo a ser tido como arrogante ou metido a besta por ter vergonha de atender uma ligação do chefão da MGM Louis B. Mayer, por causa de seu inglês ruim. Porém, acabou sendo um ótimo aluno e adentrou a cultura americana através de jornais, de ouvir conversas em ônibus e bares, e até mesmo de visitar tribunais para poder trazer mais realismo para sua primeira realização nos Estados Unidos. Quanto ao inglês, foi uma língua que ele fez questão de falar, já que queria evitar o alemão por causa da relação que naquela época havia com o nazismo, que ele mesmo abominava.

Quando comecei a ver o filme lembrei-me de O HOMEM ERRADO, obra-prima da década de 1950 de Hitchcock. Afinal, o principal momento de ação e suspense de FÚRIA começa com Joe Wilson (Spencer Tracy) sendo confundido com um sequestrador de crianças. Ele é preso e tenta poupar sua noiva Katherine (Sidney) dessa situação complicada. Katherine esperava por ele, depois de muito tempo que os dois viviam em estados separados para construírem uma situação financeira melhor e se casarem.

Eis que a multidão daquela pequena cidade fica sabendo que aquele que seria o sequestrador de crianças estava na delegacia e resolve, então, entrar e fazer justiça com as próprias mãos, não importando se o xerife e seus subordinados estavam ali para tentar impedir a entrada. O pobre Joe percebe a encrenca em que se encontra e a multidão incendeia a delegacia. Katherine consegue chegar a tempo de ver o seu amado noivo nas grades, em meio às chamas. Ela, então, desmaia. É uma situação extremamente tensa e perturbadora. Lembra um outro filme feito em Hollywood nos anos 1940, CONSCIÊNCIAS MORTAS, de William Wellman, que também discute o linchamento.

Apesar de eu estar escrevendo sobre a trama do filme aqui, imagino que este texto seja lido para quem já viu o filme, já que surpresas acontecem. Eu preferi ver o filme sem saber nada do enredo e isso foi muito positivo, até para não estar preparado para algo o que viria a seguir. Uma mudança de ritmo é adotada na segunda metade da narrativa, após a loucura que foi a cena da invasão à delegacia.

Uma coisa que eu preciso prestar mais atenção nesses filmes mais antigos de Hollywood é a participação dos negros, ainda que em papéis muito pequenos. Aqui, como se trata de um filme sobre linchamento, poderiam muito bem fazer um filme sobre algo que ocorria com certa frequência nos Estados Unidos: linchamentos de pessoas negras.

Lang não faz um filme para apontar o culpado ou os culpados. Ele, assim como em M - O VAMPIRO DE DUSSELDORF (1931), torna complexa a situação das pessoas que carregam a culpa. Até a obra anterior, LILIOM (1934), também trazia essa questão da necessidade do perdão, ou pelo menos da compreensão dos atos. No caso das pessoas que agiram com a vontade de linchar o homem, vemos que eles agem, principalmente, por causa de uma espécie de explosão de revolta que costuma acometer multidões em circunstâncias de extrema tensão. Por outro lado, vemos um personagem que, de certa pureza apresentada até então, é dominado pelo ódio e pelo sentimento de vingança.

A ida de Lang para os Estados Unidos foi um presente para o cinema americano.

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REDEMOINHO (Maelström)

Talvez o menos inspirado dos filmes de Denis Villeneuve, mas fundamental para ajudar a compor a sua filmografia tão coerente. Aqui, mais uma vez temos um protagonista vivendo as pegadinhas da vida. Isso é possível ver em toda a obra do diretor. De 32 DE AGOSTO NA TERRA (1998) até BLADE RUNNER 2049 (2017). Há uma questão moral que me incomodou um pouco, mas depois o filme se acerta. Ah, e Marie-Josée Croze é encantadora. Ano: 2000.

UM HOMEM DE FAMÍLIA (A Family Man / The Headhunter's Calling)

Pode até não ser lá tão bom, mas é um eficiente melodrama sobre trabalho vs. família quando um membro da família está muito doente. Como teve pelo menos um momento que me levou ás lágrimas, já ganhou o meu respeito, mesmo que daqui a um tempo eu o esqueça. Direção: Mark Williams. Ano: 2016.

DOCINHO DA AMÉRICA (American Honey)

Até dá pra entender o motivo de um filme como esse cair direto no Netflix, já que não é de tão fácil digestão. E tem também a questão da duração. Mas há filmes bem mais difíceis e que não passaram por Cannes que vão parar no circuito alternativo. AMERICAN HONEY é um mergulho pelo interior dos Estados Unidos e dos sentimentos da protagonista, uma moça que resolve largar tudo para encarar o novo. Até porque a vida que levava era bem ruim. Direção: Andrea Arnold. Ano: 2016.

sexta-feira, junho 19, 2020

PIEDADE

A demora na pós-produção e posterior lançamento de PIEDADE (2019), ocorrido apenas no Festival de Gramado, no fim do ano passado, poderia ser um indicativo de que se tratava de uma obra problemática. Não problemática no sentido de cenas polêmicas, como até se poderia esperar de Cláudio Assis, mas de tentar montar uma narrativa satisfatória a partir do material bruto conseguido. Na verdade, porém, Assis teve um AVC após as filmagens e isso foi um dos principais motivos da demora.

Em tempos de pandemia, o filme, que estava programado para lançamento nos cinemas em abril deste ano, está tendo um pré-lançamento online no festival de pré-estreias que o Espaço Itaú de Cinema está promovendo. A esperança dos realizadores e das distribuidoras (e também dos espectadores, claro) é que esses filmes sejam exibidos em salas de cinema assim que possível.

Ainda assim, por mais que possa ser considerada a obra menos inspirada de Assis, seu quinto longa-metragem já carrega a força das realizações de um diretor em pleno domínio de seu ofício, embora seja paradoxal que tenha resultado em um produto irregular.

O curioso é que minha primeira impressão do filme foi suas semelhanças com a trama da telenovela global AMOR DE MÃE: temos uma história de uma mãe em busca de um filho por décadas e temos também a luta contra uma grande e poderosa corporação que tem feito males terríveis ao meio-ambiente. E ainda temos em comum também a participação de Irandhir Santos, que em vez de vilão (como na novela) aparece aqui como Omar, o filho atencioso de Dona Carminha (Fernanda Montenegro).

Quem aparece invicto como parceiro eterno de Assis é Matheus Nachtergaele, que interpreta Aurélio, o representante da Petrogreen, empresa interessada em comprar/indenizar o terreno onde fica o bar de Dona Carminha, à beira-mar. Tanto por causa da poluição quanto por constantes ataques de tubarão, o pequeno comércio tem sido obrigado a comprar peixe em outro lugar para poder sobreviver.

Aliás, é curioso como o filme parece apontar no início para uma luta dos jovens contra a megacorporação através de ações cibernéticas, mas isso acaba se dissipando. O que se torna mais importante é a questão familiar, que parece ter muito mais de Hilton Lacerda, um dos roteiristas, do que do próprio Assis. Lembrando que uma relação carinhosa entre pai e filho já havia sido mostrada em um trabalho recente de Lacerda, FIM DE FESTA (2019), que conta pontos a favor por mostrar cenas muito mais bonitas entre pai e filho em momentos em que um misto de tranquilidade e melancolia se apresenta. Em PIEDADE, o pai e o filho são Sandro (Cauã Reymond) e Marlon (Gabriel Leone).

O filho acompanha os pais no negócio, um cinema pornô com cabines eróticas, que faz algum sucesso para o público masculino da cidade fictícia. Ecos de BAIXIO DAS BESTAS (2006), o filme mais intenso de Assis, se fazem presentes neste lugar, tanto por uma exibição em película na sala do filme em si (a controversa cena de gang bang/estupro coletivo com Dira Paes), quanto pela utilização de um plongée do ambiente somado a uma luz vermelha que cita o referido filme de Assis. Imagens de cartazes de filmes exploitation da época da Boca do Lixo também estampam o espaço, enfatizando um ar de decadência.

Um dos destaques positivos do filme é a bela fotografia, a cargo de Marcelo Durst, que havia trabalhado com Assis em BIG JATO (2016). A beleza das cores é de dar gosto, assim como as movimentações de câmera - podemos destacar a reunião da comunidade para definir a aceitação ou não dos termos da corporação, com a opção do cineasta por ir mostrando aos poucos a quantidade de pessoas presentes.

Talvez o momento mais problemático do filme sejam as cenas de sexo. Talvez Assis tenha ficado um pouco desconfortável em filmar sexo homossexual - em especial em uma cena no hotel. Quem sabe se ele resolvesse codirigir o filme com Hilton Lacerda o resultado fosse mais positivo nesse sentido.

A narrativa também se prejudica de certos buracos nas ações, dando a impressão de que muita coisa ficou na sala de montagem. Ainda assim, o desfecho um tanto brusco tem a sua beleza, e a única cena de Cauã com Fernanda Montenegro tem um brilho singular. Assim, por mais que estejamos diante de um filme cheio de imperfeições, ainda assim é uma obra fundamental especialmente para os apreciadores do cinema de Cláudio Assis. Inclusive, o filme é dedicado à mãe do cineasta. Assim, nada como trazer Fernanda Montenegro em toda sua glória para personificar a imagem de uma matriarca querida.

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ORGANISMO

Belo filme sobre a difícil fase de transição na vida de um homem que ficou tetraplégico. Pode ser só mais uma história sobre o tema, mas não é. O filme foca na questão do ser, a partir de memórias e do encarar as próprias falhas através da visão do protagonista e de sua namorada. Outro grande momento de Rômulo Braga e também de Bianca Joy Porte. Acertada estreia na direção e no roteiro de Jeorge Pereira. Ano: 2017.

GABRIEL E A MONTANHA

As ambições de Fellipe Barbosa com este longa talvez não tenha atingido a sensibilidade necessária. Ou é só impressão minha. Mas é uma obra especial, sem dúvida, tanto pela abordagem, quanto pela reconstituição e convite à viagem e ao perigo. E Caroline Abras está um amor. De novo. Ano: 2017.

AS DUAS IRENES

É impressão minha ou tem aparecido bastante filmes de coming of age brasileiros? MULHER DO PAI, O FILME DA MINHA VIDA e este AS DUAS IRENES, que é uma beleza. As duas meninas são ótimas, principalmente a primeira Irene. Algumas soluções bem pouco óbvias do roteiro são também louváveis. Quando se pensa que algo vai acontecer, acontece diferente. Isso é muito bom. Um dos melhores brasileiros do ano. Direção: Fabio Meira. Ano: 2017.

quinta-feira, junho 18, 2020

CORAÇÃO DE APACHE / CORAÇÃO VADIO (Liliom)

Como os dois títulos brasileiros são menos conhecidos do que o original, tratemos CORAÇÃO DE APACHE (1934), como, ao que parece foi o título que originalmente o filme recebeu quando lançado nos cinemas brasileiros - CORAÇÃO VADIO, talvez em um lançamento posterior, não sei dizer onde ou em que bitola - como LILIOM, o título original, mais famoso e nome do personagem principal, aqui interpretado por Charles Boyer, que em Hollywood ficou famoso quando fez DUAS VIDAS, de Leo McCarey, e À MEIA LUZ, de George Cukor, entre outros.

Sobre LILIOM, o célebre filme francês de Fritz Lang, chamado de interlúdio, pois foi rodado entre a primeira fase alemã e a fase americana do cineasta, confesso que tive meus problemas, embora goste de muitos aspectos do filme. O que mais me incomodou foi a questão da violência doméstica. Sei que Lang é um humanista, mas, como costumam dizer que ele é um cineasta misógino, em LILIOM tem-se um prato cheio, já que o protagonista agride a esposa, uma esposa amorosa e cuidadosa. E isso me incomodou um bocado.

Principalmente quando vi as cenas finais, com a filha perguntando à mãe: "Há tapas que não doem, mãe?", e a mãe responde que sim, lembrando do marido morto. Claro que não é tão simples assim e o filme explora um pouco da psicologia mais complexa de Liliom, de certa forma. Mas sobram momentos de malandragem do personagem e faltam mais momentos de carinho por parte dele. Assim, todo o amor, toda a entrega na relação, parece vir sempre de Julie (Madeleine Ozeray), que se recusa a deixar um marido que não quer trabalhar.

Aliás, não deixa de ser curioso ver tanto ela quanto a outra mulher, a Madame Muscat, dizerem que Liliom era um artista, que merecia tratamento diferente da sociedade. E entramos aí em outra questão interessante: a de como a sociedade é injusta para as pessoas mais pobres. Assim na Terra como no céu, inclusive. Mesmo no céu, Deus não está disponível para um homem pobre como ele; o céu como espelho da justiça da Terra.

Outro aspecto positivo de Liliom se manifesta no momento em que ele recebe uma espécie de ultimato de sua patroa/namorada e prefere largar o emprego sem nenhum tostão e ir embora com as duas moças, um tanto tocado pelo doce olhar de Julie. Além do mais, ele não deseja ser considerado propriedade de ninguém. É um posicionamento nobre. Ainda mais para um perigoso sedutor de mulheres, como afirmou o policial na cena do banco de praça. É lá que Julie diz: "Quando eu amo alguém, eu não tenho medo de nada."

LILIOM é adaptação de uma peça de Ferenc Molnár, e que já recebeu algumas tantas adaptações para o cinema e para a televisão. Para cinema, as mais famosas são esta do Lang, uma anterior, de 1930, dirigida por Frank Borzage, e uma chamada CARROSSEL, de Henry King, lançada em 1956. Não sei se essas outras versões entregam (ou não) logo no início que o filme trará momentos que sairão do território do realismo.

Como produção para cinema, percebe-se que se trata de uma obra de orçamento pequeno. Do parque de diversões do início, por exemplo, é mostrado muito pouco. Só o carrossel, a bilheteria e um ou outro brinquedo. Mas isso faz parte da magia do cinema. No entanto, isso acaba por impedir um momento de virtuosismo de Lang no uso da câmera, algo que já podíamos presenciar em O TESTAMENTO DO DR. MABUSE (1933), para citar uma obra imediatamente anterior.

Para não dizer que não elogiei o filme (na verdade, enquanto eu escrevo sobre ele, mais eu gosto), preciso lembrar do momento mais bonito: a morte de Liliom. Um dia desses, aliás, estava vendo outro filme (um brasileiro, chamado ILHA) e um homem pergunta ao outro como ele desejaria morrer. E eu fiquei pensando: morrer nos braços da mulher amada seria uma morte doce. E é o que ganha Liliom, nesta cena belíssima que destaca mais uma vez o amor gigantesco de Julie.

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O MEDO DEVORA A ALMA (Angst Essen Seele Auf)

Nada como um cineasta gay para tratar da questão do preconceito com tanta propriedade. Se aqui não temos o preconceito da relação entre duas pessoas do mesmo sexo, há um casal talvez ainda mais controverso: o de um homem muçulmano com uma senhora alemã vinte anos mais velha que ele. Rainer Werner Fassbinder reconstrói o melodrama sirkiano do jeito dele, com um jeito mais seco, com quase ausência de música e um trabalho visual lindo (fotografia, direção de arte). Talvez tenha faltado a mim mais empatia para me colocar no lugar dos personagens. Tanto que, quando o sujeito vai até o apartamento da loira, até acho que ele está tomando a decisão certa, já que chega um momento em que a relação entre o casal parece não evoluir para algo de cunho mais romântico ou sexual. Mas o diretor sabe lidar com todos esses problemas complexos. Ano: 1974.

O DIA MAIS FELIZ DA VIDA DE OLLIE MÄAKI (Hymyilevä Mies)

Uma das coisas mais belas deste filme é o amor do boxeador Olie Mäaki pela namorada. Tudo o mais, inclusive o boxe, fica em segundo plano. Em tempos em que o amor romântico vem sendo problematizado e subvalorizado eu ainda gosto de filmes assim. Direção: Juho Kuosmanen. Ano: 2016.

ELON NÃO ACREDITA NA MORTE

Filme admirável tecnicamente. Lembra um pouco alguns trabalhos dos irmãos Dardenne com a aproximação da câmera. A atuação de Rômulo Braga é espetacular. Mas falta alguma coisa para o filme alcançar a excelência. Direção: Ricardo Alves Jr. Ano: 2016.

quarta-feira, junho 17, 2020

NEVER RARELY SOMETIMES ALWAYS

2020 tem sido um ano único. Ficará na história como aquele ano que todo mundo lembrará, de uma forma ou de outra. E um ano com poucos lançamentos no cinema. Por isso julgo importante trazer à tona um filme visto há algumas semanas, e que me impactou muito, mas que acabei não escrevendo nada a respeito de imediato. E é um lançamento deste ano, exibido no Festival de Berlim, o único dos três grandes festivais internacionais a conseguir acontecer no ano da pandemia, em fevereiro. NEVER RARELY SOMETIMES ALWAYS (2020) foi vencedor do Grande Prêmio do Júri, também conhecido como Urso de Prata - o Urso de Ouro foi para THERE IS NO EVIL, do diretor iraniano Mohammad Rasoulof.

Neste ano, estamos vendo muitos temas caros a pessoas de linha mais progressista ganhando força. Entre esses temas está a legalização do aborto, muito polêmico por questões de ordem religiosa ainda. O terceiro longa-metragem de Eliza Hittman, então conhecida apenas em festivais e no circuito indie, se não é tão impactante quanto o romeno 4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS, ao abordar o tema, é certamente um dos mais significativo e mais tocantes.

É um filme que se torna grande através de pequenos momentos, concentrando tanto na relação de afeto entre as duas garotas, as primas Autumn (Sidney Flanigan) e Skylar (Talia Ryder), quanto em situações em que uma delas não consegue expressar a real dor que sente. Até porque o motivo de ela estar grávida, a identidade do pai da criança, todos esses pormenores, tudo isso conta pontos para que haja essa trava. E por mais que o filme também não nos diga diretamente, isso fica implícito à medida que vemos detalhes do cotidiano de Autumn, e também na sequência mais marcante: quando a garota precisa responder um questionário a respeito de sua vida sexual.

Na trama, Autumn descobre que está grávida, e sua prima Skylar, com quem trabalha no mesmo supermercado, fica sabendo e se oferece para ajudá-la. Na cidade onde moram, no interior da Pensilvânia, não é possível interromper a gestação com um aborto em uma clínica sem o consentimento dos pais, tendo menos de 18 anos (ela tem 17). Então, a saída de Autumn é partir para Nova York, onde isso é possível, pelas leis do estado. E, nesse sentido, o filme se torna também uma espécie de road movie sem carro e acontecendo em um intervalo de tempo muito pequeno, dois dias. As meninas, como não têm dinheiro para pagar um hotel, passam a noite nas ruas da cidade que nunca dorme.

NEVER RARELY SOMETIMES ALWAYS tem uma delicadeza admirável. Não trata apenas da dificuldade por que passa Autumn, mas também da relação de amizade entre ela e a prima, ainda que em algum momento possa existir algum atrito na relação. Em determinada cena, também marcante, as duas vão a um karokê, e Autumn canta. A canção é "Don’t Let the Sun Catch You Crying", de Gerry and the Pacemakers, e a letra traz um pouco de alento para a jovem: “The night’s the time for all your tears, / Your heart may be broken tonight, / But tomorrow in the morning light, / Don’t let the sun catch you cryin’".

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AS HERDEIRAS (Las Herederas)

Baita estreia deste diretor paraguaio em longa-metragem. O cara, além de saber lidar com um elenco de mulheres veteranas muito bem, trabalha o psicológico da protagonista de modo que entendamos a mudança pelo que ela vem passando e uma possibilidade excitante de nova vida, mesmo com quase tudo acenando para o pior. Vencedor em Gramado e a atriz, Ana Brum, foi vencedora no Festival de Berlim. Direção: Marcelo Martinessi. Ano: 2018.

DE VOLTA PARA CASA (Home Again)

Mais um veículo leve para Reese Witherspoon. Há ainda um público que prestigia os filmes que ela faz. E DE VOLTA PARA CASA não é ruim. Tem os seus méritos. É simpático, tem uma trama um pouco diferente dos padrões. Achei engraçado eu ter me incomodado com a presença dos três rapazes na casa. Direção: Hallie Meyers-Shyer. Ano: 2017.

PENDULAR

Saí do cinema ainda ruminando o filme, para saber o quanto gostei dele. Acho que o que provocou um bocado o meu distanciamento foi o tipo de ação dos personagens (seus trabalhos). Mas há também a interessante opção de Júlia Murat em não abraçar sentimentalismos e lidar com a questão do corpo de maneira bem particular. Quanto às cenas de sexo, elas justificam a classificação 18 anos? Achei o grafismo (se é que há) tão sutil... Ano: 2017.

segunda-feira, junho 15, 2020

O TESTAMENTO DO DR. MABUSE (Das Testament des Dr. Mabuse)

"É preciso destruir a crença que o cidadão normal tem nos poderes que elegeu. E quando tudo estiver destruído - é sobre isso que construiremos o reino do crime."
(Frase de um dos criminosos em O TESTAMENTO DO DR. MABUSE)

A fala acima nos parece muito familiar nos dias de hoje, com a ascensão de um novo nazi-fascismo tomando conta de muitos países do mundo. Infelizmente o Brasil é um desses. Na época da Alemanha de Hitler, massas de desempregados encontraram no führer a esperança para a realização dos sonhos de recuperar aquilo que perderam (além de verem agora um inimigo, um responsável por aquilo por que eles estavam passando). Inclusive, há um dos personagens importantes do filme que sai do desemprego para a criminalidade.

O TESTAMENTO DO DR. MABUSE (1933) foi realizado como uma preocupação política de Fritz Lang ao ver isso acontecendo e já prevendo que as consequências seriam terríveis. Seu trabalho nesta sua segunda experiência em um longa-metragem falado foge às expectativas, principalmente quando se pensa no primeiro filme estrelado pelo poderosíssimo vilão, DR. MABUSE, O JOGADOR (1922). Se o primeiro era um filme de aventura para grandes audiências, a sequência tem essa consciência de ser uma obra com um objetivo político claro.

Aqui estamos em um outro momento do cinema e Lang já havia mostrado um pleno e admirável domínio do som em M - O VAMPIRO DE DUSSELDORF (1931). Além do mais, engana-se quem pensa que encontraremos câmeras estáticas, algo bastante comum naqueles primeiros anos de cinema falado. A movimentação da câmera já começa com a primeira cena, com um uso notável do som, no galpão onde se falsifica dinheiro.

Na referida cena, ouvimos o som atordoante das máquinas e depois o tenso e preocupado ex-detetive Hofmeister investigando o negócio de falsificação de dinheiro. Quando dois gângsteres chegam para pegar novas folhas para preparar notas falsas, um deles vê o pé do investigador. Em seguida, se seguem cenas de ação e suspense que ajudam a dar o tom do filme, mas não totalmente. Logo somos apresentados ao protagonista, o rotundo Inspetor Lohmann.

A principal surpresa para mim foi a diminuição de cenas com o Dr. Mabuse, que não está mais em sua gloriosa fase de manipulação, agora internado em um manicômio e visto como um intrigante objeto de estudos por um professor psiquiatra, o Professor Baum. Na verdade, a presença de Mabuse é mais de natureza espiritual, como sendo o principal responsável pela presença crescente de forças do mal. O Dr. Mabuse seria uma espécie de alegoria do sistema criminoso que estava se instalando na Alemanha.

Embora não tão cheio de sequências fascinantes como o primeiro filme (até por ter menos da metade de sua duração), há várias cenas impressionantes em O TESTAMENTO DO DR. MABUSE, como a perseguição de carros perto do final. Enquanto via aquela admirável sequência, fiquei pensando no quanto Lang, muitos anos antes de David Lynch, já misturava o sobrenatural com o filme policial, o cinema de horror com a história de detetive.

Para a tal cena de perseguição, em que o Professor Baum corre em seu carro, hipnotizado pelo Dr. Mabuse, Lang cortou árvores e as substituiu por outras, criando uma floresta artificial junto com árvores de verdade, modelando o tamanho que ele achava ideal para elas. Não é impressionante? Outro momento de destaque acontece poucos minutos antes, em uma perseguição pela floresta, com um trabalho de movimento de câmera impressionante, nos colocando dentro da ação, no meio dos arbustos.

Enfim, há muito o que louvar no filme, inclusive a montagem que é brilhante, com Lang fazendo associações que se tornariam comuns posteriormente, como no momento em que Kent bate no tijolo tentando fugir com sua namorada, seguida de um corte para a cena de um gângster batendo na casca do ovo cozido em seu apartamento luxuoso. Há várias outras situações, inclusive com uso de voz sobreposta entre duas cenas.

E é uma maravilha que esse filme não tenha sido perdido. Por sorte, o produtor do filme, um judeu, Seymour Nebenzal, conseguiu levar para a França cópias, tanto em francês quanto em alemão, de modo a salvá-lo de eventual destruição pelo regime nazista. Nebenzal, como judeu, foi forçado a deixar a Alemanha semanas antes. Lang fugiria para a França também, na noite em que esteve com Goebbels e foi convidado para ser ministro de propaganda do regime de Hitler. O líder nazista havia ficado apaixonado por METRÓPOLIS (1927) e via em Lang a figura ideal para a empreitada. Foi o fim de uma fase na carreira de Lang, que faria um filme na França e em seguida vários outros nos Estados Unidos, onde passou a morar por mais de duas décadas.

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CIDADÃO KANE (Citizen Kane)

Minha relação com CIDADÃO KANE não é de tanto amor assim. Quarta vez que assisto e acredito que foi a vez que mais apreciei, especialmente na primeira meia hora. Mais ainda no início, que é formalmente admirável. Uma ousadia feita por um jovem artista. Os aspectos técnicos e ambiciosos do filme saltam aos olhos logo de cara, mas há algo que me dá um pouco de dor de cabeça, sempre que assisto. Não sei se é a fotografia com muito contraste - se bem que, dessa vez, o barroquismo me lembrou muito a obra de Josef von Sternberg. Pode ter sido uma influência. De todo modo, vou estudar mais o filme e aprender e continuar respeitando o seu legado e sua importância. Direção: Orson Welles. Ano: 1941.

O PREÇO DA SOLIDÃO (The Effect of Gamma Rays on Man-in-the-Moon Marigolds)

Embora Paul Newman tenha feito adaptações de romances também, acredito que seus filmes mais aclamados foram adaptações de peças de teatro. Ele parecia seguir numa direção diferente do que normalmente fazia em Hollywood como ator. Como um filme de ator, há uma valorização enorme da atuação, tanto de sua esposa Joanne Woodward, sua musa e presença forte na maioria desses filmes. Curiosamente, a personagem de que mais gostei foi da filha mais nova da protagonista, a mãe que cuida sozinha e sem dinheiro das duas filhas e tenta conseguir arranjar uns trocados fazendo o que dá. A filha mais nova é a interessada nos estudos, muito reservada e tímida, ao contrário da outra, que era capaz de magoar a própria mãe e sair de casa sorrindo. É um belo filme que trata de relações humanas, especialmente dentro de casa. A maior parte das cenas ocorre na humilde casa delas. A peça de Paul Zindel, adaptada por Newman, ganhou o Pullitzer. Ano: 1972.

O PÃO NOSSO (Our Daily Bread)

Que filme lindo! Mais do que bem-vindo neste momento em que estamos precisando nos unir para atravessar um período difícil. E talvez estejamos vivendo um momento de transição, já que precisamos mais de união do que de concorrência, de um ajudar o outro, de cada pessoa usar o que sabe fazer melhor para formar uma comunidade. Interessante que é um filme que até pode ter feito bastante sucesso nos países comunistas, talvez até King Vidor tenha sido acusado de comunista na época. Mas nada disso importaria se não fosse também um exemplar de grande cinema. Um cinema feito ainda em um período difícil da economia dos EUA pós-depressão. Há um momento em que o filme lembra bastante AURORA, do Murnau, e que contribui ainda mais para uma explosão de emoções. Ano: 1934.

domingo, junho 14, 2020

HIGH ART - RETRATOS SUBLIMES (High Art)

É curioso como o encontro com certos filmes chega por caminhos tortuosos. Desconhecia este HIGH ART - RETRATOS SUBLIMES (1998) e o vi figurar em um ranking de 200 melhores filmes eróticos do site Rotten Tomatoes. É importante observar que o ranking não leva em conta o grau de intensidade do erotismo, mas sim o percentual de aceitação dos filmes considerados eróticos pelos críticos. Tanto é que o primeiro lugar é a obra-prima A BELA INTRIGANTE, de Jacques Rivette. HIGH ART aparece na 73ª posição, com 73% de aprovação dos críticos.

Mas o que me chamou mesmo a atenção foi a presença de Radha Mitchell, uma atriz de que eu gosto muito e cuja beleza me encanta. E ela faz par romântico com Ally Sheedy, que vi recentemente em CLUBE DOS CINCO, uma atriz cuja popularidade foi bem forte na década de 1980. Já Radha estava despontando, ainda era jovem, tão jovem que é citada pela personagem de Patricia Clarke como "a adolescente", sendo que ela já tinha 25 anos na época do lançamento do filme.

Até a beleza ainda aparecia em estado bruto, talvez porque a intenção da diretora Lisa Cholodenko não fosse mostrá-la como uma modelo ou alguém perfeita. Em alguns momentos, ela parece estar sem maquiagem, inclusive. De todo modo, Radha é o caso de atriz que teve o auge de sua beleza nos anos 2000, mas que, dois anos depois deste filme, já chamou a atenção no circuito independente com uma ótima interpretação em GRITOS NA NOITE, de Mar Forster. E foi parar em um filme de Woody Allen em 2004, MELINDA E MELINDA.

O que faz de HIGH ART uma obra digna de nota, embora seja de fato um filme pequeno, é que temos cenas de intimidade entre as duas protagonistas que figuram entre as mais sensíveis, delicadas e ao mesmo tempo intensas no campo dos sentimentos entre pessoas do mesmo sexo. No quesito explosão sexual + sentimentos entre duas mulheres amando até temos exemplares melhores, claro, como CIDADE DOS SONHOS ou AZUL É A COR MAIS QUENTE. Mas Cholodenko faz questão de acentuar a paixão, a lágrima rolando nos olhos da jovem Radha quando ela vai pra cama pela primeira vez com a mulher por quem está apaixonada, por quem está desistindo de uma relação estável com um namorado/companheiro.

Talvez o fato de ser dirigido por uma mulher faça com que as cenas fujam de algo destinado a realizações de fantasias heterossexuais, como vistos em tantos outros filmes, inclusive pornôs. Aqui o que conta mais é o sentimento, acima de tudo. Em determinado momento, no carro, a personagem de Radha diz para a mulher que ama que não quer que a relação das duas esteja associada às drogas - a primeira vez que elas se beijam é depois de uma carreira de heroína.

E as drogas desempenham um importante papel na história, pois a casa da fotógrafa Lucy (Ally Sheedy) e sua companheira, a atriz Greta (Patricia Clarkson), é um lugar de encontro de amigos para usar drogas e relaxar. As duas, aliás, são artistas de territórios distintos que meio que desistiram de seus rumos; estão, na verdade, sem rumo. Tanto por causa da própria relação quanto pelos efeitos das drogas em suas vidas.

É quando surge Syd (Radha Mitchell), a moça que mora no andar de baixo do prédio, e logo se apaixona por Lucy. Syd trabalha na redação de uma revista de fotografia e trazer a fotógrafa rebelde e cultuada de volta depois de anos de ausência seria também uma forma de ascensão na carreira profissional. Ela acaba se tornando tanto sua modelo, quanto pessoa mais importante na vida de Lucy, quanto sua editora.

E uma das coisas bonitas do filme é a valorização dos momentos presentes e a consciência de que esses momentos são valiosos e são facilmente fáceis de se evaporar. É um filme que também se destaca por ser uma produção feita basicamente com artistas e técnicas mulheres. Direção, produção, roteiro, fotografia, montagem, casting, figurino, maquiagem, entre outros tantos técnicos. É o caso de realização que até nos dias de hoje não parece tão comum.

Outro motivo para chamar a atenção do filme é que se trata de uma obra de uma diretora que valoriza temas relacionados ao lesbianismo, já que faria posteriormente MINHAS MÃES E MEU PAI (2010). Atualmente está escalada para dirigir o remake americano de TONI ERDMANN, que está parado por causa da desistência de Jack Nicholson.

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ROCKETMAN

Um dos grandes acertos de ROCKETMAN foi optar pelo musical tradicional, podendo, assim, sintetizar muitas informações que eram importantes na trajetória de Elton John, mas que podiam ficar rasas em alguma cena não-cantada, como no momento em que o filme dá a entender o universo de orgias; ou a ascensão meteórica já com os primeiros discos etc. Melhor cena: "Your song". Talvez segunda melhor: o abraço. Direção: Dexter Fletcher. Ano: 2019.

É APENAS O FIM DO MUNDO (Juste la Fin du Monde)

Um puta elenco desperdiçado num filme chato e personagens insuportáveis. Mas o puta elenco muitas vezes faz a diferença e não consigo desgostar de todo deste filme de Xavier Dolan. Um filme que tem a Marion Cotillard e a Léa Seydoux juntas não dá pra reclamar muito. Ano: 2016.

VIVE L'AMOUR (Ai Qing Wan Sui)

Acho que não sou bem um fã de Tsai Ming-liang. Vi poucos dele e simpatizo com suas duas experiências mais recentes e mais extremas, no sentido de estender o plano ao nível do desconforto. Aqui já tem isso, mas em menor quantidade. Ainda assim, fiquei impaciente com os cinco minutos de close da mulher chorando. Mas há muita coisa que fica forte na memória, pequenos detalhes do cotidiano dos três personagens. E o que é essa obsessão dele por melancia, hein? Ano: 1994.

sábado, junho 13, 2020

DESTACAMENTO BLOOD (Da 5 Bloods)

Atualmente certas mensagens e certos filmes que precisam passar mensagens, especialmente políticas, precisam ser bastante claros. Didáticos, até. A fim de expressar sem sombra de dúvida aquilo que se deseja dizer. Em tempos de ascensão de uma extrema direita com claros vínculos com o fascismo, uma extrema direita que tem jogado com mensagens cifradas para confundir, isso se torna ainda mais necessário. E se DESTACAMENTO BLOOD (2020) já foi pensado como um filme anti-Trump e naturalmente anti-racista, até por ser dirigido por um dos cineastas mais ativistas dos últimos 30 anos, agora, então, é que tudo se torna ainda mais urgente, a partir da morte de George Floyd e das manifestações anti-racistas que isso desencadeou não apenas nos Estados Unidos, mas em muitos países do mundo.

O novo filme de Spike Lee, que seria o presidente do júri do Festival de Cannes 2020, cancelado por conta da pandemia, estava previsto para estrear mundialmente, fora de concorrência, no festival. Mesmo sendo uma produção da Netflix, em outras circunstâncias poderia ter sessões especiais nos cinemas, como ocorreu com ROMA, com O IRLANDÊS, com OS MISERÁVEIS e com ATLANTIQUE, por exemplo. De todo modo, ter a visibilidade que a Netflix é capaz de trazer acaba sendo positivo para que uma quantidade enorme de pessoas possa acessar o filme.

DESTACAMENTO BLOOD é claramente um produto de nosso momento, mas totalmente interligado a várias outras décadas, em especial aos tempos da Guerra do Vietnã, mas Lee faz sempre questão de aproveitar o seu espaço para enaltecer pessoas negras. Não apenas Muhammad Ali e Malcolm X, que aparecem em imagens de arquivo, mas trazer à tona a estupidez que era, por exemplo, ter um herói como o Rambo tentando fazer com que os Estados Unidos desfizessem o fracasso que foi para eles a Guerra do Vietnã, quando poderiam ter dado destaque, por exemplo, ao primeiro jovem negro morto em combate durante o conflito, como exemplo de herói.

E falando em herói, chega a ser simbólico ter o ator Chadwick Boseman, o intérprete do Pantera Negra, da Marvel, como uma figura mítica, pelo menos entre os seus amigos e parceiros do chamado Da 5 Bloods. Ele é um exemplo de alguém que tinha a sabedoria de entender a situação dos negros diante de um mundo desigual e a melhor maneira de procurar travar uma luta. Como um deles diz: Norman era "nosso Malcolm e o nosso Martin".

Assim, como acontece em boa parte dos filmes de Spike Lee, enaltecer o valor do homem negro, em especial o americano, continua sendo necessário. Tanto que boa parte das canções apresentadas no filme são de Marvin Gaye. Referências aos atletas Tommy Smith e John Carlos, à ativista Angela Davis, ao ano de 1619, quando foram trazidos os primeiros africanos escravizados em solo americano, entre outras pessoas e momentos marcantes, são outros exemplos.

O filme nos apresenta a quatro veteranos da Guerra do Vietnã que voltam ao país para cumprirem uma nova missão. Ou duas. Uma delas tem a ver com uma mala cheia de barras de ouro encontrada nos anos 1970, quando estavam em ação, e enterrada em algum lugar da batalha. A outra tem a ver com o corpo do companheiro Stormin' Norman (Boseman). Cada um desses quatro homens lidam com o presente de maneira muito particular. Um deles se destaca, que é o personagem de Delroy Lindo, o único que, para vergonha dos demais, votou em Donald Trump e até usa um boné com o lema "Make America Great Again".

Na missão de procurar e encontrar o ouro, como é de se esperar, ocorre um conflito de interesses e a ambição, pelo menos de parte do grupo, passa a mover e a envenenar o espírito deles. A referência ao clássico O TESOURO DE SIERRA MADRE, de John Huston, é clara, inclusive nas entrevistas de Lee, em que ele afirma ser o filme um de seus favoritos.

Muito interessante a utilização de três diferentes formatos de tela, o início em scope, as cenas no passado em formato 4:3, e em seguida a proporção 1,85:1, quando se inicia a missão. E mais uma vez acertada a brincadeira com as cores na fotografia, assim como a escolha curiosa e feliz de colocar os homens já envelhecidos nos flashbacks, junto com o jovem Boseman, como para demonstrar o sentimento de que, mesmo já sessentões, eles ainda teriam fôlego e coragem para enfrentar uma missão mortal.

E de fato a missão que eles empreendem é muito mais perigosa do que imaginam, já que ainda há minas, há pessoas especializadas em localizar e desativar essas minas, como a bem-vinda personagem de Mélanie Thierry, atriz que brilhou recentemente no drama de guerra MEMÓRIAS DA DOR, de Emmanuel Finkiel. Aqui ela é uma jovem francesa que faz parte desse grupo e que tem contato inicialmente com o filho do personagem de Lindo. Seu nome é Hedy, em homenagem à estrela hollywoodiana Hedy Lammar, outra das inúmeras referências cinematográficas do filme, assim como é também a inclusão da "Cavalgada das Valquírias", que ficou marcante em APOCALYPSE NOW, de Francis Ford Coppola. No filme de Lee, a inclusão da música de Richard Wagner ganha um ar de deboche.

Um drama bem pessoal de um dos personagens acentua a questão do racismo, dessa vez no Vietnã. O personagem de Clarke Peters reencontra um amor do passado, uma mulher vietnamita. E descobre que tem uma filha com ela, e fica sabendo, com dor, do quanto a garota foi maltratada pela sociedade, por causa de sua cor. Ou seja, a violência do racismo se amplia no cinema de Spike Lee, não apenas nos Estados Unidos, mas aparecendo também em um país do outro lado do mundo. Nada mais justo ampliar esse debate para o mundo. E é isso que está acontecendo. Esperemos que seja para nossa evolução como seres humanos e para o surgimento de uma sociedade mais igualitária e fraterna.

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120 BATIMENTOS POR MINUTO (120 Battements par Minute)

Baita filme-pancada este. Gostei de tudo. Das discussões nas reuniões da Act Up, das ações, das cenas de namoro dos dois rapazes, da dor com que é mostrada na evolução da doença e do que vem a seguir. Não esperava gostar tanto. E de fato se um filme como esse fosse feito e lançado lá em meados dos anos 1990 seria como uma bomba. Mas, mesmo lançado agora, 20 anos depois que foram encontrados melhores tratamentos para a AIDS, não tira a sua força não. Até por enfatizar a união dos gays, coisa que está cada vez mais atual, nesse mundo de polaridades e de retrocessos de conquistas humanas. Direção: Robin Campillo. Ano: 2017.

EU, DANIEL BLAKE (I, Daniel Blake)

Caso de filme que arrancou aplausos da audiência, além de choro, mas que não me pegou não. Não funciona como melodrama e a tentativa de torná-lo seco (existe uma trilha sonora?), como o trabalho anterior dos Dardenne, também não diminui a sua cara de novela barata. Ainda assim é um filme bom de ver. Direção: Ken Loach. Ano: 2016.

NERUDA

Mais um filme de Pablo Larraín que não me desce. E pior: me fez ter saudade de O CLUBE (2015). Até tem coisas em NERUDA que me agradam, mas no geral é um filme que parece travar sempre em sua vontade de ser inteligente e bem humorado. E falha também no modo como mostra o poeta e sua arte. Mas o debate em torno da igualdade e de ser coadjuvante é interessante. Ano: 2016.