segunda-feira, março 23, 2020

FIM DE FESTA

Quarentena, dia 6. Estou tendo dificuldade grande de ver filmes, de me concentrar neles. Ainda não encontrei nenhum que fosse capaz de me fazer esquecer da realidade, da situação em que nos encontramos. Na verdade, os filmes até têm aumentado minha angústia, em comparação com algumas leituras (livros, quadrinhos, revistas), que têm sido mais eficientes em confortar o meu espírito. Também estou encontrando um tanto de alívio na escrita de textos para o blog, não importando se os textos saem como gostaria que saíssem. O importante agora é deixar que o misto de informação, sentimento pela obra e exercício de memória trabalhem juntos.

E o título que gostaria de falar a respeito hoje é FIM DE FESTA (2019), de Hilton Lacerda, um dos filmes que prometiam uma nova leva de ótimos lançamentos brasileiros que surgiriam no momento pós-Oscar. Mas aí veio o Corona-vírus e estragou tudo. Ou estragou o semestre, digamos assim. Sejamos ao menos otimistas de que no próximo semestre entraremos em uma era gloriosa de recuperação do prazer do cinema como espaço coletivo.

Pensar em FIM DE FESTA é também pensar em abraços, em afagos, em carinho. É pensar no modo carinhoso com que o policial Breno vivido por Irandhir Santos trata o filho Breninho (Gustavo Patriota). A aproximação dos corpos é algo muito presente no filme e embora haja sim sexo, inclusive uma cena de sexo grupal, o que mais lembramos é da aproximação dos corpos como afeto entre pai e filho nas cenas lindas em que o Breno pai conversa com o Breno filho na sacada do apartamento enquanto compartilham um baseado, massageando o pé do outro e falando sobre suas angústias, suas frustrações. Principalmente da parte do policial, que retorna de férias na quarta-feira de cinzas e parece viver um constante estado de ressaca, com sua voz sempre pausada e expressão cansada.

O Carnaval hoje é um símbolo muito associado à esquerda, nesses tempos de polarização. E, diferente de TATUAGEM (2013), o longa-metragem anterior de Lacerda, que passava um clima de liberdade transgressora muito bonita, este novo é bastante contaminado pelos novos tempos. Filmado durante a tensa campanha eleitoral de 2018 que traria Bolsonaro para a presidência, o clima não podia ser dos mais felizes.

O filme acompanha duas histórias paralelas: temos a história de vida tranquila pós-Carnaval dos jovens, Breninho e seus amigos, que ocupam o apartamento do pai, promovem a suruba e o amor livre e bissexual, vão à praia, aproveitam o momento enquanto estão juntos, já que em breve se separarão.

Há, inclusive, uma cena na praia que se destaca e que é reflexo da polarização. A menina Penha (Amanda Beça) pratica o top less e é logo hostilizada por um grupo de pessoas que advoga para si as boas maneiras. Uma mulher até diz que quer o seu país de volta. É o Brasil se preparando para o que viria. A outra história acompanha o policial tentando desvendar o assassinato de uma turista alemã durante o Carnaval, mas os detalhes das investigações acabam sendo pouco importantes para o filme, que se constrói muito melhor em climas, atmosfera e nos gestos de seus personagens.

No mais, há que se destacar a única cena com participação de Hermila Guedes, conversando com o personagem de Irandhir. Muito boa. Dessas que fazem o público prender a respiração para curtir os silêncios e as falas desses grandes intérpretes, que ajudam a elevar ainda mais o já belíssimo cinema produzido em Pernambuco.

+ TRÊS FILMES

MEIO IRMÃO

O que mais impressiona neste filme é a performance da jovem estreante Natália Molina. Ela dá um show e sempre que o filme fica sem sua presença cai um pouco. O que mais importa é o seu drama. O drama de uma menina cuja mãe saiu de casa há vários dias e não voltou. De estar se sentindo tão rejeitada quanto agredida pelo mundo. O momento em que ela diz que prefere não ter filhos, pois eles crescem para se tornarem escrotos, é bem representativa desse sentimento de desencanto. Aí temos o meio irmão dela, cuja trama é um pouco menos interessante, envolvendo uma filmagem de dois rapazes gays dando uns amassos e sendo depois espancados por uns caras homofóbicos. A união das duas histórias acaba não dando muita liga, mas o filme tem inúmeros momentos inspirados. Direção: Eliane Coster. Ano: 2018.

SOLTEIRA QUASE SURTANDO

Mina Nercessian é a razão de assistir a esta comédia romântica leve, que até lembra os trabalhos feitos por Mônica Martelli. Mina é uma mulher de 35 anos que descobre que está com menopausa precoce e tem poucos meses para engravidar e realizar o sonho de ser mãe, que até então era algo que ela não fazia questão de ser. É um filme para ser visto relevando os problemas de dramaturgia, as atuações, alguns diálogos e procurando se divertir com o que o filme tem de melhor para oferecer. E o melhor é Mina, com um carisma admirável. Se esse filme for um sucesso, ainda que pequeno, pode ser que ela ganhe novas chances de brilhar. Caco Souza é diretor de 400 CONTRA 1: UMA HISTÓRIA DO CRIME ORGANIZADO (2010), pouco visto, mas com um elenco bem interessante. Ano: 2020.

SÓCRATES

A comparação que o Merten faz deste filme com MOONLIGHT, de Barry Jenkins, no cartaz, tem a sua razão de ser, tanto por abordar a vida de um jovem negro e homossexual, quanto pelas dificuldades por que ele passa. Mas são dificuldades muito maiores, mais apropriadas à dura realidade brasileira. E por mais que pareça exagero mostrar o personagem pegando comida do lixo para aplacar a fome, sabemos que isso é realidade. Um dos méritos (ou curiosidades) do filme está em não mostrar o personagem enveredando por uma vida de crime, o que seria bem compreensível, afinal, em momentos desesperados, atitudes desesperadas e urgentes se fazem necessárias. Acaba sendo um filme sobre moral também. Confesso que não me ganhou totalmente, mas tem seus méritos. Direção: Alexandre Moratto. Ano: 2018.

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