sábado, outubro 31, 2015

CANIBAIS (The Green Inferno)



Este ano marcou o retorno de Eli Roth às telas. Não foi como o esperado, já que mesmo os fãs do diretor acabaram desgostando principalmente de sua obra há tanto tempo aguardada, CANIBAIS (2013), que estava passando por algumas pendengas para finalmente ser distribuído nos Estados Unidos. E bastou o filme cair na rede (não estreou nas salas brasileiras ainda) para que o pessoal caísse de pau no filme. Enquanto isso, um mais recente trabalho do diretor, BATA ANTES DE ENTRAR (2015) entrou em cartaz e, apesar de tosco, foi até melhor recebido. Em comum em ambos os filmes, além da direção de Roth, há a presença de sua bela esposa Lorenza Izzo, e o fato de ter coprodução com o Chile, com vários técnicos chilenos etc.

CANIBAIS seria o retorno triunfal do cineasta depois de tanto tempo longe da telona. Seria também em grande estilo, homenageando o ciclo canibal italiano, em especial o mais respeitado do subgênero, CANIBAL HOLOCAUSTO, de Ruggero Deodato. O que pode ter deixado muita gente frustrada é o modo pouco sério com que Roth dá o tom. CANIBAIS, em vez de provocar mal estar, acaba divertindo bastante, principalmente para quem não se importa em ver gente tendo seu corpo decepado e indo ao forno para fazer a alegria da comunidade que curte carne humana.

Roth parece ter a intenção de dar um tapa na cara dos hipócritas que se escondem em pele de preocupados com a natureza e com as injustiças sociais, mas que têm interesses nada nobres por trás. Mas o que importa mesmo é curtir a aventura cheia de gore – e também sem muita preocupação em soar realista – do grupo de estudantes universitários que viaja para a área peruana da Floresta Amazônica, a fim de protestar contra a derrubada de árvores de um território indígena. Depois de pegarem a personagem de Lorenza para Cristo e conseguirem algum êxito, o avião cai, alguns morrem no acidente e outros ficam à mercê de uma tribo canibal que faz a festa com o apetitoso cardápio que acabou de chegar.

Roth não dispensa o humor negro e às vezes escatológico, em especial nos momentos em que os sobreviventes ficam presos dentro de uma jaula como porcos, prontos para serem abatidos (como não lembrar da moça que fica com diarreia?). E um dos méritos do filme é saber deixar o espectador interessado até o fim, não importando se o que estamos vendo é um produto de bom gosto ou de mau gosto. Isso realmente interessa?

O cineasta, aliás, já tinha cruzado essa fronteira antes em O ALBERGUE (2005) e O ALBERGUE – PARTE II (2007), mas eram obras mais bem acabadas e também bem mais pesadas na violência, talvez por fazerem parte de um momento em que o torture porn estava em moda. Provavelmente CANIBAIS tenha vindo em um momento em que os diretores parecem querer pegar mais leve, talvez um pouco cansados dos excessos dos anos 2000, ou então estão mesmo sofrendo alguma pressão da indústria para que suavizem seus trabalhos.

sexta-feira, outubro 30, 2015

GRACE DE MÔNACO (Grace of Monaco)



Certas coisas eu realmente não entendo. E de certa maneira é até bom que aconteçam de vez em quando para provar o quanto somos (ou não) influenciados pelas expectativas, pelos pré-conceitos e pelas críticas alheias, ou ao menos pelo resultado como um todo delas. GRACE DE MÔNACO (2014) não teve apenas uma recepção fria da crítica quando abriu o Festival de Cannes no ano passado. No site Rotten Tomatoes, há apenas 10% de críticas positivas ao filme.

Vendo isso, dá impressão de que se trata de algo pior do que a biopic DIANA. Mas o que pude perceber e apreciar foi um trabalho sensível que brinca com fatos reais em prol da busca pela dor, pela fragilidade, pela insatisfação e pela força de uma das atrizes mais queridas da Velha Hollywood, Grace Kelly. Também conhecida como Princesa Grace de Mônaco.

Além disso, GRACE DE MÔNACO ainda se transforma, em sua segunda metade, em um suspense psicológico, quando somos jogados em uma trama envolvendo uma espiã na corte, uma muito provável invasão da França, na época, sob o comando de Charles De Gaulle, numa história que parece saída dos melhores filmes de espionagem do mestre Hitch. Como se, sob a impossibilidade de Grace aceitar fazer MARNIE – que ela queria tanto –, a vida em Mônaco naquele momento conturbado pudesse, enfim, servir de combustível para sua sede de atuar e sua busca de espaço naquele ambiente. Afinal, tudo o mais que ela faria para a salvação do principado seria graças a seus dotes de atriz.

A questão do atuar está em todo o filme. O próprio Príncipe Rainier (Tim Roth) deixa claro que não casou com Grace por amor, mas porque ela seria a pessoa ideal, racionalmente falando, conforme escolha de seu conselheiro (Frank Langella), que se tornaria o melhor amigo de Grace naquele momento de solidão e cheio de pessoas estranhas e pouco confiáveis. Naquele lugar, falar o que pensa é um ato perigoso, mas não deixa de ser empolgante o rápido debate que a Princesa tem com um representante da França sobre a guerra na Argélia e a questão do colonialismo.

E o que dizer de Nicole Kidman? Ela está adorável. Grande atriz que é, compensa o fato de já não estar mais no auge da beleza e não ser tão bela quanto a Grace Kelly era com muita sensibilidade. Além do mais, o diretor Olivier Dahan utiliza uns closes lindos de seu rosto, ora aproximando os olhos, ora aproximando a boca, como numa espécie de relação de encanto com a personagem/atriz, ao mesmo tempo em que também sinaliza o seu nervosismo e apreensão.

O fato de ser um filme sobre os bastidores de Hollywood, pelo menos um pouco, ajuda a manter o interesse dos cinéfilos. Como não ficar feliz quando vemos que uma das primeiras cenas é justamente a visita de Alfred Hitchcock à Princesa em 1961? Claro que depois os bastidores passam a ser outros: da política, da delicada rixa envolvendo Mônaco e França. E nomes famosos daquele círculo de amizade são bem-vindos, como Onassis (Robert Lindsay) e Maria Callas (Paz Vega).

Aliás, que lindo quando Maria Callas canta "O mio babbino caro"! A canção por si só já é mágica, mas dentro da narrativa ela tem a sua importância, antecedendo uma das melhores cenas. Mais uma vez, fico sem entender e até me recuso a ler algumas críticas negativas ao filme, pelo menos por enquanto, de modo que meu amor por GRACE DE MÔNACO se estenda por mais tempo.

quinta-feira, outubro 29, 2015

COM 007 SÓ SE VIVE DUAS VEZES (You Only Live Twice)



Apesar de ter o box contendo todos os filmes da franquia 007, não me considero um fã de James Bond. Vi alguns estrelados por Sean Connery e Roger Moore na televisão há muito tempo e comecei a acompanhar a fase de Pierce Brosnan no cinema, mas sempre achei aquilo tudo muito chato. Só passei a gostar do ator quando ele deixou de ser James Bond, inclusive. Mas tudo mudou com 007 – CASSINO ROYALE (2006), de Martin Campbell, o primeiro de uma fase gloriosa estrelada por Daniel Craig. Além de uma trama mais sofisticada, há uma dimensão trágica e mais forte em torno do personagem, o que muito tem me agradado.

Na expectativa de 007 CONTRA SPECTRE, a estrear no início de novembro, resolvi pegar um que envolvesse não só a organização Spectre, que aparece em vários filmes da "fase clássica" do personagem, mas como também com ênfase no vilão Blofeld, que supostamente pode estar no novo filme e que em COM 007 SÓ SE VIVE DUAS VEZES (1967) aparece tão afetado que só pode mesmo ter pedido para virar paródia, o que ocorreu anos depois nos filmes da trilogia Austin Powers.

Com sua pegada mais caricatural, o diretor Lewis Gilbert seria chamado para dirigir mais dois filmes estrelados por Roger Moore, 007 – O ESPIÃO QUE ME AMAVA (1977) e 007 CONTRA O FOGUETE DA MORTE (1979), filmes de uma fase que brincava cada vez mais com os brinquedinhos de Bond, que se tornariam muito mais discretos na fase Daniel Craig.

Algo que incomoda em COM 007 SÓ SE VIVE DUAS VEZES é o quanto os efeitos especiais ficaram datados. Parecem de filmes B da década de 1950. E pensar que só um ano depois Stanley Kubrick traria o perfeito 2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO... Além do mais, fiquei sabendo que só os gastos com o set do vulcão foram maiores do que todo o orçamento de 007 CONTRA O SATÂNICO DR. NO (1962). Isso que eu chamo de dinheiro mal empregado.

Quanto ao fato de boa parte da ação se passar no Japão, não deixa de ter o seu charme, mas tudo parece forçado e artificial. Parece que na época havia uma moda envolvendo filmes com ninjas e eis o motivo de fazer um 007 com esses guerreiros secretos e silenciosos made in Japan. Há duas Bond girls japonesas também no filme. Duas belas moças, aliás. A ruiva bonita só serve mesmo para beijar o agente sem ter muito motivo para isso, soltá-lo, deixá-lo escapar no avião e depois virar comida de piranha.

O cartaz do filme mostra Bond pilotando um mini-avião cheio de budgets, como lança-chamas e outras armas para enfrentar os aviões inimigos, representando a cena de ação mais interessante. Naquela época, ainda estava rolando a Guerra Fria (na verdade, demoraria ainda um bocado para acabar) e a trama brinca com as possibilidades de os Estados Unidos ou a União Soviética darem início a uma terceira guerra mundial. Isso por causa das maquinações do vilão, Blofeld, aqui vivido por Donald Pleasance.

Lendo a trivia do IMDB sobre o filme, que traz curiosidades mais interessantes do que a própria produção, fiquei sabendo que os produtores Albert R. Broccoli e Harry Saltzman, o diretor Lewis Gilbert e boa parte dos principais técnicos do filme escaparam da morte ao terem perdido um voo que partiria de Tóquio para Hong Kong. O tal voo caiu no Monte Fiji, matando todos a bordo. Que sorte deles. E que triste para quem estava no avião.

terça-feira, outubro 27, 2015

TRÊS FILMES DIRIGIDOS POR MULHERES



Bom perceber que num espaço tão machista quanto o cinema a mulher esteja lutando e conseguindo espaço na posição de diretora. E curiosamente os três filmes abaixo são brasileiros, o que passa uma impressão – será só impressão? – de que estamos mais à frente nisso do que os americanos, que têm pouca representatividade feminina atrás das câmeras (na posição de cineasta, digo). Nos três filmes abaixo, temos dois exemplos de alto talento: uma veterana, Ana Carolina, que se esforçou e fez um ótimo filme para ninguém ver (uma pena), e Juliana Rojas, um novo talento que ainda vai nos trazer muitas alegrias. Eu acredito nisso. Um pouco sobre os filmes, então.

A PRIMEIRA MISSA OU TRISTES TROPEÇOS, ENGANOS E URUCUM

Quem acompanhou o cinema brasileiro dos anos 1980 sabe o quanto o nome de Ana Carolina é importante. MAR DE ROSAS (1978), DAS TRIPAS CORAÇÃO (1982) e SONHO DE VALSA (1987) compõe uma das trilogias mais adoráveis de nossa cinematografia. Pena que ela tenha passado tanto tempo para voltar à direção depois disso, além de ser pouco reconhecida pelas novas gerações, ainda que continue fazendo um bom trabalho. A partir de AMÉLIA (2001) ela passou a voltar os olhos para o passado, ousando fazer filme de época no Brasil. A PRIMEIRA MISSA OU TRISTES TROPEÇOS, ENGANOS E URUCUM (2013) é um caso especial. Começa parecendo filme de época, mas logo vemos se tratar de uma filmagem, de uma comédia um tanto amarga sobre a dificuldade de fazer cinema no Brasil. E ela faz isso com inteligência, brincando com a metalinguagem e abusando do sarcasmo. Quando nada (ou quase nada) mais nos resta neste circuito de filmes invisíveis, o humor ainda pode ser uma arma. Ou um alento.

SINFONIA DA NECRÓPOLE

Quase entraria também na classificação de “filme invisível” brasileiro, SINFONIA DA NECRÓPOLE (2014, foto) nem chegou a ser lançado comercialmente aqui, embora tenha sido exibido em duas mostras: uma no Cinema do Dragão e outra no Cinema de Arte. O que já é alguma coisa. Sem falar que o nome de Juliana Rojas é um nome quente desde os tempos em que ela fazia apenas curtas-metragens (geniais) com seu amigo Marco Dutra. Aqui ela não deixa completamente de lado o gosto pelo cinema de horror, já que há elementos fantásticos na trama que se passa em um cemitério, mas seu filme é uma comédia musical, e com um repertório bem interessante. Trata-se de um objeto estranho em nossa cinematografia e talvez por isso não tenha sido tão bem recebido, embora eu conheça muitos fãs deste filme, que narra a história de um coveiro sensível (Eduardo Gomes) que se apaixona por uma especialista em reforma de cemitérios (Luciana Paes). Eles começam a trabalhar juntos, mas estranhos eventos os fazem acreditar que mexer com ossos dos mortos pode não ser uma boa ideia. De todo modo, eu torço pela volta de Rojas ao terror puro e dramático.

PEQUENO DICIONÁRIO AMOROSO 2

Sandra Werneck pode até não ter o mesmo prestígio das duas citadas diretoras, mas certamente tem filmes mais populares no currículo. Além do primeiro PEQUENO DICIONÁRIO AMOROSO (1997), Werneck ainda dirigiu AMORES POSSÍVEIS (2001) e CAZUZA – O TEMPO NÃO PARA (2004). Uma trinca de filmes que fez bastante sucesso comercial e que também não devem ser vistos como obras ruins ou coisa do tipo. São filmes mais acessíveis e clássico-narrativos, mas todos têm o seu grau de sensibilidade. Talvez o exemplar mais fraco dela seja justamente este PEQUENO DICIONÁRIO AMOROSO 2 (2015), em que assina uma codireção com Mauro Farias. O filme traz de volta os personagens Gabriel (Daniel Dantas) e Luiza (Andrea Beltrão) cerca de 20 anos depois. O reencontro dos dois faz reacender a chama da paixão, ainda mais agora que Luiza está com o casamento em crise e Gabriel está desanimado com a atual namorada. Pena que falte cor nesta sequência do sucesso noventista, mas há algo que certamente vai ficar como uma boa lembrança na mente deste que vos escreve: a cena de nudez de Fernanda Vasconcellos, que aqui interpreta uma jovem bissexual. A imagem que fica gravada na memória é uma das mais sublimes de 2015.

domingo, outubro 25, 2015

ATIVIDADE PARANORMAL – DIMENSÃO FANTASMA (Paranormal Activity – The Ghost Dimension)



Pelo trailer, que flagrava uma cena muito ruim e que justamente serviria de base para a trama de ATIVIDADE PARANORMAL – DIMENSÃO FANTASMA (2015), já dava para prever que a franquia já estava mais do que desgastada: os produtores parecem estar desesperados por alguma coisa que inovasse e que salvasse este supostamente capítulo final da série iniciada em 2009, que conta com cinco títulos “oficiais” e dois spin-offs, um no Japão e outro numa comunidade latina, este último, inclusive, tendo estreitas relações com a trama dos demais filmes.

A solução desesperada dos produtores foi o uso do 3D como forma de assustar mais as plateias. Acontece que, por mais que em algumas cenas de close-ups nos sintamos um pouco incomodados e até com medo de levar um susto (ainda que daqueles bem baratos), o recurso serve mesmo é para tornar a fotografia ainda mais escura e a vontade de ficar retirando os óculos de instante em instante (já que nem sempre a imagem está desfocada) é um tiro no pé, já que o espectador fica disperso, distraído. E como o enredo é fraco, a direção é ruim e os atores são muito ruins, tudo isso conta pontos negativos para o filme, que não consegue ser nem sombra dos demais. Nem mesmo do mais fraco da franquia, o quarto.

O fato de este quinto capítulo se passar depois de eventos que ocorreram em filmes exibidos nesse intervalo de tempo tão grande faz com que isso seja algo mais a depor contra o filme, já que não temos obrigação de ficar lembrando detalhes de uma trama envolvendo uma seita diabólica de sequestro de crianças e ligações com entidades malignas.

Inclusive, na internet tem um videozinho com uma animação tentando fazer com que o espectador entenda ou relembre dos eventos dos filmes anteriores, o que mostra mais uma vez o quanto esta série estava pedindo para uma conclusão urgente. Uma conclusão que poderia ter sido no quarto capítulo, se o dinheiro não falasse tão mais alto.

Na nova trama, uma nova família se muda para a mesma casa que foi palco dos eventos mostrados nos filmes anteriores e lá encontra algumas fitas VHS antigas. Inicialmente o sujeito, que se muda com a mulher e a filha, mas que é visitado pelo irmão, que fica por lá por uns dias, acredita se tratar de fitas pornôs caseiras. Depois ele percebe o quão estranhas são as imagens, ainda mais quando elas dialogam com ele: a garotinha do vídeo parece enxergá-lo e ouvi-lo. Para completar, ele encontra também uma câmera que é capaz de visualizar espíritos ou entidades invisíveis ao olho humano.

É a deixa para a entrada do 3D, que traz efeitos especiais que nada têm a ver com a ideia proposta pelos filmes anteriores, de mostrar imagens mais realistas, mais próximas mesmo de uma câmera caseira. Aqui o que vemos é algo próximo de POLTERGEIST – O FENÔMENO, e que consegue ser muito pior do que o já horrível remake recente do clássico de Tobe Hooper.

E se o primeiro ATIVIDADE PARANORMAL tornou ainda mais rentáveis e populares os filmes de found footage, este último (espera-se que seja mesmo o último) é um convite ao fim de uma era. Que assim seja.

sábado, outubro 24, 2015

O BOULEVARD DO CRIME (Les Enfants du Paradis)



Há filmes que parecem verdadeiros milagres. O BOULEVARD DO CRIME (1945), de Marcel Carné, é um deles. Realizado durante a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, e em um momento em que tudo era difícil e escasso, sem falar na perseguição de alguns judeus que participavam da produção e por isso tinham que se esconder dos alemães, o filme é uma das obras mais luxuosas e mais ambiciosas da cinematografia francesa.

Com suas mais de três horas de duração divididas em duas partes, que funcionam perfeitamente para separar a trama em dois momentos distintos das vidas dos personagens, o filme foi lançado com êxito logo após o fim da guerra para uma plateia que finalmente podia sentir o gostinho da liberdade, e que certamente deve ter se encantado totalmente com a história de amor e maldade que compõe esse exemplar máximo do chamado realismo poético francês, uma espécie de escola estética que predominou no país nas décadas de 1930 e 40.

Enquanto a Itália em ruínas recomeçou o seu cinema com uma obra moderna, mas totalmente destituída de luxo – ROMA, CIDADE ABERTA –, os franceses puderam se dar ao luxo de iniciar o novo momento histórico com uma superprodução. Até por terem se rendido aos alemães e o país não ter se sacrificado tanto. Mas a própria existência de um filme como esse, feito com tantos problemas de bastidores, tendo mais de 1.500 figurantes (muitos deles faziam parte da Resistência, usando as filmagens como meio de se esconder dos nazistas durante o dia) e a construção do maior cenário em estúdio do cinema francês até hoje, que é o trecho chamado de Boulevard do Crime, a área dos teatros de Paris nas décadas de 1830 e 40 e que também era cenário de muitos crimes. Quer dizer, cerca de cem anos antes daquele momento em que a França estava vivendo.

Mas tanto luxo de nada serviria se não houvesse um cuidado com a dramaturgia, com a construção dos personagens, com os diálogos, com a trama, feita em parceria com o poeta Jacques Prévert, que dá uma dimensão trágica e romântica a personagens como o mímico Baptiste (Jean-Louis Barrault, um ator magnífico) e a intrigante e apaixonante cortesã Garance (Arletty, que nem é tão bela, mas tem um charme tão especial que a torna única). Entre outros personagens também importantes, claro, embora eles dois sejam os de maior destaque.

Certamente porque são eles que mais aproximam o filme de um romantismo irresistível, embora também possamos dar o devido valor a Nathalie (María Casares), a moça que nutre uma paixão por Baptiste e que sofre bastante ao vê-lo apaixonado por outra mulher. Ela representa a estabilidade na vida de Baptiste, enquanto Garance seria a tempestade. Lembrando que há mais outros três personagens também apaixonados por Garance, na história.

No mais, O BOULEVARD DO CRIME traz uma série de outras subtramas interessantes, envolvendo, inclusive, atos criminosos por parte de alguns personagens, bem como atos louváveis, como a do homem rico que pede Garance em casamento, mas que em nenhum momento pretende escravizá-la à sua vontade.

Como boa parte da trama se passa em um ambiente de teatro, o filme se apresenta como uma linda homenagem à arte mais popular daquele século, como o cinema seria no século XX. Em alguns momentos, inclusive, os atores falam como se estivessem declamando para uma plateia. Esse estilo de dramaturgia torna o filme ainda mais belo.

O BOULEVARD DO CRIME foi visto em uma belíssima cópia restaurada em DCP 2K no Cinema do Dragão na semana que talvez tenha sido a mais especial do ano para os espectadores de Fortaleza: uma semana totalmente dedicada a clássicos franceses.

sexta-feira, outubro 23, 2015

PONTE DOS ESPIÕES (Bridge of Spies)



Com PONTE DOS ESPIÕES (2015), Steven Spielberg vem explicitar aquilo que já se manisfetara em tendência em boa parte de sua filmografia: o conteúdo político, o seu interesse em abordar ações ou situações relativamente simples de serem solucionadas do ponto de vista humano ou mesmo lógico, mas que, pelas circunstâncias, acabam se tornando complexas.

É o caso da história do advogado James B. Donovan (Tom Hanks) e do espião soviético capturado Rudolf Abel (Mark Rylance). O advogado é convidado para defender esse homem, como dita a lei americana de que todos merecem um advogado, mas a mesma lei não funciona muito bem para o caso de comunistas, tidos como verdadeiros demônios pela comunidade americana.

Assim, enquanto as autoridades querem tratar esse julgamento como uma mera formalidade, de preferência levando à pena de morte o sujeito que, segundo Donovan, estava apenas prestando um serviço ao seu país, como também estavam espiões americanos infiltrados na União Soviética ou em qualquer outro país comunista naquele cenário da Guerra Fria, o advogado resolveu levar muito a sério o caso. Talvez se visto hoje pelos próprios americanos que demonizavam os comunistas, é provável que eles concordem que estavam mesmo exagerando nesse julgamento. E o próprio Spielberg coloca essa situação quase como um crime de guerra, algo que os americanos deveriam se envergonhar.

Durante a defesa do réu, Donovan chega a antecipar algo que parecia improvável: a possibilidade de usar esse espião soviético em um acordo de troca por um espião americano também capturado pelos inimigos. Como o filme trata de nos mostrar esse espião como alguém bastante simpático, espirituoso e sensível (é um pintor, ainda por cima), torna-se ainda mais fácil para a audiência comprar a ideia de Donovan/Spielberg.

Tom Hanks repete aqui a figura do homem persistente, como em O TERMINAL (2004), que se vê em uma situação em que a burocracia e outros obstáculos o impedem de atingir o seu objetivo. Também é possível traçar paralelos com a campanha de Abraham Lincoln para angariar uma base aliada no trabalho anterior de Spielberg, LINCOLN (2012).

Em PONTE DOS ESPIÕES, o protagonista, um homem comum, de família comum de Nova York, ganha contornos de herói, ao encarar, sem muito apoio do próprio Governo americano, a negociação de troca com os inimigos de seu país em pleno território da Alemanha Oriental, na época, início dos anos 1960, ainda uma república não reconhecida pelos Estados Unidos.

Aliás, uma das cenas mais impressionantes é a da construção do terrível Muro de Berlim. É mais um exemplo do quanto o cinema nos transpõe magicamente, como numa máquina do tempo, para um outro lugar e outra época, ainda que as imagens sejam maquiadas pela bela fotografia e pela bela cenografia. De todo modo, a imagem de uma Berlim devastada pela guerra e abandonada pelos supostos aliados soviéticos também causam certo espanto. Além do mais, toda a sequência do advogado na Alemanha se aproxima da perfeição.

E Tom Hanks mais uma vez passa aquela imagem de bom moço que funciona muito bem aqui. Spielberg tem procurado manter, ultimamente, uma postura mais sóbria no que se refere ao sentimentalismo que costumava imperar em seus trabalhos. Quando ele erra a mão nesse quesito, como em AMISTAD (1997) e em CAVALO DE GUERRA (2011), o resultado não fica muito bonito. A boa notícia é que PONTE DOS ESPIÕES se junta a obras de respeito dessa linha político-histórica, como O RESGATE DO SOLDADO RYAN (1998), MUNIQUE (2005) e o já citado LINCOLN, fazendo com que o espectador saia do cinema satisfeito com o excelente espetáculo de direção segura, reconstituição histórica e debate ético.

quarta-feira, outubro 21, 2015

ESCUDERIA DO PODER (Fast Company)



Dentre todos os longas-metragens de David Cronenberg, só faltava ESCUDERIA DO PODER (1979) para eu ver. O filme feito após o ótimo ENRAIVECIDA – NA FÚRIA DO SEXO (1977) e um pouco antes da realização do sensacional THE BROOD – OS FILHOS DO MEDO (1979). Acontece que é um filme que foge bastante dos temas recorrentes do cineasta. E talvez por isso seja tão rejeitado. Mas não apenas por isso, na verdade: é porque se trata de um filme ruim mesmo, tão chato de acompanhar que nem mesmo encarando como um filme B despretensioso de corrida de carros dá pra encarar. A não ser que você seja um aficionado por carros de corridas.

E Cronenberg era. Ele pôde mostrar isso de maneira muito mais interessante em CRASH – ESTRANHOS PRAZERES (1996), que uniu o prazer por carros e batidas violentas com sexo e pessoas estranhas. Lendo o livro de entrevistas Cronenberg on Cronenberg, fiquei sabendo que o que o diretor queria fazer mesmo era um filme protagonizado por uma mulher dirigindo carros. Mas o que disseram para eles é que não existia tal coisa, que as mulheres daquele universo eram as que usavam camisetas molhadas para chamar a atenção da turma que já chegava com a testosterona a mil nesse tipo de evento.

Depois ele soube que havia sim algo do tipo e até fizeram um filme chamado HEART LIKE A WHEEL (1983), que conta com uma mulher à frente de um dragster, um desses compridos e barulhentos e de arrancada, mostrados em ESCUDERIA DO PODER. Cronenberg realmente perdeu a chance de fazer algo mais interessante.

Mas será que teria sido tão interessante assim? Pergunto isso, tendo em vista que não se tratava de um projeto seu, mas um filme de encomenda, feito num momento em que ele estava disponível, no começo da carreira e que havia uma lei de incentivos fiscais que priorizavam canadenses nativos. E era impressionante como na época quase não havia cineastas canadenses ou mesmo atores canadenses famosos que estivessem disponíveis para estrear esses filmes.

Na trama de vingança de ESCUDERIA DO PODER, veterano de corridas (William Smith) é demitido por falar mal dos patrocinadores de sua companhia em uma entrevista para a televisão. Isso porque ele já havia perdido a paciência com os modos inescrupulosos de seu patrão (John Saxon), que só pensa mesmo em lucrar e não dá a mínima para a sua equipe, que é composta por pessoas que têm um elo de amizade muito forte. Junta-se ao grupo a bela Claudia Jennings, uma coelhinha da Playboy conhecida na época. Curiosamente (e morbidamente), a moça morreria no mesmo ano em um acidente de carro. Justo ela, que tinha uma filmografia com vários filmes B de carros de corrida.

Confira AQUI uma famosa e bela capa da Playboy com Claudia Jennings.

segunda-feira, outubro 19, 2015

A COLINA ESCARLATE (Crimson Peak)



Um sopro de beleza, de amor, de violência e de intensidade este A COLINA ESCARLATE (2015), uma das melhores surpresas que o gênero trouxe neste ano tão escasso de obras de grande importância. E ainda assim tem dividido bastante as opiniões de público e crítica. Mas isso é natural e fico à vontade em tentar mais do que defendê-lo: louvá-lo. Afinal, quando é que temos a oportunidade de ir ao cinema e nos depararmos com algo tão belo em tela gigante IMAX?

O que Guillermo del Toro faz é presentear os fãs do horror gótico de Roger Corman (as adaptações de contos de Edgar Allan Poe), bem como dos filmes da Hammer (o sobrenome Cushing não foi escolhido à toa) e de outros grandes nomes do cinema de horror europeu, como Mario Bava. Trata-se de uma homenagem, portanto, explícita, inclusive no modo como ele constrói seus personagens, que às vezes parecem um tanto exagerados em suas intenções, mas isso faz parte do charme de A COLINA ESCARLATE.

A direção de arte e da fotografia são impressionantemente estupendos em sua elegância, e por isso o local onde acontece a maior parte da trama é fundamental: um castelo decadente na Inglaterra. O castelo está sendo afundado por uma espécie de lama vermelha, que é a matéria-prima da obsessão de Thomas, o personagem de Tom Hiddleston, que planeja, junto com sua irmã Lucille (Jessica Chastain), conseguir dinheiro através de uma família rica de Nova York, casando-se com a jovem Edith (Mia Wasikowska). Na verdade, a ideia dos dois é ainda mais criminosa do que aparenta.

Uma das coisas que chama logo a atenção no filme é o modo como os monstros e os fantasmas são ao mesmo tempo horríveis e aterrorizantes, mas não tão aterrorizantes quanto os vivos, esses sim capazes de causar dor e morte. Edith é assombrada pelo fantasma de sua mãe, que surge parecida com a mãe de MAMA, não por acaso produzido por del Toro e com o toque a mais de sentimentalidade, algo que o cineasta mexicano parece não conseguir fazer. Suas mãos são tão rudes quanto a do pai de Edith, nesse sentido.

Mas o que del Toro carece em saber lidar com aspectos sentimentais, sobra em saber construir um conto macabro pontuado com uma violência gráfica que mancha a tela de vermelho. O vermelho, aliás, já se pronuncia desde o início do filme, quando vemos o logo da Universal todo em escarlate, apontando para a cor que seria a mais desejada por seu realizador, a mais valorizada.

A beleza das cenas sangrentas e violentas não encontra paralelos com o que é filmado no horror contemporâneo. Se quisermos estabelecer comparações nesse sentido teremos que buscar mesmo na Hammer, em Bava ou em Argento. E lembrando de Bava e de Argento, lembramos também da personagem de Jessica Chastain, a irmã fria e malévola que rouba a cena a cada instante em que aparece. Para muitos, Chastain faz uma composição exagerada, para outros, como eu, trata-se da melhor personagem do filme, a que mais se aproxima de um mal equiparado ao de bruxas de contos de fadas clássicos ou de filmes de horror góticos. Como não amar a sequência final de Chastain enfrentando a heroína num duelo mortal?

Del Toro também impõe sua autoralidade em todos os espaços, seja na sua obsessão por insetos, que se insinua desde seu longa-metragem de estreia, CRONOS (1993), passando por MUTAÇÃO (1997), A ESPINHA DO DIABO (2001) e O LABIRINTO DO FAUNO (2006), seja no cuidado com os detalhes e o cenário. E falando em labirinto, a mansão não seria também um, contando até mesmo com um elevador, além de outros segredos escondidos? Quem se permitir se entregar à beleza de A COLINA ESCARLATE certamente vai se sentir arrebatado e agradecido com tanto encantamento.

domingo, outubro 18, 2015

FEAR THE WALKING DEAD – 1ª TEMPORADA COMPLETA (Fear the Walking Dead – The Complete First Season)



Deve ter sido o Rock in Rio. Ou as muitas séries e as preocupações do trabalho. Ou então foi o fato de a série não ser suficientemente boa e empolgante, a ponto de eu ter deixado passar justamente a season finale. É que eu também não sabia que eram só seis episódios nesta primeira temporada. Felizmente eles conseguiram finalizar com um bom episódio.

Não é que FEAR THE WALKING DEAD (2015) seja ruim, mas é que se trata de uma série que já nasceu sob o estigma de ser caça-níquel, de querer se aproveitar do sucesso garantido de THE WALKING DEAD, que está não só muito bem de público (é a série de maior audiência dos canais fechados americanos), mas também de boa parte da crítica.

Então, se a turma curte zumbis, por que não expandir o universo e criar um spin-off? É sucesso garantido. A ideia funcionou, embora todos tenham percebido que ali se tratava de um produto menor. A intenção é mostrar duas famílias que se juntam em circunstâncias difíceis durante a proliferação do vírus que torna as pessoas em mortos-vivos e que deixa o mudo em colapso.

Não deixa de ser interessante ver essa evolução, o começo de tudo, já que THE WALKING DEAD já nos apresenta o mundo povoado por zumbis, pois começa do ponto de vista de Rick, que estava em estado de coma em um hospital. Em FEAR THE WALKING DEAD acompanhamos o drama de uma família quebrada cujo denominador comum é Travis Manawa (Cliff Curtis), atualmente quase casado com Madison Clark (Kim Dickens), que tem dois filhos, uma moça bonita, Alicia (Alycia Debnam-Carey), e Nick (Frank Dillane), um rapaz viciado em heroína e que dá muito trabalho à família por isso.

Travis também se preocupa com a ex-esposa, Liza Ortiz (Elizabeth Rodriguez), com quem tem um filho adolescente. Outra família passará a fazer parte do núcleo desta primeira temporada, que vai apresentando os mortos-vivos aos pouquinhos, até fechar com algo parecido com a série-mãe. E há um personagem novo que é apresentado nos dois últimos episódios que tem cara de ter conquistado a audiência, com seu autocontrole, esperteza e elegância.

Dentro desse período de seis episódios acompanhamos as transformações daquele grupo, que demora um pouco a criar coragem de meter a faca ou uma bala na cabeça de um errante. A ideia de que são pessoas doentes ainda está presente. No último episódio, a adrenalina sobe, mas talvez tenha sido um pouco tarde, embora seja promessa de boas possibilidades para o futuro da série.

Como a premissa é a mesma de THE WALKING DEAD, a construção dos personagens e os dramas pessoais entre eles deverão ser feitos com cuidado e com inteligência, de modo que consigam dar longevidade à série. Como é uma história original e não é baseada nos quadrinhos de Robert Kirkman, eles têm toda a liberdade para fazer o que quiserem. Para o bem ou para o mal. Ao que parece, a segunda temporada contará com 15 episódios.

sábado, outubro 17, 2015

SICARIO – TERRA DE NINGUÉM (Sicario)



E Denis Villeneuve vai construindo uma carreira baseada tanto na construção de uma atmosfera de tensão e suspense auxiliada pelo excelente desenho de som – no caso de O HOMEM DUPLICADO (2013), também de terror –, ao mesmo em tempo que também vai deixando mais claras suas obsessões ou seus interesses. SICARIO – TERRA DE NINGUÉM (2015) é, assim como OS SUSPEITOS (2013), um conto moral elaborado com a intenção de nos convidar para o lado mais sombrio da alma humana.

Para isso, o cineasta canadense nos coloca nos sapatos da agente do FBI Kate Macer (Emily Blunt), que, depois de descobrir os corpos escondidos de vítimas de um cartel do tráfico mexicano, é convidada pra fazer parte de uma missão secreta. O que ocorre, porém, é que os homens que a convidam e aqueles que serão os verdadeiros protagonistas da ação a deixam no escuro sobre as reais intenções, sabendo que ela é uma agente que atua de acordo com as normais legais, não se deixando corromper ou adentrar um caminho de perdição, por assim dizer.

Os principais envolvidos na operação de combate ao tráfico que tem como principal missão atacar o chefe do tráfico Manuel Diaz são homens cujas funções são até mesmo complicadas de serem compreendidas pela agente. Eles são vividos pelos ótimos Josh Brolin e Benicio Del Toro. Este último, então, rouba o filme para si, tanto pela força de sua caracterização, principalmente à medida que o filme vai chegando perto de sua conclusão.

Mas até lá estamos tão perdidos quanto Kate Macer e essa sensação é tão agradável quanto desconfortável. Afinal, é possível confiar naqueles homens e em seus métodos? O filme, que conta com algumas cenas de violência impactante, até poderia ter sido mais pesado se Villeneuve preferisse chocar mais a audiência. Provavelmente ele fez bem em não ter exagerado tanto, por exemplo, nas cenas de tortura.

Um dos pontos altos do filme acontece durante um engarrafamento em pleno México, quando o grupo de americanos, auxiliado pela polícia mexicana, percebe um grupo de criminosos nos carros ao lado. O que eles efetuam ali, em público, é impressionante. É a partir daí que passamos a admirar Alejandro, personagem de Del Toro, que ganhará ainda mais força quando soubermos um pouco mais sobre o seu passado e o seu real interesse pela missão. Enquanto isso, vamos nos acostumando à escuridão dessa situação.

Mas escuridão mesmo estaria por vir na cena em que Villeneuve e o diretor de fotografia Roger Deakins, de obras admiráveis como A VILA (2004), ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ (2007) e 007 – OPERAÇÃO SKYFALL (2012), apresentariam. Há uma cena que se passa na completa escuridão dentro de um túnel clandestino que liga a fronteira entre Estados Unidos e México. Durante esta cena, foram utilizadas câmeras termais e de visão noturna. Este, aliás, é um momento-chave para a jornada da personagem de Emily Blunt.

Por outro lado, é quando ocorre uma reviravolta no foco dos personagens que acaba sendo muito bem-vinda. Afinal, algumas das melhores cenas serão guardadas para esse final. Cenas em que Villeneuve mais uma vez provoca o espectador em suas convicções morais: até que ponto aceitamos certas ações violentas em prol de uma justiça? Nisso, o filme até pode ser visto por alguns como danoso ou maléfico, sem falar nas possibilidades racistas ao apresentar o México, quase sempre, como um lugar perigoso e que deve ser limpo, nem que seja por pessoas dispostas a fazer o trabalho sujo.

quinta-feira, outubro 15, 2015

RESPIRE



Mélanie Laurent é uma artista multifacetada. Além de ser aquela atriz fantástica que a gente aprendeu a gostar desde, pelo menos, BASTARDOS INGLÓRIOS, que foi quando ela foi revelada em grande escala para o mundo, ela também é excelente cantora (é só procurar algo dela no youtube) e RESPIRE (2014) já é o seu segundo longa-metragem, tendo participado, inclusive, da edição do ano passado do Festival de Cannes, o que já lhe confere status de autora.

Mas o sucesso desse seu segundo trabalho, pelo menos, não vem de sua exposição ou de ela ser também uma atriz famosa, embora isso também ajude. O seu filme é especial. E pode-se dizer que seria mesmo necessário uma mulher para abordar com tanta segurança o universo íntimo de duas jovens garotas colegiais (Laurent é também corroteirista e o roteiro, por sua vez, é baseado no romance de uma escritora, Anne-Sophie Brasme).

Na trama, Charlie (Joséphine Japy) é uma jovem relativamente popular na escola, embora se perceba logo no início do filme que lhe falta entusiasmo no trato com sua melhor amiga, bem como na rotina de sua vida em si, seja na escola, seja em casa. Essa vontade de viver com mais intensidade surge quando ela conhece Sarah (Lou de Laâge), recém-chegada na escola e já demonstrando muito charme e um brilho todo próprio. Aos poucos as duas se tornam melhores amigas. E essa amizade também passa a se tornar algo a mais, principalmente na cabeça de Charlie, que vai se mostrando cada vez mais apegada a Sarah, que por sua vez vai revelando uma faceta um tanto malévola.

Pode-se dizer que RESPIRE é um filme dividido em dois registros complementares: o filme de amizade e intimidade entre duas garotas e também um suspense de tirar o fôlego. O fato de Charlie ser asmática ajuda bastante na composição desse segundo momento e é o motivo mais óbvio para o título desse trabalho de Laurent, embora haja outros motivos também. E por isso é importante ter cuidado para não entregar o impactante final.

RESPIRE também é um filme feminino no sentido de que as personagens das mães das referidas protagonistas ou moram sozinhas ou são mal tratadas por seus maridos. No caso do pai de Charlie, ele acaba sendo pintado como um sujeito mau caráter que a mãe teima em amar. Esse tipo de relação da mãe acaba por se repetir em Charlie e no quanto ela é apaixonada por Sarah, apesar das humilhações e tudo o mais que acontece com ela ao longo da narrativa.

E como a maior parte do elenco é de estreantes, não deixa de ser digno de nota o modo como Laurent extrai de suas atrizes momentos de tão forte carga dramática, como se elas nascessem para aquele papel, ou como se estivéssemos olhando suas intimidades através de uma janela. Uma janela que também brinca com o espectador, como na cena em que Charlie vai, pela primeira vez, à casa de Sarah. Esse, aliás, é também um momento extremamente elegante no uso da movimentação de câmera, entre vários outros. Por isso, que venham os próximos filmes dirigidos por esta moça talentosa.

quarta-feira, outubro 14, 2015

O LUGAR DAS PERDAS



O cinema cearense tem se tornado cada vez mais amplo em temática e em forma. Além do trabalho de cineastas novos que lidam com a ficção de maneira diferente e ousada e da tradição de cineastas veteranos que continuam contribuindo com sua experiência e talento, sem também perder o frescor, o nosso cinema também tem se caracterizado por trazer à tona reflexões fundamentais para a construção de uma sociedade mais cidadã, abrindo espaço para discussões nos âmbitos político e social.

O LUGAR DAS PERDAS (2015), de Israel Branco, é dessa vertente, embora também procure ser algo mais do que um simples documentário sobre o drama de pessoas que são deslocadas de suas casas pelo governo, buscando meios de se legitimar também como arte, o que o diferencia de programas jornalísticos produzidos para a televisão com um formato predeterminado. Nem que para isso tenha que abusar do uso da câmera na mão, que, de tanto tremer, chega a incomodar.

Nota-se em O LUGAR DAS PERDAS um tatear do realizador na tentativa de ir em busca de entrevistados que possam fornecer palavras e ações que contribuam para a edição final. Isso, aliás, é uma característica do gênero documentário. Lembremos que Eduardo Coutinho não se esquivava de esconder que às vezes não fazia a menor ideia do que iria filmar quando se juntava com sua equipe – provavelmente o caso mais explícito disso esteja em O FIM E O PRINCÍPIO.

Curiosamente, assim como o documentário sobre velhinhos falando sobre o passado e as expectativas do futuro, o filme de Israel Branco também encontra justamente nas pessoas idosas a sua maior força. Até porque essas pessoas possuem muito mais tempo de vida naquele espaço, no caso, a comunidade do Pirambu, uma área pobre de Fortaleza, mas que fica situada próximo ao Centro e à Praia de Iracema, e por isso mesmo vem sendo alvo do Governo para se tornar um novo ponto turístico da cidade.

Essas pessoas mais idosas vieram da zona rural na época da seca e se instalaram naquele espaço, que posteriormente seria concedido a eles por meio de lei federal. Um espaço de amor por aqueles que lá habitam ou habitavam. O LUGAR DAS PERDAS trata justamente do doloroso processo de remoção de algumas dessas pessoas pela Prefeitura de Fortaleza, que ofertou a elas um lugar em um condomínio modesto ou uma quantia em dinheiro se a pessoa preferisse. Essa quantia, porém, não era suficiente para se obter uma nova casa. Pelo menos, não perto dali.

E assim o documentário nos mostra principalmente a insatisfação daqueles que aceitaram a oferta de se mudar para um apartamento, mas acerta mesmo quando encontra uma pessoa que resistiu a essa remoção: a Dona Mazé, uma senhora que se recusou a sair de sua casinha humilde, ainda mais tendo que aceitar parcos 20.000 reais apenas, valor inicialmente oferecido.

Dona Mazé é o coração de O LUGAR DAS PERDAS, que parece em alguns momentos não saber o que fazer com alguns personagens muito bons, como o sujeito que canta um samba sobre o Pirambu e que só aparece uma vez, por exemplo. (Embora seja digna de menção também a senhora que canta o hino do Pirambu e que se mostra valente diante dos infortúnios da vida, como a perda do filho, assassinado.) Mas é natural que isso aconteça quando o acaso pode trazer tanto algo pouco ou muito interessante para o documentarista. Dona Mazé se torna não só a pessoa mais importante do documentário, como também aquela que faz o espectador se comover. E faz o título do filme ganhar em significância e em triste poesia.

segunda-feira, outubro 12, 2015

OITO DOCUMENTÁRIOS



Apesar de o termo documentário hoje ser um tanto complicado de usar, devido às cada vez maiores fusões com a ficção, tomo a liberdade de empregá-lo para designar as obras abaixo, apenas para fins de organização e também por ter pouco a dizer sobre estes filmes, seja por culpa da memória, seja por necessitar cada vez mais passar adiante os títulos que devo a este blog. Nem que seja na forma de textos pequenos e rasteiros.

A VIDA PRIVADA DOS HIPOPÓTAMOS

Embora não tenha me empolgado muito na época em que vi A VIDA PRIVADA DOS HIPOPÓTAMOS (2014), o filme de Matias Mariani e Maíra Bühler hoje me parece bastante inventivo, tanto por ser bem diferente do que se espera de qualquer documentário feito no Brasil, quanto pela forma como vai nos apresentando à situação complicada em que se encontrou um técnico de informática americano que se apaixonou por uma colombiana e que acabou se metendo em encrenca. Os diretores inicialmente pretendiam fazer um filme sobre presos estrangeiros no Brasil, mas a história de Chris, o tal americano, já era mais do que suficiente para que fosse criado um filme dedicado exclusivamente a ele.

SOPRO

Exibido em uma única sessão em mostra no Cinema do Dragão, SOPRO (2013), de Marcos Pimentel, é um trabalho que lida com a vida rural sem necessariamente estar preocupado com algo parecido com uma narração. Aliás, até há uma narração, no sentido de que todo filme tem uma, mas Pimentel prefere homenagear a natureza e a vida simples através de imagens que se configuram num ritmo próprio. A sequência mais memorável pra mim e que acabou me causando náuseas foi a de um nascimento de um bezerro. A câmera nos mostra até o fim o processo de nascimento da criatura, que aos olhos de um sujeito da cidade pode parecer no mínimo estranho, cronenberguiano até. Mas a vida animal é assim. O sopro do título também está presente no som do vento, principal elemento do que se poderia chamar de trilha sonora do filme.

OS ÚLTIMOS CANGACEIROS

E depois de quatro anos de sua exibição no Cine Ceará, Wolney Oliveira finalmente consegue colocar em cartaz o seu OS ÚLTIMOS CANGACEIROS (2011), um trabalho bem interessante em que o efeito do acaso é mais uma vez um aliado dos documentaristas. Aqui temos o caso do encontro de um casal que fazia parte do bando do lampião. Os dois, já bem velhinhos, vivendo separados por causa da polícia, nem sabem mais se o outro está vivo. Wolney se torna, então, responsável por esse reencontro, e ainda nos presenteia com imagens inéditas do bando de Lampião, filmadas por Benjamin Abraão e colorizadas a mão. Ficou um trabalho bonito, mas não deixa de ser curioso também ver os velhinhos que já mataram tanta gente serem hoje recebidos como heróis nacionais. Não tive como não lembrar de O ATO DE MATAR, de Joshua Oppenheimer, mas sabemos que o contexto aqui é outro, bem diferente. Afinal, a polícia era corrupta e o sertão nordestino era deixado ao deus-dará. O banditismo era, então, uma questão de honra para muitas dessas pessoas que aderiam a essa vida.

NOSTALGIA DA LUZ (Nostalgia de la Luz)

Não sei bem dizer qual foi minha cisma com este NOSTALGIA DA LUZ (2010), de Patricio Guzmán. Posso dizer que acabei não gostando pelo efeito do treme-treme que algumas salas do Cinépolis Rio-Mar Fortaleza proporcionam. Isso a muito me incomoda e retira bastante o prazer dos olhos que um filme poderia trazer. Logo, acabei ficando com má vontade de ver o filme, que acompanhei meio que a contragosto. Quem sabe revendo em casa eu gosto. A impressão que ficou foi que a junção do filosofar sobre as estrelas e o tempo e a questão da vida perdida de presos políticos que foram enterrados e até hoje têm seus restos mortais procurados por familiares no Deserto do Atacama, no Chile, durante a ditadura de Pinochet, não chegaram a formar um todo coeso. Pareceram dois assuntos que foram forçosamente colocados juntos por Guzmán. Mas, claro, posso estar enganado.

EDUARDO COUTINHO, 7 DE OUTUBRO

É tanta a saudade que sentimos de Eduardo Coutinho que este documentário EDUARDO COUTINHO, 7 DE OUTUBRO (2014), de Carlos Nader, chega a ser um alento. Nader, diretor do excelente A PAIXÃO DE JL (2014), emula o estilo enxuto de conversa de seu entrevistado e o resultado é bem descontraído e acaba por revelar bastante da personalidade e da vida de Coutinho, do seu processo de trabalho, da sorte em conseguir entrevistados fantásticos. Nader, ao usar a aleatoriedade na escolha de cenas de filmes como opção dentro de uma obra já bastante extensa como a de nosso maior documentarista, faz do acaso mais uma vez um aliado nesse gênero. Se fica atrás de qualquer outro título da filmografia de Coutinho é porque talvez queira mesmo ser humilde o bastante para reverenciar o seu ídolo.

ADEUS À LINGUAGEM (Adieu au Langage)

Não foi como deveria ter sido. Ver ADEUS À LINGUAGEM (2014, foto) em 2D e não em 3D, como foi pensado e arquitetado por Jean-Luc Godard, talvez seja ver apenas uma sombra de seu trabalho, aqui mais um filme-ensaio desse diretor que optou por um estilo peculiar de filmar a partir da década de 1970, quando praticamente abandonou a narrativa em prol de outros meios de contar a história ou de passar adiante a sua mensagem, a partir de imagem e recortes de textos seus e de outras pessoas ilustres. Tentar resumir ADEUS À LINGUAGEM é um tanto complicado, mas pode-se dizer que o principal eixo temático gira em torno de um casal vivendo em crise. Não chega a ser um filme difícil como se costuma pensar dos trabalhos do diretor suíço-francês e certamente deve render boas discussões filosóficas sobre a vida e a sociedade. E isso sem nunca deixar de ser cinema.

CAMPO DE JOGO

Certamente quem gosta de futebol e não é muito interessado em linguagem cinematográfica fora do convencional não deve gostar muito de CAMPO DE JOGO (2015), filme em que o esporte é o elemento central, mas, ao mesmo tempo, o diretor Eryk Rocha evitar mostrar os lances, preferindo deixar sua câmera nos olhares e nas emoções daquelas pessoas pertencentes a dois times de periferia que jogam no mesmo dia em que acontece a final da Copa do Mundo de 2014. Rocha faz cinema-poesia, ao optar por poucos depoimentos e filmar os corpos como num dança e os cortes da montagem como pedaços da construção de uma linguagem própria. Não é todo mundo que deve gostar do resultado, mas não dá pra dizer também que se trata de trabalho que mereça ser ignorado.

O UNIVERSO GRACILIANO

Não sou exatamente fã de Sylvio Back. Ele é até um bom diretor de documentários ensaísticos que sabe lidar muito bem com pedaços de outros filmes e imagens, como fez em YNDIO DO BRAZIL (1995), mas não soube aproveitar um tema tão interessante, que é a vida (e com ela a obra) de Graciliano Ramos, um de nossos maiores escritores. Em O UNIVERSO GRACILIANO (2013), Back opta por entrevistar pessoas que tiveram alguma relação, seja de amizade ou familiar, com o Velho Graça. O filme revela pouco sobre a obra do cineasta, mas algumas falas são acertos, como a cena em que a filha do escritor testemunha o momento em que o pai morre. Há uma valorização maior do homem Graciliano em detrimento do escritor e isso acaba empobrecendo o documentário. Eu confesso que estou na torcida para que Back não seja o diretor de uma futura adaptação de Angústia, um dos grandes romances de Graciliano, como andavam dizendo por aí.

domingo, outubro 11, 2015

BATA ANTES DE ENTRAR (Knock Knock)



Depois das dificuldades enfrentadas durante o processo de trazer CANIBAIS (2013), seu filme-homenagem a CANIBAL HOLOCAUSTO, de Ruggero Deodato, para o circuito comercial, outro trabalho de Eli Roth, mais recente, e também contando com sua atual musa e esposa Lorenza Izzo, teve mais sorte em alcançar mais rápido e uma maior aceitação nas salas de cinema: BATA ANTES DE ENTRAR (2015). Muito provavelmente por ser um exemplar muito mais leve do que estamos acostumados a ver do cinema sempre perturbador e sangrento de Roth, o homem por trás de O ALBERGUE (2005).

Vale lembrar que O ALBERGUE nasceu durante um momento particularmente intenso dos filmes de horror com muito sangue e violência, os chamados torture porns. Na época de O ALBERGUE, filmes como o francês MÁRTIRES, a franquia JOGOS MORTAIS, o remake de HALLOWEEN, o remake A ÚLTIMA CASA, e até mesmo A PAIXÃO DE CRISTO, de Mel Gibson, são exemplares desse momento em que a humanidade parecia querer purgar os seus próprios pecados e/ou queria saciar sua sede de sangue. Essa tendência ainda não acabou, mas parece estar demonstrando sinais de cansaço.

Por isso BATA ANTES DE ENTRAR é um terror muito mais psicológico do que físico, que dialoga com VIOLÊNCIA GRATUITA, de Michael Haneke, em sua capacidade de intoxicar o sangue, com a tortura imposta pelas duas garotas ao protagonista. Pena que Eli Roth não tenha a classe de Haneke para compor essa história de um homem de família (Keanu Reeves) que é visitado por duas moças atraentes que começam um processo de sedução, para em seguida transformar a vida do sujeito em um inferno crescente.

O fato de Keanu Reeves estar exageradamente canastrão – como se fosse algo de propósito, ou como se ele não estivesse levando a sério em momento algum o filme – contribui para que a sensação de suspensão da descrença seja abalada. Sabemos que Reeves é um ator limitado, mas sabemos também que em muitas ocasiões suas atuações funcionam muito bem.

Assim, sobra para que as duas meninas, as chilenas Lorenza Izzo e Ana de Armas, tomem o filme para si. Elas são as dominadoras em todos os sentidos. Dominam quando usam a fraqueza masculina para benefício próprio e quando começam a perturbar a ordem do protagonista a partir do café da manhã.

Por mais que filmes de horror sejam obras que têm como uma característica recorrente o moralismo, Roth parece não ter a intenção aqui de criar um conto moral sobre alguém que cometeu um erro e está pagando por seus pecados, que surgem na figura daqueles dois anjos exterminadores. Seria mais algo como uma sátira desse tipo de horror moralista. A não ser que as supostas alegações de pedofilia que uma das moças reivindica para o personagem seja verdade, o que aproximaria o filme de MENINA MÁ.COM, de David Slade, sobre um pedófilo que recebe uma lição de uma jovem garota.

BATA ANTES DE ENTRAR é um remake de DEATH GAME (1977), de Peter S. Traynor, estrelado por Sondra Locke e Colleen Camp, que no filme de Roth aparecem como coprodutoras. Dizem que o original é bem interessante.

sábado, outubro 10, 2015

A TRAVESSIA (The Walk)



No cartaz de A TRAVESSIA (2015), os dois filmes de Robert Zemeckis que são citados como referência são NÁUFRAGO (2000) e O VOO (2012), justamente seus dois últimos trabalhos em live action – suas três experiências com animação em captura de movimento, que demandaram muito de seu tempo, foram bastante importantes para a consolidação e afirmação dessa tecnologia, mas estão longe de estarem entre seus melhores trabalhos, já que a preocupação maior com os efeitos aliada à vontade de atingir um público infantil acabaram prejudicando os resultados finais.

Além do mais, há pelo menos um elemento de NÁUFRAGO e O VOO que está bastante ligado ao novo filme: a queda. Nesses três trabalhos, Zemeckis se mostra obcecado pela queda, que nos dois filmes anteriores é mostrada como um espetáculo à parte. Em A TRAVESSIA, a queda pode ser vista até certo ponto como uma possibilidade, mas é também, no caso da realização do sonho de Philippe Petit (Joseph Gordon-Levitt), sinônimo de morte, uma palavra tabu para o personagem e que deve ser riscada de sua mente sob risco de atrapalhar o sucesso de seu ambicioso projeto.

A incrível história do equilibrista Philippe Petit já foi contada em documentário antes, em O EQUILIBRISTA (2008), de James Marsh, mas é até interessante ver o filme de Zemeckis sem ter visto o documentário. Curte-se mais cada momento. Aliás, como é gostoso acompanhar a narrativa de A TRAVESSIA. O diretor utiliza um velho recurso, o da narração do próprio personagem contando a história não apenas em voice-over, mas também de cima de um prédio, ainda que não seja o mesmo onde se deu a sua incrível e proibida aventura.

E sendo proibida, A TRAVESSIA entra na questão da arte como objeto transgressor e como ato de desobediência civil. Em vários momentos, Petit faz questão de afirmar que ele não é um artista de circo, ele é um artista. E isso é muito importante como afirmação, principalmente para o filme e para refletir na própria criação de Zemeckis. Como se o cineasta quisesse dizer também que ele não é apenas um dos grandes pioneiros do uso de tecnologias de ponta no cinema, mas que é também um dos grandes cineastas de sua geração. Ao ver A TRAVESSIA, temos mais uma vez certeza disso.

A busca de um modelo de narrativa que consiga trazer tanto o suspense e a tensão do ato proibido e quase suicida de Petit, auxiliado por seu grupo de cúmplices, e ao mesmo tempo também captar a sensação do personagem quando ele finalmente atinge o seu objetivo, em um momento tão especial que é um misto de felicidade orgasmática com uma profunda paz de espírito, é atingido com precisão pelas imagens fabulosas que aliadas à tecnologia IMAX 3D trazem uma sensação de que estamos também no fio que liga as duas torres gêmeas do World Trade Center. Para quem tem medo de altura, o filme é um convite a desafiar esse medo.

Contar a história de Petit desde a infância em Paris, quando ficou fascinado com um equilibrista de circo e como conseguiu sozinho ser um mestre nessa habilidade para depois chegar ao projeto de vida que nasceu antes mesmo de as torres ficarem prontas, tudo isso contribui para que nos aproximemos mais do personagem, o que mais uma vez nos remete aos dois filmes citados no cartaz, que nos ligam a um homem sozinho em uma ilha e a um homem sozinho em assumir a culpa de ter bebido e ao mesmo tempo ter salvado os passageiros e a tripulação de um voo. Aqui a solidão também está presente, mesmo que Petit tenha parceiros que o ajudem a realizar o ato. Mas não se trata de uma solidão ruim. Pelo menos, não aqui.

Estar sozinho em meio a nuvens visualizando pessoas tão pequenas lá embaixo enquanto ele desempenha um ato tão insano é não só o momento mais importante de sua vida, mas também um momento em que ele atinge um estado de espírito até então desconhecido. A cena do pássaro se aproximando para olhar para ele, por exemplo, tem uma força espiritual poucas vezes vista no cinema.

Ver A TRAVESSIA é entender que o uso da tecnologia 3D pode sim ser usado para nos fazer atingir níveis especiais de apreciação fílmica que vão muito além de um mero parque de diversões incluído na rotina dos multiplexes e de uma forma de aumentar o custo dos ingressos. Claro que sabemos que se trata de um caso especial, mas é sempre bom dizer que casos especiais assim devem ser tratados com muito carinho, e por isso mesmo perder a chance de ver A TRAVESSIA no cinema é quase um crime.

quinta-feira, outubro 08, 2015

ENTOURAGE – FAMA E AMIZADE (Entourage)



Derivado de uma das séries mais queridas da televisão – ainda que seu séquito de fãs não seja tão grande assim –, ENTOURAGE – FAMA E AMIZADE (2015), de Doug Ellin, é um filme que já vinha sendo bastante esperado desde o final da oitava e última temporada (2011) por causa do carinho que criamos com os personagens, a turma do astro de Hollywood Vince Chase e sua entourage, formada por E., Turtle, Drama e o executivo Ari.

O longa para cinema só decepciona se você espera algo bem além de uma versão estendida de um episódio. E tem a vantagem de apresentar mais participações especiais de astros de Hollywood vivendo eles mesmos. Destaque para Liam Neeson, Mark Wahlberg (ele é produtor da série, anyway), Jon Favreau, Jessica Alba, Armie Hammer, entre outros. Mas da turma que faz o papel de si mesmo quem ganha mesmo a cena, até por aparecer mais, é Ronda Rousey, que faz par romântico com Turtle – o sortudo já havia namorado a Jamie-Lynn Sigler (de FAMÍLIA SOPRANO) durante duas temporadas da série.

Mas o que importa mesmo é acompanhar as aventuras e confusões de nossos heróis em um momento em que Vince resolve dirigir ele mesmo um filme, e também atuar, lembrando dos bem-sucedidos casos de Kevin Costner e DANÇA COM LOBOS e Mel Gibson e CORAÇÃO VALENTE, dois filmes oscarizados. Curiosamente, como acontece na maioria das vezes na série, não vemos as cenas do set de filmagens, mas só o que acontece depois, com as negociações para as primeiras exibições para os produtores, montagem, lançamento e repercussão do filme, que se chama "Hyde".

Apesar de a turma continuar mais ou menos igual, E., curiosamente, aparece mais galinha, separado da adorável e grávida Sloane (tão bom ver a Emmnuelle Chriqui de novo). Já Turtle aparece mais confiante, em seu novo corpo magro e agora que ficou rico negociando tequila. Vince e Turtle não mudaram nada. Mas quem se destaca mesmo entre os cinco é mesmo Ari, cada vez mais nervoso, por mais que as regras impostas a ele sejam a de estar sempre calmo para agradar a esposa e não perder o casamento.

Muito provavelmente alguém que nunca acompanhou a série não vai gostar muito do filme e talvez por isso a distribuição no Brasil tenha sido muito discreta – na verdade inexistente na maioria das cidades brasileiras. Se bem que o filme pode até ter um efeito oposto e fazer com que algum espectador que nunca viu a série passe a se interessar pela gostosa brincadeira envolvendo Hollywood, sexo, dinheiro, fama, carrões, amizade masculina e muita mulher bonita.

terça-feira, outubro 06, 2015

NÓS DUAS DESCENDO A ESCADA



Tem dias que só um filme muito bom para ajudar a salvar. Foi o caso de NÓS DUAS DESCENDO A ESCADA (2015), de Fabiano de Souza, exibido em Fortaleza no 9º For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual. A comparação deste com AZUL É A COR MAIS QUENTE pode até ser um pouco difícil de evitar, já que em ambos os filmes há um casal feminino apaixonado e suas histórias são narradas com um espaçamento de tempo considerável, de modo que nós percebamos esse fator temporal tanto desgastando quanto enriquecendo a relação.

Separando os nove capítulos em que se divide o longa, o diretor e roteirista Fabiano e o produtor e editor Milton do Prado utilizam notícias curiosas da época em que se passa a história, entre os anos de 2011 e 2012. A proposta da filmagem foi também ousada nesse sentido, já que as cenas foram filmadas com esse espaçamento de nove meses. O resultado é que sentimos tanto o entusiasmo inicial dos primeiros encontros quanto o tédio e o desgaste quando surgem as discussões mais acirradas.

Apesar de em alguns momentos parecer ter alguma gordura na edição a partir de sua segunda metade, fica difícil imaginar o filme sem as cenas que ficaram. Do jeito que ficou, NÓS DUAS DESCENDO A ESCADA é tanto uma obra pop, que agrada a plateias maiores com sua narrativa agradável, como também flerta com o cinema de autores franceses como Jacques Rivette, Eric Rohmer e o Godard dos tempos de ACOSSADO.

Soube, através do produtor, que uma cena de sexo ficou na sala de edição, o que não deixa de ser uma pena, mas a difícil decisão pode ter beneficiado o produto final. O sexo, ainda que seja um elemento bastante excitante, além de muito bonito de ver no modo como é filmado, acaba servindo principalmente para a construção do estudo do relacionamento amoroso entre as belas protagonistas, a arquiteta Mona, vivida pela loira Carina Dias, e a estudante de arte Adri, vivida pela morena Miriã Possani.

Adri, depois de uma cantada de Mona e de um encontro no ônibus que rende até uma boa piada que remete explicitamente a LUA DE FEL, do Polanski, se torna alvo fácil e objeto do desejo de Mona e também do espectador. Aquele rosto fino de intelectual bonita e aqueles óculos de aros grossos são encantadores. Por outro lado, Mona, com aquele cabelo curtinho, acaba lembrando Jean Seberg no citado filme do Godard. Terá sido intencional?

Algumas cenas são dignas de nota, dada a delicadeza com que são dirigidas e representadas. Vale destacar a brincadeira em uma videolocadora com títulos de filmes brasileiros, as tantas vezes em que as duas se acariciam e conversam na cama, o baseado no aniversário de Adri, o momento em que ela chega deslocada em uma festa dos amigos de Mona (uma das mais bem-dirigidas, provavelmente, e uma das poucas com vários personagens em cena) e as buscas de resolução da situação das duas, inspirando-se, metalinguisticamente, nas comédias românticas. Mas não sem algo de estranho, herdeiro do cinema europeu, para tornar a obra mais charmosa.

No mais, outro belo destaque do filme é a sua trilha sonora, recheada de canções tão saborosas que deveriam constar em um CD encartado em uma futura edição em DVD do filme (dreaming is free). Frank Jorge é o autor da trilha original, mas no elenco de artistas há nomes como Graforréia Xilarmônica, Júpiter Maçã, Karina Buhr, DJ Dolores, Tulipa Ruiz, Clarissa Mombelli, Fernanda Takai, Cris Martins e até Aracy de Almeida, tudo funcionando muito bem no conjunto da obra.

domingo, outubro 04, 2015

TRÊS CLÁSSICOS DO CINEMA BRASILEIRO



De vez em quando surgem oportunidades de ouro de vermos certos filmes clássicos em cópias decentes no cinema, seja em 35 mm, seja em DCP. Os três títulos abaixo foram vistos em diferentes momentos de diferentes mostras no Cinema do Dragão, e o meu sentimento de agradecimento pelos curadores por terem trazido essas obras é grande. Falemos um pouco sobre cada um deles.

O BEIJO DA MULHER ARANHA (Kiss of the Spider Woman)

A repercussão de PIXOTE – A LEI DO MAIS FRACO (1981) chamou a atenção dos americanos para Hector Babenco, que acabou por fazer três produções americanas, a começar por O BEIJO DA MULHER ARANHA (1985, foto), coproduzido com o Brasil e que traz em seu elenco, além de Sônia Braga no papel-título, um grande elenco de apoio de rostos conhecidos do cinema e da televisão brasileiros. O BEIJO DA MULHER ARANHA é um filme que traz bastante da estética suja de PIXOTE, principalmente quando se passa dentro da cela em que dois homens, um deles gay, vivido por William Hurt, passam a estabelecer uma relação de amizade. Há todo um contexto político, muito bem-vindo naquele momento de redemocratização brasileira e Raul Júlia e Hurt se entregam aos seus papéis muito bem. As origens literárias da obra se tornam evidentes nos momentos em que Hurt procura contar história fictícias para ambos passarem o tempo. É também um filme sobre confiar no outro em um momento especialmente difícil para presos políticos ou perseguidos pela ditadura.

O GRANDE MOMENTO

Provavelmente uma das comédias mais divertidas e mais interessantes do cinema brasileiro, O GRANDE MOMENTO (1958), de Roberto Santos, não faz parte nem do período das chanchadas, que estava moribundo, nem do Cinema Novo, que estava nascendo. Trata-se de um objeto diferente, ainda que se visto hoje possa ser encarado como uma produção de narrativa convencional. Na trama, passada na periferia de São Paulo, o jovem Gianfrancesco Guarnieri é um rapaz que vive problemas financeiros na hora de casar, tendo que vender a bicicleta, por exemplo, para pagar o aluguel do terno para o casório. E ainda precisa pagar o fotógrafo, a florista, as bebidas para a festa etc. E ainda precisa de dinheiro para a lua-de-mel. É toda uma lógica de tentar mostrar que está tudo bem em uma situação de falta de dinheiro, que ainda impera nos dias de hoje. O que não impede que o filme seja cheio de momentos engraçadíssimos e situações que divertem até hoje. O GRANDE MOMENTO segue sendo um grande filme e ainda fala às novas audiências, passados todos esses anos.

VERA

Visto mais recentemente, VERA (1986), de Sérgio Toledo, foi exibido no 9º For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual. A escolha do título, pela organização do evento, foi muito feliz, tanto para aqueles que acompanham o festival pelo interesse na temática ou como exercício de cidadania, como para cinéfilos que valorizam um trabalho que até hoje é respeitado. VERA é um dos melhores filmes de sua época e é uma pena que Toledo tenha se aposentado do cinema. A história é baseada na vida de Anderson Herzer, transexual e poeta que passou a infância na Febem e foi protegido por Eduardo Suplicy, que, sensibilizado por seu talento artístico e sua condição, resolveu arranjar emprego para ele. No filme, os nomes são mudados e a personagem principal se chama Vera, embora prefira que a/o chamem de um nome masculino, Bauer. O papel rendeu a Ana Beatriz Nogueira o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim de 1987. A narrativa alterna cenas dos momentos em que Vera vive na Febem e em momentos que ela tenta, muito timidamente, contato com a sociedade preconceituosa que foi apresentada pelo personagem de Raul Cortez. Gosto do filme inteiro, mas gosto especialmente das cenas de intimidade de Vera com uma moça negra por quem ela se apaixona. O drama de rejeitar o próprio corpo feminino também sensibiliza a plateia.

quinta-feira, outubro 01, 2015

PERDIDO EM MARTE (The Martian)



Poucos cineastas têm trabalhado com tanta regularidade e com um elenco tão bom em Hollywood quanto Ridley Scott. No momento, por exemplo, só consigo lembrar de outro nome: Steven Spielberg. Em comum, ambos também são produtores, embora Spielberg seja um nome mais gigante nesse sentido. PERDIDO EM MARTE (2015) mostra mais um exemplo de fôlego de Scott, novamente no espaço, depois de duas excelentes experiências anteriores: ALIEN – O OITAVO PASSAGEIRO (1979) e o controverso PROMETHEUS (2012), que ganhará em breve uma continuação.

PERDIDO EM MARTE tem um pé no realismo, ao sair do universo de monstros e mostrar um futuro mais ou menos próximo, quando a humanidade já poderá ousar pisar pessoalmente em solo marciano. Mas ainda num momento bastante delicado. O filme já começa quando a equipe de seis astronautas liderada pela Comandante Melissa Lewis (Jessica Chastain) escapa de uma tempestade de areia e pedras e bate em retirada na própria nave. Uma pessoa do grupo, porém, o botânico Mark Watney (Matt Damon), fica para trás, atingido pelo vento e pelos detritos. É dado como morto e deixado sozinho no planeta.

Não se trata de um ESQUECERAM DE MIM em Marte, já que os seus colegas ficam preocupados e tristes com sua suposta morte. Mas Mark acorda e decide sobreviver diante daquelas circunstâncias tão terríveis. Afinal, ficar tantos milhões de quilômetros afastados da Terra em um planeta em que não dá sequer para respirar o ar não é para qualquer um.

É possível fazer um paralelo com um filme superior: GRAVIDADE, de Alfonso Cuarón, no qual Sandra Bullock se vê sozinha no espaço, no meio do nada. Acontece que PERDIDO EM MARTE não é um filme de naufrágio que foca apenas nas dificuldades de sobrevivência e na inteligência de Mark, mas também vemos o que acontece na Terra quando os executivos da Nasa avisam que perderam um homem na missão espacial e depois avisam que ele está vivo para o povo, que passa a acompanhar diariamente o drama do astronauta. Também vemos, ainda que pouco, cenas na nave que se encaminha de volta para o nosso planeta.

Scott tem o luxo de trabalhar com uma galeria de atores de fazer inveja a muita gente: além dos já citados Damon e Chastain, há também a presença de Kristen Wiig, Jeff Daniels, Michael Peña, Sean Bean, Kate Mara, Sebastian Stan e Chiwetel Ejiofor. Seja em Marte, no espaço ou na Terra.

Um dos pontos negativos do filme está no andamento por vezes moroso, que torna pouco empolgante ou preocupante a dura meta de Mark de sobreviver àquilo tudo, embora seja divertido ver as possibilidades apresentadas para sair de determinada situação, como quando ele utiliza as próprias fezes como adubo para plantar batatas em uma estufa no planeta vermelho, assim como as tentativas do pessoal da NASA de levar inicialmente comida para ele numa sonda.

Assim, a narrativa alterna momentos de desespero e outros de esperança animadora, como quando ouvimos “Starman”, do David Bowie, tocando. E não deixa de ser mais uma obra de Scott que lida com pessoas em circunstâncias terríveis tendo que encontrar forças de onde achava que não tinha e ainda ter uma ajudinha da sorte ou do destino. Lembramos tanto de ALIEN quanto de ATÉ O LIMITE DA HONRA (1997); tanto de ÊXODO – DEUSES E REIS (2014) quanto de GLADIADOR (2000), goste-se ou não desses filmes.