quinta-feira, janeiro 26, 2023

ARMAGEDDON TIME



Este mês de janeiro acabou se saindo bem diferente do que eu esperava de um mês de férias de meu trabalho como professor. O que eu esperava: ver muitos filmes e atualizar o blog quase todos os dias. A realidade: problemas de saúde (dores lombares, formigamento nos membros e pressão alta ocasional) fizeram com que minha saúde ficasse em primeiro lugar na lista de prioridades e pela manhã fui bastante ao treino na academia e a sessões de fisioterapia. Sem falar que tive que levar minha mãe a médicos para consultas e exames. Como não sou tão bom assim em organizar meu tempo como muitos pensam que sou, além de adorar uma boa soneca, o blog ficou assim desse jeito, um pouco largado. Mas não quero deixar de refletir um pouco mais sobre um dos filmes que mais me tocaram recentemente, ARMAGEDDON TIME (2022), de James Gray.

É muito interessante ver o filme após ter visto OS FABELMANS, pois o que temos aqui são propostas de um cinema de memória bem distintas. Enquanto Spielberg faz uso de um registro mais clássico, inclusive com uma música mais acentuada para dar um tom mais dramático a sua obra, Gray opta por um cinema mais seco, mais sóbrio e também mais sombrio, ao contar a história de seu alter-ego, um menino saindo da infância e criando consciência aos poucos, de maneira muito dura, da realidade a seu redor. Esse tom por vezes amargo adotado por Gray é enfatizado pela ótima fotografia em tons sépia do celebrado Darius Khondji, que havia trabalhado com o diretor em ERA UMA VEZ EM NOVA YORK (2013) e em Z – A CIDADE PERDIDA (2016).

Adoro o jeito como Gray não coloca o jovem Paul (Banks Repeta) como um anjo. Na verdade, o menino é presepeiro e faz coisas reprováveis, embora seja muito fácil ver que ele faz isso de maneira muito inocente. Adoro as cenas carinhosas dele com o avô (Anthony Hopkins), o jeito como ele diz “eu te amo”, como se fosse, talvez, uma forma de trazer para o filme uma espécie de situação que não aconteceu com o próprio diretor (não sei se é o caso, na verdade). E ao pensar nisso, o filme me lembrou AFTERSUN, de Charlotte Wells, mas acho que isso vem da minha relação muito pessoal com o filme da diretora escocesa.

Anne Hathaway e Jeremy Strong estão excelentes nos papéis dos pais do menino, e o filme mostra de maneira dolorosa e tocante as fragilidades de cada um. A convivência de Paul com o único menino negro de sua escola, Johhny (Jaylin Webb), é também um dos pontos fundamentais para se compreender essa história de privilégios e de extrema dificuldade da sociedade americana, principalmente a representada naquele ano de 1980, prestes a eleger Ronald Reagan como presidente, num período que se vê hoje como antecessor da gestão Donald Trump. Trata-se do melhor filme de Gray desde ERA UMA VEZ EM NOVA YORK. Inclusive, há algo de muito cruel no tratamento de certos personagens que é um ponto comum entre os dois filmes, embora ARMAGEDDON TIME encontre mais pontos em comum com FUGA PARA ODESSA (1994), o filme de estreia do cineasta.

O novo trabalho do diretor segue a tendência de filmes memorialistas que têm surgido atualmente. Mas ao contrário de APOLLO 10 E MEIO - AVENTURA NA ERA ESPACIAL, de Richard Linklater, que segue uma linha muito mais doce e nostálgica, por exemplo, James Gray opta por um tom mais duro e teve muito mais coragem de colocar alguém de sua família como sendo uma pessoa desagradável (no caso, o irmão velho) do que Spielberg, que procurou ser gentil com todos os representados (pai, mãe, irmãs e o amante da mãe). Aquela cena em que o menino Paul se recusa a jantar e pede dumplings pelo telefone é de dar raiva – a mãe (Anne Hathaway) costumava economizar comprando peixe mais barato, pensando nas despesas da família. Tanto que a surra de cinturão que o garoto recebe do pai (Jeremy Strong) nem me pareceu tão dura assim, por mais inocente que o menino possa ter sido na situação envolvendo maconha na escola.

Em entrevista para o Collider, o diretor conta que tem uma memória muito boa de sua infância e das escolas por onde passou e que lembra das crianças e de todos os professores. E eu fiquei pensando que eu não tenho tanta recordação assim das escolas e dos professores, acho que me lembro mais dos amores platônicos que tive nesse período do que das aulas em si, embora eu fosse sempre o primeiro ou segundo melhor da sala em se tratando de notas. E eu até poderia me lembrar de momentos e situações tão ou mais melancólicos na minha infância do que as representadas no filme de Gray. E cheguei a me identificar com algumas situações do garoto, como ter um pai de classe trabalhadora pobre e uma mãe que fazia o possível para trazer conforto para toda a família. Sobre o pai vivido por Jeremy Strong, aliás, que cena comovente aquela em que o ouvimos falar sobre o quanto ele é grato ao sogro (Hopkins). Nessa cena, Gray opta por filmá-lo de costas, para enfatizar o ponto de vista do garoto. É maravilhoso quando um cineasta tem tal sensibilidade, não apenas para fugir do óbvio, mas para, principalmente, trazer emoção, mesmo quando opta pela estranheza visual.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES


NOSSA SENHORA DO NILO (Notre-Dame du Nil)

É muito bom e necessário ter contato com a cultura dos países africanos. Uma cultura plural que tem passado desapercebida das salas de cinema por causa da dominação americana e europeia. Claro que há também questões de ordem financeira (esta produção aqui não seria possível sem dinheiro europeu, por exemplo), mas poder ter um cineasta não-europeu (no caso, Rahimi é afegão) já é um ganho. NOSSA SENHORA DO NILO (2019), de Atiq Rahimi se passa em 1973, quando se vê, num internato católico belga, a rixa perigosa já existente entre hutus e tutsis, vista no cinema em HOTEL RUANDA, de Terry George. O que vemos aqui chama atenção também para questões envolvendo a colonização, a história africana, questões de ordem moral e a religiosidade, que funde (ainda que de maneira proibida) as tradições milenares com o catolicismo do colonizador. A direção é muito bem cuidada e a fotografia valoriza a janela scope. A história, porém, se atropela no finalzinho, quando quer deixar mais explícita a guerra entre as duas etnias.

ENQUANTO ESTAMOS AQUI

Tive um pouco de dificuldade de me concentrar neste ENQUANTO ESTAMOS AQUI (2019), de Clarissa Campolina e Luiz Pretti. O fato de haver múltiplos narradores e as imagens não terem muita relação com o que está sendo narrado pode ter contribuído um pouco. A estrutura lembra a de VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, mas percebo um maior prazer, quase poético, no narrar de Grace Passô, mais do que nos outros dois narradores. Talvez porque na vez em que Passô narra, o que ouvimos está mais próximo da escrita literária do que de uma escrita epistolar, como é o caso das outras duas narrações. Há várias referências que são apresentadas ao final, nos próprios textos, e por isso talvez o filme se beneficiasse não apenas de uma revisão, mas de um olhar sem pressa e mais afinado com o tom e o sentimento que ele propõe.

domingo, janeiro 22, 2023

BABILÔNIA (Babylon)



Estamos vivendo um momento bem delicado (mais uma vez) para o cinema. Em sua história, diferentes momentos surgiram como ameaça para sua existência ou permanência. A crise com a chegada dos talkies não chegou a ser algo tão ameaçador para o cinema em si, sendo mais um período de transição, mas uma transição que mudou completamente o modo de se fazer filmes. Isso é visto com muita clareza em BABILÔNIA (2022), quarto longa-metragem de Damien Chazelle, um dos mais talentosos cineastas surgidos nos anos 2010. Seu filme, assim como também é OS FABELMANS, de Steven Spielberg, representa uma espécie de chamado para a sala escura, enquanto ela ainda existe, neste momento pós-pandemia e com a ameaça da vez, os streamings.

No ano passado tivemos um filme que conquistou uma bilheteria excelente, TOP GUN – MAVERICK, graças ao esforço de Tom Cruise, principalmente, um caso raro levando em consideração que apenas os filmes de super-heróis têm conseguido levar milhões de pessoas ao cinema. AVATAR – O CAMINHO DA ÁGUA, de James Cameron, também é outro título que foge um pouco dessa linha, embora de certa forma também seja filme de super-herói, no fim das contas. Ou seja, BABILÔNIA é cinema de resistência, no sentido de que se trata de uma megaprodução, conquistada graças ao prestígio alcançado por Chazelle desde seu longa inicial e graças a sua vontade de fazer mais um filme sobre cinema, a exemplo do musical LA LA LAND – CANTANDO ESTAÇÕES (2016).

BABILÔNIA se passa no período que vai do auge do cinema silencioso (1926) até a adaptação para o cinema falado, a partir da revolução técnica que representou O CANTOR DE JAZZ (1927), de Alan Crosland. O prólogo (ou o longo momento que antecede os letreiros com o título, aliás) é de tirar o fôlego: somos apresentados a uma festa/orgia com direito a muito do que se possa imaginar (foram contratados cerca de 700 figurantes e um elefante). Gostar ou não dos excessos depende de cada espectador, claro. Eu, no caso, achei tudo incrível. Até porque é cinema com muitas pessoas juntas, como no passado, e que necessita de uma organização minuciosa, de uma coreografia. E o mais incrível: depois dessa sequência, há outra impressionante também, mostrando como funcionava o esquema dos sets no deserto da Califórnia antes do cinema falado, com vários filmes sendo feitos ao mesmo tempo, e cujo resultado dependia ainda mais da montagem para seu sucesso.

E no meio disso tudo somos apresentados aos três personagens centrais: o super-astro Jack Conrad (Brad Pitt), a aspirante a atriz e mulher selvagem Nelly LaRoy (Margot Robbie) e ao jovem faz-tudo mexicano, que também sonha em trabalhar em Hollywood, Manny Torres (Diego Calva). Há uma habilidade incrível de Chazelle em saber dosar esse todo muito complexo e também deliberadamente bagunçado à organização da apresentação daquele mundo e daquelas pessoas. E com direito a uma trilha jazzística empolgante de Justin Hurwitz, parceiro do diretor deste o primeiro filme, WHIPLASH – EM BUSCA DA PERFEIÇÃO (2014). Essa trilha dá ritmo e calor a um filme cujo calor já se nota nas cores e na textura da fotografia de Linus Sandgren. Uma fotografia que parece contaminada pelo ambiente da luminosa Califórnia.

O diretor tem um domínio incrível de ritmo e as mais de três horas passam tranquilamente, deixando na memória uma série de cenas fantásticas: a luta com a cobra no deserto, a revelação da personagem de Margot Robbie como atriz, a dificuldade de se fazer um filme falado, Brad Pitt defendendo o cinema como arte respeitável a uma de suas esposas, Diego Calva negociando com os gângsteres etc. Fico na torcida para que o possível fracasso de bilheteria do filme (em relação a seus custos elevados) não interfira negativamente na carreira brilhante de Chazelle. Por isso eu digo: não deixem de procurar a melhor sala possível para ver o filme. Inclusive por causa do som. Sem dúvida nenhuma a escala do filme é muito grande para que ele seja apreciado como se deve em casa, por melhor que seja a televisão e o equipamento de som.

BABILÔNIA mixa personagens fictícios com personagens reais. A personagem de Margot Robbie é baseada na atriz Clara Bow (PROVOCAÇÃO DE AMOR, 1926), enquanto o astro vivido por Brad Pitt foi inspirado em três astros, John Gilbert, Douglas Fairbanks e Clark Gable. Conta-se, inclusive, que a saída de cena de Emma Stone, a princípio cotada para o papel que ficou com Margot, mudou bastante a personagem, que seria mais próxima de Clara Bow, adequando-se ao estilo da atriz australiana, que exala sensualidade, carisma e ambição desde seus instantes iniciais. E Margot entra de cabeça na personagem, com muita vontade mesmo. É dela a maior parte das cenas memoráveis do filme. Quanto a Pitt, ele está melhor à medida que envelhece. O momento em que ele percebe que chegou ao fim da carreira (e da vida) é carregado de tintas trágicas. Os personagens dos dois, mas também o de Calvo, vivenciam na própria pele a incrível e maravilhosa máquina de moer gente que é Hollywood.

O tom do filme parece mixar muito da história do cinema. Há influências de Federico Fellini (lembrei de ROMA e de SATYRICON) e das comédias da Nova Hollywood, mas há também um tom agridoce ao final, que remete um pouco a CREPÚSCULO DOS DEUSES, de Billy Wilder, e que traz à tona um sentimento que pode ter passado pela cabeça do jovem Chazelle. Ele tem apenas 38 anos e pode estar vivendo o fim do cinema – ou o fim como o conhecemos. Assim como os três protagonistas, teria o diretor chegado tarde demais, teria ele chegado justo no fim de uma era? Estaria ele prenunciando o fim prematuro de sua carreira, assim como acontece principalmente com Manny e com Nelly, uma vez que uma nova ordem está se formando? Ao mesmo tempo, o olhar de Manny ao enxergar CANTANDO NA CHUVA quase como um documentário de seu tempo e ao vermos aquele clipe tão belo quanto melancólico que traz excertos da história do cinema, traz uma certeza: a arte continua, por mais que tenha que passar por uma mudança drástica. Afinal, há milhões de apaixonados pelo cinema mundo afora, não é verdade?

+ DOIS FILMES

ESQUEMA DE RISCO OPERAÇÃO FORTUNE (Operation Fortune – Ruse de Guerre)

Um filme simpático de Guy Ritchie, para quem já espera muito pouco de seu cinema. Desse modo, é interessante ver o quanto o diretor é devedor de seus astros (Statham, Plaza, Hartnett, Grant) que entram num modo mais frio nessa aventura de espionagem tão leve quanto uma sessão da tarde descompromissada. O começo de ESQUEMA DE RISCO – OPERAÇÃO FORTUNE (2023) já deixa claro que até o mcguffin é dito ser uma coisa que foi roubada e não se sabe o que é. Assim, os heróis vão ao encalço de quem roubou, mas também de descobrir o que foi roubado. E o que foi roubado é pouco importante. O que importa é o jogo de gato e rato e as ações e reações de cada grupo. Ainda assim, achei um desperdício do talento de Audrey Plaza este papel tão sem-graça. Hugh Grant já está numa fase de não se importar tanto assim e fazer os filmes que lhe são ofertados. E para quem já havia feito uma aventura de espionagem muito bacana (O AGENTE DA U.N.C.L.E., 2015), Ritchie está cada vez menos interessado em ser aquele diretor estiloso que pretendia ser no início da carreira.

HOSPITAL (The Hospital)

Um filme bastante em sintonia com sua época, tanto no tipo de comédia que se fazia, quanto na preocupação quanto aos temas de ordem social abordados, com a panela de pressão que foram os Estados Unidos na virada das décadas de 1960 e 70. George C. Scott está muito bem como um dos médicos responsáveis por um hospital que, misteriosamente, está tendo alguns de seus profissionais encontrados mortos, supostamente, pela falta de atenção de enfermeiras, médicos e residentes. HOSPITAL (1970) ganha com o surgimento da personagem de Diana Rigg, que chega para mexer com a vida do protagonista, um homem que diz ser um impotente convicto. Conheço pouco da carreira do diretor Arthur Hiller, que talvez não seja um autor na acepção mais segura da palavra, mas na minha cinefilia pré-histórica, vi e gostei bastante do melodrama LOVE STORY – UMA HISTÓRIA DE AMOR (1970) e da comédia RAPAZ SOLITÁRIO (1984). Visto no box O Cinema da Nova Hollywood 3.

domingo, janeiro 15, 2023

OS FABELMANS (The Fabelmans)



Dos cineastas da Nova Hollywood, Steven Spielberg é sem dúvida o mais popular. Teve a sorte de seus temas serem tão interessantes na década de 1970, mas principalmente na década seguinte, mais pop e menos interessada em política, embora, vez ou outra, o diretor também trate de política de maneira bem explícita em sua obra. A título de curiosidade, fui checar os filmes do diretor escolhidos para figurar no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer. São nove títulos (talvez ele só perca para Alfred Hitchcock em quantidade)! São eles: TUBARÃO (1975), CONTATOS IMEDIATOS DO TERCEIRO GRAU (1977), CAÇADORES DA ARCA PERDIDA (1981), E.T. – O EXTRATERRESTRE (1982), A COR PÚRPURA (1985), PARQUE DOS DINOSSAUROS (1993), A LISTA DE SCHINDLER (1993), O RESGATE DO SOLDADO RYAN (1998) e CAVALO DE GUERRA (2011) – a propósito, ter esse último filme escolhido é um indicativo de que quem está fazendo as novas edições dos livros quer deixar a impressão de que o grosso da produção dos últimos anos é ruim ou medíocre, o que não é verdade.

Meu respeito pelo Spielberg é tão grande que mal percebi que já fazia um tempo que não via um filme dele de que eu gostasse de verdade, que realmente me pegasse. Talvez o ano de 2005 tenha sido o último grande ano dele, com a dobradinha GUERRA DOS MUNDOS e MUNIQUE. A opção por fazer um filme bem pessoal foi um acerto, mas não pelo quanto o filme é capaz de emocionar como algo representativo de seu amor pelo cinema, mas principalmente pelo retrato de sua família (embora as irmãs não tenham tempo de cena para ganharem personalidades próprias). O foco acaba sendo, além do próprio protagonista adolescente, seus pais e a questão matrimonial que assombraria o diretor por muitos anos em sua visão de família quebrada.

É curiosa esta tendência atual de certos diretores buscarem inspiração em suas próprias lembranças. Isso se deu com Kenneth Branagh (BELFAST), Paul Thomas Anderson em (LICORICE PIZZA); Paolo Sorrentino (A MÃO DE DEUS), James Gray (ARMAGEDDON TIME), Richard Linklater (APOLLO 10 E MEIO – AVENTURA NA ERA ESPACIAL), e até em cineastas jovens, como Charlotte Wells (AFTERSUN) e Joanna Hogg (THE SOUVENIR e THE SOUVENIR – PART II), que podem entrar nessa categoria, pois são filmes de retorno às origens ou a momentos muito importantes das vidas das realizadoras. 

No caso de OS FABELMANS, para minha surpresa, o retrato que o diretor faz do pai (Paul Dano) é bem carinhoso, assim como é também da mãe (Michelle Williams, vivendo uma pessoa tão passional quanto o filho). A obra ganha também quando conhecemos o primeiro interesse amoroso do rapaz e gosto muito da exibição de seu filme de verão na escola e da conversa com um dos seus bulliers. Além do mais, Spielberg acertou em cheio ao escolher o maior diretor vivo para viver o maior cineasta americano. Foi o momento que o sorriso insistiu em ficar em meu rosto por mais tempo.

OS FABELMANS começa com um momento muito especial da vida de seu protagonista enquanto criança: quando seus pais o levam para a sessão de O MAIOR ESPETÁCULO DA TERRA, de Cecil B. DeMille. Foi a primeira vez dentro de uma sala de cinema e, pouco antes de entrarem, Spielberg deixa claro tanto a apreensão do menino quanto as características opostas dos pais: enquanto o pai tenta explicar como se processa cientificamente a ilusão da imagem provocada pela rápida passagem dos 24 quadros por segundo, a mãe diz de maneira apaixonada que o cinema é magia ou sonho ou algo parecido. Depois da sessão, o menino Sammy fica sem palavras, mas já tem uma ideia de que presente quer ganhar dos pais: um trem de brinquedo.

E será a partir da recriação da cena do trem no filme de DeMille que Sammy/Spielberg passará a fazer pequenos filmes caseiros com as irmãs. Será também através da câmera que ele descobrirá que a mãe está tendo um caso com outro homem (Seth Rogen), o melhor amigo da família, a pessoa que está sempre por perto. Em determinado momento, quando o pai decide, após conversa com a mãe, que eles vão se separar, a visão do jovem Sam daquele momento triste e tenso da família já é de alguém que vê a vida como cinema.

Acho curioso como o filme funciona menos como declaração de amor ao cinema – não é nenhum CINEMA PARADISO – e mais como uma necessidade do diretor de contar uma história que sempre quis contar, mas que não se sentia à vontade por medo de magoar os pais. Agora que os dois faleceram, ele o faz, mas com muito respeito e compreensão pelas decisões e pelos sentimentos de cada um deles. A mãe, por exemplo, havia deixado de ser uma pianista profissional para ser uma dona de casa, o que era comum na vida das mulheres e ainda é, mas não conseguiu, por exemplo, abandonar o seu grande amor. A escolha de Rogen para o papel parece apropriada nesse sentido. Inclusive, a cena em que ele dá de presente ao jovem Sam (Gabriel LaBelle) uma câmera nova, é representativa do quanto Spielberg também quis prestar tributo a esse homem com quem sua mãe escolheu viver.

OS FABELMANS é também um filme quase típico sobre a vida de jovens ingressando numa escola de ensino médio, com direito a ataques de bullying. No caso de Sam, por ser judeu. E mesmo aqui, Sam mostra a câmera como sua arma poderosa, uma arma, inclusive, que pode transformar pessoas em heróis e vilões, a partir de imagem e edição, como ele deixa bem claro no filme apresentado para professores e alunos na festa da escola.

Talvez a obra não alcance a profundidade necessária para ser a obra-prima que o diretor esperava fazer, já que é muitas coisas ao mesmo tempo. Ao mostrar a apresentação do cinema na infância, a separação dos pais, o primeiro amor, a vida na escola e terminar com o começo da carreira profissional, numa série de televisão, com direito a uma conversa com o mestre John Ford – inclusive quem viu o documentário DIRIGIDO POR JOHN FORD, de Peter Bogdanovich, já conhecia essa conversa rápida que Spielberg teve ele –, ao mostrar tudo isso, talvez tenha faltado ao filme uma maior densidade. Ainda assim, é um dos mais bonitos trabalhos do realizador, desde aquela dupla de filmes de 2005. E isso já é o suficiente para que vejamos com muito carinho e atenção OS FABELMANS. 

+ DOIS FILMES

PEQUENOS GUERREIROS

O longa-metragem de estreia na direção da produtora Bárbara Cariry é um filme para toda a família. Na trama de PEQUENOS GUERREIROS (2021), casal resolve levar os filhos à cidade de Barbalha para pagar uma promessa. O formato de road movie acaba sendo um trunfo e o olhar que a diretora parece buscar é sempre o dos pequenos, o que torna o filme muito interessante para ser exibido inclusive para as crianças. É uma obra que lida com a imaginação infantil e o entusiasmo e encantamento de ver as coisas pela primeira vez na vida. É também um trabalho de valorização da cultura tradicional do sul do Ceará, que parece ser uma cultura de outro mundo até para mim, que moro na capital do estado.

PÉROLA

O segundo longa de Murilo Benício é novamente uma obra baseada numa peça de teatro. PÉROLA (2022) é uma comédia dramática que conta a história da matriarca que dá título ao filme, vivida por Drica Moraes, pelo olhar do filho Mauro (Léo Fernandes). O filme é um longo flashback sobre as memórias de Mauro sobre sua família, em que destaca as manias de sua mãe, seu senso de humor muito especial, seu jeito controlador, mas de uma maneira muito carinhosa. Infelizmente vi o filme com o sono provocado pela crise alérgica e por isso devo aproveitar para revê-lo quando estrear no circuito.

sábado, janeiro 14, 2023

15 CURTAS BRASILEIROS



O formato curta-metragem é um formato quase invisível e infelizmente poucas pessoas têm acesso a eles. Algumas pessoas dão sorte de vê-los quando frequentam sessões especiais ou festivais. Na maior parte das vezes quem tem acesso a eles são mesmo os críticos de cinema. Não sei o quanto isso é justo, pois alguns deles são verdadeiras pérolas. Abaixo, alguns dos filmes que vi entre o fim do ano passado e início deste ano.

PROCURA-SE BIXAS PRETAS

Um dos maiores méritos PROCURA-SE BIXAS PRETAS (2022), de Vinícius Eliziário, é brincar com um tipo de jogo de cena utilizado por Eduardo Coutinho e fazer com que o que parece ser um documentário tradicional e vitimista sobre personagens gays e/ou trans confessando seus sentimentos de rejeição, ao se virem usados sexualmente em diversos momentos por parceiros encontrados em aplicativo de encontro e depois jogados fora, acaba se tornando uma interessante história contada com pontos de vista diferentes. Poderia ter aproveitado melhor essa ideia, mas funciona bem. Como se trata de um documentário que promete ser um longa futuramente, é possível imaginar um bom trabalho como um longa.

NA ESTRADA SEM FIM HÁ LAMPEJOS DO ESPLENDOR

Curta cearense que tem um ar de mistério e de valorização da noite que me chamou a atenção. Há diálogos em NA ESTRADA SEM FIM HÁ LAMPEJOS DO ESPLENDOR (2021, foto acima), de Liv Costa e Sunny Maia, mas é interessante como eles parece não fazer muita diferença: as imagens é que fazem. As imagens dos quatro personagens, todos saindo de uma noção tradicional de masculino e feminino e curtindo a noite de uma cidadezinha do interior em suas motos, apreciando as estradas, a bebida, suas próprias companhias e a arquitetura local. É um filme que se beneficiaria de uma revisão para uma melhor compreensão.

PROMESSA DE UM AMOR SELVAGEM

Considero Davi Mello um dos mais talentosos cineastas da novíssima geração. Quando vi A BORDO (2015) e AS VIAJANTES (2019), logo percebi o gosto do diretor por caminhos que parecem portais para novos universos. Em PROMESSA DE UM AMOR SELVAGEM (2022), temos uma primeira parte que parece uma história simples sobre um rapaz que adentra uma festa e conversa com pessoas de lá. Entre elas um grupo de moças que leem sua mão e um rapaz com quem ele flerta e beija. A surpresa aparece logo a seguir e o ato final do filme é tão cheio de mistério e beleza que entender a trama passa a ser menos importante do que curtir aqueles instantes mágicos.

QUANDO CHEGAR A NOITE, PISE DEVAGAR

O cinema pernambucano já tem o dom de parecer sempre atraente sem fazer muito esforço. O que temos em QUANDO CHEGAR A NOITE, PISE DEVAGAR (2021), de Gabriela Alcântara, é uma história de mistério envolvendo uma jovem mulher que se muda para um apartamento e começa a suspeitar que o lugar é provavelmente mal assombrado. Enquanto isso, ela sofre com o ciúme da namorada e é às vezes quase aborrecida com as investidas do vizinho. A protagonista Mohana Uchôa (ótima) havia aparecido no ótimo AZOUGUE NAZARÉ, longa de Tiago Melo.

QUANDO MORREMOS A NOITE

Quem viu e amou A MORTE HABITA À NOITE (2020), de Eduardo Morotó, certamente vai amar ver este curta-metragem, que funciona como uma cartão de apresentação para o longa com a mesma história-base e o mesmo Roney Villela interpretando o escritor decadente inspirado em Charles Bukowski. Acho lindo e amargo o tom de ambos os filmes e no curta já estava tudo lá, em forma condensada. Na trama de QUANDO MORREMOS A NOITE (2011), homem de meia idade encontra uma jovem garota de programa num bar e iniciam um relacionamento. Mas a força do filme está mesmo nas sutilezas e no carisma de Villela. No modo como o filme abraça as trevas daquela vida de pouco sentido e de como as tristezas não são devidamente enlutadas pelo amargo da existência. Achei muito interessante o jogo de falta/presença de sinal de crase em ambos os títulos dos filmes, deixando no ar sentidos poéticos.

AINDA RESTARÃO ROBÔS NAS RUAS DO INTERIOR PROFUNDO

Interessante como AINDA RESTARÃO ROBÔS NAS RUAS DO INTERIOR PROFUNDO (2022), de Guilherme Xavier Ribeiro, apresenta personagens que aparentemente representam uma espécie de ameaça ao jovem protagonista, um rapaz que voltou a trabalhar (num McDonald's) e perdeu sua égua. O filme não é apenas surpreendente em sua conclusão, mas como também traz um sentimento de união e solidariedade que me emocionou. É também um filme sobre a luta de classes, de um país ainda governado (felizmente pelo último ano) por Bolsonaro, mas que também conclama para uma compreensão maior do outro, sem que seja, no entanto, panfletário ou coisa do tipo. Destaque também para a fotografia, que enfatiza tanto a pouco iluminação de quando o sol está prestes a ir embora, quanto as luzes dos faróis nas ruas, num efeito visual que se mistura com nosso pensar o filme.

BENZEDEIRA

Que filme bonito e que figura adorável que é Maria do Bairro, nome adotado por Manoel Amorim, benzedeira numa área rural do Pará. A primeira imagem que vemos de BENZEDEIRA (2021), de San Marcelo e Pedro Olaia, é uma tomada do alto, da floresta onde vive o personagem, que manifesta desde o início o prazer que sente em viver no mundo terreno, apesar das dificuldades. Há muito mais risos e sentimentos de gratidão do que reclamação por parte de Maria do Bairro, por mais que ele seja constantemente ameaçado por pessoas que querem derrubar as árvores e matar seus animais. Há sabedoria simples na fala do personagem, da importância de repassar os conhecimentos para as novas gerações e da importância das ervas como remédios substitutos dos remédios artificiais. É muito interessante também o modo como se misturam as crenças cristãs com a mitologia do candomblé nas rezas e nas canções. Adorei os tons crepusculares da fotografia.



BICHO AZUL

Fico encantando com esses filmes feitos com pouquíssimos recursos, com recursos que poderiam ser usados por qualquer pessoa com criatividade e que resultam em algo ao mesmo tempo simples e poderoso. No caso de BICHO AZUL (2021), de Rafael Spínola, o filme me pegou num momento em que a partida recente do Rick, o cachorrinho que morou por um tempo aqui em casa e que estava na casa da minha irmã e do meu sobrinho, num momento em que essa partida ainda me traz um tanto de tristeza. Ontem mesmo meu sobrinho esteve aqui e de vez em quando falava do cachorro, queria que eu o desenhasse na casa que ele tinha, quando propus que desenhássemos nossas casas. E há algo que o narrador do filme fala sobre o fim ser a única coisa que fica que me pegou. Ainda estou ruminando isso, eu que sou um canceriano que seleciona momentos felizes do passado, mas gostei muito da afirmativa. Ainda mais quando ela surge num e-mail encaminhado a uma pessoa que foi sua namorada. São sete minutos que calam fundo em nossa alma.

CANTAREIRA


A princípio senti um pouco de dificuldade de me conectar a CANTAREIRA (2021), de Rodrigo Ribeyro. Isso porque o filme tem um andamento lento, dois personagens que demoram um pouco a se reencontrar, mas quando isso acontece (ou melhor, antes disso acontecer) já nos vemos encantados com o quanto o diretor nos deixa pequenos diante da natureza apresentada (da Serra da Cantareira) e diante do mistério dos conflitos internos de seus personagens. Fica implícito o afastamento do jovem Bento da casa do avô Sylvio, é compreensível pelos olhares. Além de valorizar os grandes espaços, em especial a natureza, o diretor também valoriza os olhares, com close-ups muito bonitos e uma plasticidade que chama a atenção desde as primeiras imagens. A cena final é representativa tanto do espírito do filme quanto da relação de harmonia que parece se estabelecer entre os dois personagens principais. Premiado em Cannes-2021 na Mostra Cinéfondation

CANTOS DE UM LIVRO SAGRADO

O curta-metragem vencedor do É Tudo Verdade 2022 não foi dos filmes mais fáceis de eu compreender. Isso pelo meu total desconhecimento da história política da Armênia. Como CANTOS DE UM LIVRO SAGRADO (2022), de Cesar Gananian e Cassiana Der Haroutiounian, não é exatamente didático, é preciso um pouco de pré-requisito para se aproximar melhor. Ainda assim, uma das primeiras informações, que é a era das trevas do país ter acontecido em 1992, quando, com o fim da União Soviética, perdeu a energia elétrica, me pareceu no mínimo muito curioso. Após isso, o filme foca, em sua divisão em cantos, na história política mais recente do país, mais exatamente em 2018, sendo que a Armênia foi tema de uma de nossas escolas de samba no carnaval de 2019. Trata-se certamente de um filme que merece ser revisto, de preferência após estudar um pouco mais sobre a história desse país, que merece a nossa atenção.

CURIÓ

Filme que presta homenagem a um bairro da periferia de Fortaleza. Há destaque tanto para sua história de origem e construção, com moradores falando do esquema de mutirão, quanto da chacina que marcou a vida de muitos moradores, cometida por policiais. CURIÓ (2021), de Priscila Smiths e PH Diaz, apresenta uma mãe, por exemplo, que perdeu o filho nessa chacina e tem por hábito fazer lives para sensibilizar as pessoas do ocorrido. CURIÓ tem um formato híbrido, podendo ser tanto ficção livre quanto documentário, com cenas do cotidiano de jovens e de pessoas mais idosas. São cenas que aparentemente não têm ligação entre si, mas que funcionam como um álbum de fotos muito interessante.

CURUPIRA E A MÁQUINA DO DESTINO

Senti falta de ter visto o clássico moderno IRACEMA – UMA TRANSA AMAZÔNICA, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Uma lacuna enorme, uma falha terrível, é verdade. Enfim, a personagem principal deste curta é a Iracema do filme dos anos 1970 encontrando o Curupira, o personagem folclórico. CURUPIRA E A MÁQUINA DO DESTINO (2022), de Janaina Wagner, começa misterioso e mantém essa mesma pegada, embora misture, lá pelo meio, cenas que o aproximam do documentário. É uma obra que talvez não tivesse nascido se não fosse o bolsonarismo, interessado em um suposto desenvolvimentismo da região amazônica, leia-se, destruição da vegetação de maneira irresponsável. Falo assim, mas o filme se distancia do didatismo e acaba se destacando, no final, pela beleza plástica e pelos efeitos visuais bem construídos.

ESCASSO

Um dos curtas mais intrigantes e cheios de segurança que vi nos últimos anos. A atriz e diretora Clara Anastácia é uma mulher que se apresenta como alguém que entrou numa casa que estava vazia e agora está curtindo o ambiente que lhe foi presenteado até o momento que a dona da casa voltar. Disfarçado de documentário, ESCASSO (2022, foto acima), de Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles, apresenta uma entrevistada inteligente, debochada e com uma energia impressionante. O filme lida com questões sociais (é melhor uma casa ocupada do que uma casa vazia), questões religiosas tipicamente brasileiras e a questão da cor da pele. O filme é entrecortado por imagens bem divertidas, como a cena das moedas, ou a imagem da entrevistada em diferentes partes da casa. Eis um filme que merece os prêmios que vem recebendo no Brasil e no mundo.

TERREMOTO

É possível fazer uma conexão bem próxima entre TERREMOTO (2022) e MARTE UM (2022), ambos de Gabriel Martins, e ambos interessados em um cinema de afeto com base na família. TERREMOTO busca esse afeto através de um outro tipo de registro, o documentário, ao conhecermos uma família de haitianos que moram em Minas Gerais e que contam como foram suas experiências durante o terremoto de 2010, que fez com que muitos habitantes do país migrassem para o Brasil, e como é morar no Brasil. Escutamos os depoimentos da mãe e dos dois meninos. O mais jovem, com um português mais bem formulado parece mais adaptado, mas é do mais velho que surge o testemunho mais dramático, que vem da lembrança que ele tem desse terremoto. Tanto TERREMOTO quanto MARTE UM são filmes que mostram pessoas sofridas com um interesse num futuro melhor.

GAROTOS INGLESES


Já faz um tempinho que Marcus Curvelo se transformou numa das figuras mais interessantes dos curtas-metragens brasileiros (embora já tenha um longa, EU, EMPRESA, 2021). Seus filmes são garantia de diversão e têm um tipo de humor muito particular. Quem não viu, por exemplo, MAMATA (2017) e JODERISMO (2019) não sabe o que está perdendo. GAROTOS INGLESES (2022) talvez seja menos inspirado, mas não menos divertido e também ácido no modo como tenta lidar com o fato de que um traficante de escravos inglês tem direito a um dos melhores túmulos de Salvador. O filme se passa na pandemia de COVID e há dados bem tristes que atravessam o filme. Por causa disso, o riso que o filme tenta provocar tem uma natureza obviamente estranha.

segunda-feira, janeiro 09, 2023

O PAGAMENTO FINAL (Carlito's Way)



Brian De Palma, seu filho da mãe! Você conseguiu de novo me fazer chorar! Quase desidratei ontem com o final, como aconteceu lá naquele comecinho de 1994, quando vi o filme pela primeira vez no saudoso Cine Fortaleza e saí do cinema em estado de graça, mas com o coração bem machucado. Acho muito curioso dizer isso, ainda mais sobre um filme desse diretor considerado por muitos, e até por mim, como alguém bastante racional, que age mais com a mente do que com o coração em suas obras. Afinal, não é De Palma o cineasta virtuoso que elabora planos impressionantes que nos fazem retornar para ver a cena e estudar cada detalhe? E se O PAGAMENTO FINAL (1993) não é o melhor filme dirigido por ele, é certamente o que mais soube unir esse talento na construção de cenas tão bem pensadas com um coração pulsante.

É possível que isso tenha se dado pelo fato de o cineasta ter se divorciado havia pouco tempo. Seu segundo casamento, com a produtora Gale Ann Hurd, durou de 1991 a 1993. Curiosamente, o filme anterior do cineasta, SÍNDROME DE CAIM (1992), tratava justamente da ideia e da vontade de ele ser um pai mais presente do que o próprio pai (que fora ausente). 

Em O PAGAMENTO FINAL temos a figura de um homem que acabou de sair de um período de cinco anos na prisão, que teve um passado com o crime organizado e que agora sente a necessidade de "se aposentar" daquela vida. Está com uma ideia fixa de juntar uma grana e montar uma empresa de aluguel de carros. Assim como o próprio De Palma havia criado o sonho de um futuro feliz com a esposa e um filho, um sonho que não se concretizou.

Assim, desde o começo da narrativa, estamos diante do dilema de Carlito Brigante (Al Pacino), que se encontra cercado pelo universo do crime, cercado por propostas indecentes, e até por tentativas de ser incriminado, como na fantástica e única cena com Viggo Mortensen, um criminoso que aparece de cadeira de rodas e com um grampo, com o objetivo de tentar arrancar alguma prova de crime que Carlito tenha cometido naquele período em liberdade. Mas nada como receber uma proposta de um homem que ele se sente em débito, Dave Kleinfeld (Sean Penn), o advogado que conseguiu diminuir consideravelmente sua pena na prisão. Assim, quando Kleinfeld pede para que ele o ajude a tirar um homem de uma prisão na ilha Ryker, ele, Carlito, não consegue dizer não, por mais que sua amada, Gail (Penelope Ann Miller), tenha lhe dito que isso é uma roubada e que ele acabará sendo morto. Ou seja, estamos diante de uma tragédia tão linda quanto as feitas pelos gregos ou por Shakespeare. Carlito é um personagem trágico por excelência.

O PAGAMENTO FINAL costuma ser subestimado e tido como uma obra que é citada como o segundo filme de gângster estrelado por Al Pacino que De Palma dirigiu. No próprio livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, vê-se SCARFACE (1983), mas não se vê este filme tão mais belo e mais delicado. Há uma série de situações que remetem ao filme de 1983, mas no fim das contas, acho mais interessante fazer as conexões com outras obras do realizador, como VESTIDA PARA MATAR (1980), a cena do elevador, e OS INTOCÁVEIS (1987), a sequência na estação de trem. Ambas as cenas, se comparadas com os filmes dos anos 1980, inclusive, são mais eficientes no que se refere ao impacto dramático, justamente por nos conectarmos com muito mais facilidade com os personagens de O PAGAMENTO FINAL.

Inclusive, acho uma pena que o filme não tenha sido visualizado na temporada de premiações. Também não chegou a ser um grande sucesso de bilheteria: custou 30 milhões de dólares e rendeu apenas 37 milhões em território americano. Ou seja, muito pouco. Por sorte, Tom Cruise adorou o filme e chamaria De Palma para dirigi-lo em MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996), que se tornaria seu título mais bem-sucedido comercialmente. Ainda assim, O PAGAMENTO FINAL foi bastante exaltado por boa parte da crítica, em especial da revista francesa Cahiérs du Cinéma, que o colocou na primeira posição no top 10 da década de 1990, empatado com AS PONTES DE MADISON, de Clint Eastwood, e ADEUS, AO SUL, de Hou Hsiao-Hsien.

Além do mais, temos as performances. Já citei a pequena e brilhante participação de Viggo Mortensen, mas como não destacar Sean Penn em seu papel mais impressionante? Ele não está apenas fisicamente diferente, mas parece se “outrar” de tal forma que até o tom de voz e os gestos parecem os de outro ator bem distinto. Também adoro Penelope Ann Miller, que imprime um tom de dramaticidade na cena final que me arrancou lágrimas e arrepios. Sua personagem é essencial para dar ainda mais coração para Carlito Brigante. Gail é a materialização da vida boa e estável de uma pessoa comum, e Penelope defende muito bem sua personagem. E não há muito a dizer de Al Pacino, que não é apenas um grande ator, mas um dos mais carismáticos astros que pudemos testemunhar na história do cinema. Aqui ele aparece o tempo todo com aquele sobretudo preto, como que num estado de luto pela própria morte passada/futura no longo flashback que é o filme. E aquele super-close de seus olhos no final, hein?! 

Quanto aos personagens de Pacino e Penn, podemos muito bem vê-los como duas faces de uma mesma pessoa. Lembremos que De Palma havia dirigido anteriormente um filme sobre um homem com múltiplas personalidades (SÍNDROME DE CAIM) e um outro também nessa mesma linha (IRMÃS DIABÓLICAS, 1972). Sem falar que podemos ver a maldade e a bondade entre os personagens de Sean Penn e Michael J. Fox como também aspectos de uma única pessoa em PECADOS DE GUERRA (1989).

Em O PAGAMENTO FINAL, há uma cena muito representativa dessa dualidade: quando Gail está dançando com um homem, Carlito olha com carinho para a namorada, sem nenhum aparente ciúme. Mas Dave está vendo e diz que acha um absurdo aquele mafioso estar passando a mão em sua namorada e Carlito não concorda com ele, mas o encoraja a desabafar, tirar do peito aquilo que ele sente. Logo depois ele percebe que foi um erro, já que a situação quase foge do controle. A cena, inclusive, é quase o oposto de uma muito parecida de SCARFACE, mas que se apresenta mais complexa e rica por apresentar essa dualidade bem depalmiana. O próprio Carlito é também um homem duplo em si, por adorar a figura angelical de Gail, quando a vê num balé, e depois se encher de ciúme quando a vê no pole dancing num bar de strip-tease, embora logo depois ele procure vencer o ciúme e agir com candura e aceitação.

É depalmiana também a cena do arrombamento da porta do quarto de Gail por Carlito, num rompante de desejo, ao ver a amada tirando a roupa e dançando sensualmente para ele. Carlito representa aqui um autêntico herói de Brian De Palma, ao precisar da sedução para partir para a ação, como acontece com seus protagonistas de DUBLÊ DE CORPO (1984) e SÍNDROME DE CAIM, embora neste numa chave mais sombria.

No mais, o clímax prolongado final é uma das coisas mais perfeitas produzidas no cinema americano. Ao entregar os bilhetes a Gail, Carlito tem a missão de encerrar alguns assuntos pendentes antes de encontrar a amada no horário indicado, na estação central. Então, a visita ao quarto do advogado traidor, toda a cena no clube, tentando escapar dos mafiosos que suspeitam que ele participou da morte de seus dois familiares, e a perseguição no metrô, até chegar ao “Benny Blanco from the Bronx” (John Leguizamo) na estação e ao choro e às palavras finais com Gail, tudo isso é de um valor inestimável.

É a constatação não apenas do gênio de Brian De Palma (isso já se sabe desde pelo menos os anos 1970), mas do quanto a sua genialidade podia também se atrelar da forma mais comovente possível ao seu coração. Obra-prima imensa, que ainda encerra com aquela voz rouca de Joe Cocker cantando “You Are Sou Beautiful”. Tão lindo que o próprio De Palma disse que nunca conseguirá superar o que fez neste filme.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.    

+ DOIS FILMES

RUÍDO BRANCO (White Noise)

Uma boa surpresa este RUÍDO BRANCO (2022), novo trabalho de Noah Baumbach, que aqui aproveita para mostrar de maneira mais explícita seu apreço por Brian De Palma em cenas que homenageiam alguns de seus filmes (não foi à toa que ele dirigiu um documentário sobre o mestre em 2015). É bem provável que eu não tivesse gostado do filme se o visse em casa e não no cinema, que faz uma diferença enorme. Sim, é uma obra um tanto irregular, mas eu fiquei encantado com várias coisas, em especial com a família apresentada. A família dos pais vividos por Adam Driver e Greta Gerwig é adorável e há também um prazer de viver aquela época (os anos 1970, aparentemente) que transparece em cada imagem. O filme, baseado em romance de Don DeLillo, tem uma estrutura bem estranha, assim como é estranha, pelo menos a princípio, o estilo de atuação adotado. Mas, uma vez que nos acostumamos, fica parecendo quase naturalista. Gosto dos três atos, mas acho que meu preferido é o segundo, que trata de uma nuvem tóxica que poderia trazer a morte a quem estivesse nas proximidades. É muito interessante o namoro de Baumbach com o gênero terror: às vezes funciona, como no caso de um sonho do personagem de Driver; na maioria das vezes funciona em registro de comédia. E é na comédia que ele se sente mais à vontade e por isso o tom do filme é leve, mesmo lidando com temas pesados, como o medo da morte, a insegurança e a paranoia.

PATERNO

Marco Ricca é um arquiteto que comanda, junto com o irmão, a empresa do pai, que está prestes a morrer. Seu personagem tem maiores ambições profissionais, ambições de pessoas burguesas com o poder de comprar o espaço de moradia dos pobres para dar lugar a um projeto maior que os interesses do irmão. Enquanto isso, ele vê o filho adolescente se formar de maneira mais humana e percebe o quanto foi perdendo de humanidade ao longo dos anos. PATERNO (2022), de Marcelo Lordello, é um fábula moderna sobre a consciência da perda da alma de seu anti-herói. Há um cuidado especial com o trabalho dos atores, que dá ao filme um tom de produção de primeira classe, embora nem sempre seja uma obra empolgante.

domingo, janeiro 08, 2023

MAS NÃO LIVRAI-NOS DO MAL (Mais Ne Nous Délivrez Pas du Mal)



Infelizmente comecei o ano com preocupações e inconvenientes envolvendo minha saúde. Dores na lombar e na cervical e um formigamento nos membros me deixaram mais focado em buscar minha saúde e atentar para esses sinais de modo que, quem sabe, seja possível reverter a situação e voltar a me sentir bem. Como não é uma tarefa fácil e demanda cuidados até com a forma como durmo, como me sento ou como ando, não é algo que deve ser resolvido de um dia para o outro. As idas à fisioterapia, por exemplo, têm me tirado o tempo que eu teria gastado escrevendo para o blog. Então, já deixei explicado nesse parágrafo a minha ausência neste início de ano.

E como há vários filmes vistos e não comentados, já sei que alguns não ganharão textos maiores, tanto pelas dores, quanto pela falta de inspiração de minha parte mesmo. Então, falemos um pouco sobre o filme que está mais fresco em minha memória, MAS NÃO LIVRAI-NOS DO MAL (1971), primeiro e mais famoso longa-metragem de Joël Séria, um dos títulos escolhidos para integrar o livro Obras-Primas do Terror: Horror Internacional - Dez Filmes Essenciais da Coleção. A propósito, estou adorando esse projeto que a Versátil tem lançado desde 2022 e que deve perdurar por mais um bom tempo de incluir livros temáticos com textos críticos em edições caprichadas junto com os packs mensais.

Sobre o filme, enquanto o via, achava a trama muito parecida com a de ALMAS GÊMEAS, de Peter Jackson. Só depois soube, lendo o texto de Cristian Verardi para o livro (e depois nas entrevistas contidas nos extras do DVD), que ambos os filmes foram inspirados na mesma fonte, com a diferença que esta estreia de Séria foi apenas livremente inspirado. Ou seja, Séria ficou muito impressionando quando leu no jornal o caso das duas meninas da Nova Zelândia e construiu uma história mais parecida na relação das duas meninas do que em seus atos.

Não há tanto um interesse em mostrar as personagens de forma mais cirúrgica, do ponto de vista psicológico. O filme de Séria possui o espírito da rebeldia que dominou as décadas de 1960-70 e os atos das meninas de preferirem fazer o mal do que o bem é mais uma forma de se rebelar contra o sistema. No caso, o sistema da igreja católica, principalmente, mas também a hipocrisia da sociedade em que viviam. 

Confesso que demorei a me sentir incomodado com o filme, o que considero um problema. Só na cena da menina matando um passarinho que eu fiquei um bocado incomodado e a partir de então a narrativa vai se encaminhando por caminhos mais sombrios. Mas, por mais que estejamos diante de um produto de sua época, a sociedade de então não estava exatamente preparada para certas coisas, e por isso o filme foi banido por alguns meses na França, por causa de intervenções da igreja, principalmente. Depois, o diretor até aproveitou a fama dessa proibição para capitalizar em cima de lançamentos em diversos países. 

Gosto da cena final, no teatro da escola, e gosto bastante da cena em que as meninas cometem seu mais grave delito. E diferente do filme de Peter Jackson, o amor entre as duas meninas parece ser mais de mestre e aprendiz, de dominadora e dominada, pois há a menina que parece ser mais malvada e aquela que segue os seus caminhos, ainda que tenha ficado triste, por exemplo, com a morte do passarinho. Além do mais, como é comum nos filmes de gênero desse período, há algo no tom e até na própria fotografia que remetem a uma atmosfera de sonho, de pouca relação com o mundo concreto e uma maior aproximação com o mundo das ideias. Não à toa, a despedida das meninas se dá numa performance, recitando um poema de Charles Baudelaire.

Filme visto no box Obras-Primas do Terror - Horror Francês.

+ DOIS FILMES

FEITIÇO DIABÓLICO (Spellbinder)

Eis um caso de filme que começa muito bem e vai se perdendo na segunda metade, embora eu goste do gesto ousado da conclusão. A princípio, é fácil ficar interessado no filme e se sentir enfeitiçado pela beleza de Kelly Preston (A PRIMEIRA TRANSA DE JONATHAN). Na década de 1980, a atriz era uma das mais belas (na verdade, continuaria bela por vários anos). Então, como FEITIÇO DIABÓLICO (1988) é sobre a história de um homem que encontra uma mulher linda e fascinante, que sabe alguns rituais de magia e parece estar lhe fazendo bem, então é natural que esse início de filme siga por um caminho relativamente fácil para a direção. A parte do grupo de bruxas e bruxos ameaçando os heróis (ou o herói) já é um pouco mais frágil, embora eu destaque uma cena muito interessante, que é a das janelas com vários rostos. Conta-se que a diretora Janet Greek não gostou nada da montagem e disse que aquilo que está na tela não é o seu filme. Então, provavelmente nunca conheceremos a sua versão e se o trabalho de suspense e terror teria funcionado melhor. Visto no box Obras-Primas do Terror - Anos 80.

NATAL SANGRENTO (Silent Night, Deadly Night)

Eis um filme que começa muito bem e bastante aterrorizante, com aquela cena na estrada do Papai Noel assassino (e ladrão e bêbado e estuprador) matando os pais do garotinho. Adoro a cena anterior, com a família visitando o avô no asilo. Impressionante. Mas acho uma pena que NATAL SANGRENTO (1984), de Charles E. Sellier Jr., se torne mais do mesmo e bastante desprovido de ideias quando chega o momento de o rapaz vestir a roupa de Papai Noel e sair matando as pessoas. É como se o roteirista não tivesse uma noção do que fazer a partir daquele momento a não ser reciclar as fórmulas dos slashers, que àquela altura já estavam ganhando até paródias. Ainda assim, ao ver o making of de mais de 40 minutos presente no box Slashers III, até que passei a ver o filme com um pouco mais de carinho, levando em consideração todo o trajeto que ele percorreu, e também imaginando como seria para alguém tão jovem ter contato com essa obra, principalmente lá nos anos 1980.