domingo, maio 28, 2023

AMOR E MORTE (Love & Death)



Atualmente ando evitando séries e minisséries. Não por falta de coisas muito boas disponíveis nos streamings, mas por falta de tempo mesmo, e por querer privilegiar os filmes no escasso tempo disponível. Mas a circunstância na semana passada de estar em casa adoentado e de atestado me trouxe para esta minissérie que já estava namorando há algumas semanas, talvez pela presença da sempre linda e expressiva Elizabeth Olsen, talvez por ter gostado dos últimos trabalhos do criador e roteirista David E. Kelley, talvez por acreditar no potencial da HBO em seu histórico de séries de sucesso e de qualidade ao longo de algumas décadas. Assim, cheguei a AMOR E MORTE (2023), esta série de crime que começa destacando inicialmente o affair entre duas pessoas casadas de uma igreja metodista de uma pequena cidade americana, a pequena Wylie, no Texas.

Foi lá que aconteceu um crime que abalou as estruturas da sociedade americana: uma aparentemente pacata jovem mulher matou com 41 golpes de machado uma de suas amigas. O que motivou isso? Candy Montgomery, vivida aqui por Olsen, ainda é a única pessoa a saber exatamente o que aconteceu naquela tarde de 13 de julho de 1980, quando foi a única a sair viva da casa. Como a minissérie de Kelley nos conta a história pelo ponto de vista dela, principalmente, é natural que estejamos diante de sua versão dos fatos e da compreensão do que ela considerou como sendo um ato de legítima defesa. O mesmo caso foi recentemente contado por outra minissérie, chamada CANDY, do canal Hulu, e estrelada por Jessica Biel, o que só revela o quanto essa história ainda ressoa e fascina a muitos.

Um dos grandes méritos de AMOR E MORTE é saber aproveitar os seus momentos. Se os primeiros episódios focam na relação extraconjugal entre Candy e Allan Gore (Jesse Plemons), é sobre esse aspecto que ela nos deixa intrigados e interessados. E de certa forma, a relação dos dois faz parecer um pouco um crime os encontros na hora do almoço para transarem e conversarem como bons amigos. Vemos que partiu de Candy a ideia de um caso. Allan era um sujeito muito correto e simples e nunca nem tinha beijado de língua na vida, o que me chamou atenção em determinado momento da intimidade dos dois, no primeiro encontro para o sexo à tarde. A relação deles começa a se solidificar, mas ambos haviam se comprometido a se distanciar se começasse a surgir algo parecido com amor, algo que pudesse magoar seus cônjuges ou comprometer seus casamentos.

Os papéis dos cônjuges cabem a Patrick Fugit, que faz o marido de Candy, Pat, um homem um pouco relapso e que adora ver programas bobos de televisão, para tristeza da esposa; e Lily Rabe, que faz Betty Gore, a esposa às vezes irritadiça de Allan, que costuma ficar enciumada ou chateada quando o marido faz viagens a trabalho. Ambos os atores defendem muito bem seus papéis, principalmente Fugit, e principalmente quando o personagem descobre a traição da esposa.

O começo de AMOR E MORTE me fez lembrar BIG LITTLE LIES (2017-2019), com o crime antecipado num mini-prólogo, acontecido cerca de dois anos depois da história que passará a ser contada, em 1978. Kelley é ótimo na criação de diálogos e em trazer certa naturalidade para a história. Além do mais, há aqui uma recriação muito bonita dos anos 1970, nos carros, nas roupas, nos comportamentos, e até na paleta de cores, que muitas vezes remete ao cinema e à televisão produzidos na época. E há também um dos pontos muito fortes de Kelley, que é o drama de tribunal, bastante valorizado nos episódios finais.

Um dos melhores episódios é o quarto, quando acontece o crime e quando ficamos um pouco perdidos, já que não vemos em detalhes o que aconteceu. É um episódio de muita tensão e com toques hitchcockianos, já que de certa forma torcemos para que a personagem de Olsen consiga se livrar daquela situação desesperadora. Vê-la tentando apagar o ocorrido, comprando cartões do dia dos pais com as crianças e depois saindo para o cinema com elas, é angustiante. Assim como é angustiante o desespero do personagem de Plemons, sem saber, e depois sabendo o que aconteceu com a esposa. Plemons tem a capacidade rara de usar poucas palavras e conseguir transmitir muita coisa com gestos e olhares. E seu personagem tem um quê de hombridade admirável, apesar das circunstâncias e do caso extraconjugal. Como apreciadores de cinema, nos acostumamos a ser pessoas compreensivas com as fraquezas humanas.

Antes de encerrar o texto, quero destacar a excelente performance de Tom Pelphrey, como o advogado de defesa de Candy. Sua participação começa de maneira mais forte depois do crime chocante, e o personagem é rico o suficiente para que o ator consiga desenvolver suas características e sua vontade de ganhar o jogo, mesmo que tenha que agir de maneira pouco nobre. Enfim: eis uma história tão fascinante que merece mesmo a atenção e o carinho do público e de quem se dispõe a trazê-la de volta à tona.

+ TRÊS FILMES

OS FILHOS DOS OUTROS (Les Enfants des Autres)

Talvez OS FILHOS DOS OUTROS (2022), de Rebecca Zlotowski, seja um filme melhor compreendido pelas mulheres, pois trata do desejo da maternidade. E por isso nada melhor do que ser escrito e dirigido por uma. Na trama, Virginie Efira é uma mulher de meia idade que sabe que seu tempo para ficar grávida está se esgotando. Ela namora um homem (Roschdy Zem) que está separado e tem uma filha de cinco anos e se apega bastante a ele e à menina, embora sofra a cada vez que se sente uma intrusa. Gosto de como o filme é todo narrado pelo olhar da personagem de Efira. É ela quem mais importa e talvez por isso o personagem do namorado não seja pintado de maneira tão carinhosa. O fato de ela ser uma professora do ensino médio faz a diferença no modo como ela lida com os mais jovens e é essencial para a sequência final agridoce. Efira confere ao mesmo tempo força e fragilidade a cada vez que está entre quatro paredes, seja só, seja com um homem, como se estivesse no auge de sua vitalidade física, de sua compreensão de vida e de sua feminilidade. De propósito, a atriz aparece sem maquiagem (ou com uma maquiagem que destaca suas marcas de expressão) e isso faz parte da beleza da composição. OS FILHOS DOS OUTROS compôs a programação do Festival Filmelier.

A GAROTA RADIANTE (Une Jeune Fille Qui Va Bien)

O grande trunfo deste primeiro longa-metragem da atriz Sandrine Kiberlain é sua protagonista, Irène, vivida por Rebecca Marder. Até fui checar a filmografia da jovem para saber se já a tinha visto em outros trabalhos e vi alguns, sim, mas não em papéis principais ou muito marcantes, creio eu. Já vi compararem seu papel ao Antoine Doinel de François Truffaut, pela alegria contagiante, mas diria que Irène é mais solar ainda. Afinal, ela vive em plena ocupação nazista na França, em 1943, sendo ela uma judia, num momento em que os judeus estavam sendo privados das possibilidades de se comunicarem e de viverem em sociedade. Em A GAROTA RADIANTE (2021), Irène só tem tempo para se preocupar com sua vida amorosa, e o caso mais bem-sucedido é com o assistente de um médico, um personagem simpático, que combina com a graça da moça. E há as pessoas ao redor da protagonista, principalmente os membros de sua família, que ganham destaque e são bem desenvolvidos o suficiente, por mais que não se expressem de maneira tão explícita. A opção de Kiberlain por uma narrativa que foge com frequência de um cinema mais comercial e com um uso de canções mais modernas na trilha, para destacar a presença da jovem diante daquele momento sombrio, confirmam o fato de o filme estar entre os melhores lançamentos do ano até o momento.

CLOSE

Os filmes batem na gente de maneira muito distinta e acho que um dos problemas que eu tive com CLOSE (2022) foi que, nas cenas mais emotivas, eu não me emocionava - ou não o suficiente, talvez. Por outro lado, em cenas de ação do cotidiano, a lembrança da situação dramática apresentada me trazia mais reflexões e, em consequência, mais emoções. Um dos pontos altos do filme para mim, além do excelente trabalho das crianças, está na maneira como o diretor Lukas Dhont nos faz pensar em relações num plano quase espiritual, como é o caso da relação de amizade entre os dois meninos, só abalada por causa de insinuações dos colegas de escola. É bom ver também o quanto a formação na escola é essencial e delicada para a educação e a visão de mundo de um ser humano. O filme me lembrou os irmãos Dardenne, em especial nos momentos de maior proximidade da câmera com o protagonista, e lá no final me pareceu querer homenagear OS INCOMPREENDIDOS, de François Truffaut, trazendo de volta o vazio, a solidão e um peso da existência, sendo que agora temos uma criança que vai conviver com uma culpa, o que não deixa de ser muito cruel de se pensar.

sábado, maio 27, 2023

A CIDADE DOS ABISMOS



Na última quarta-feira, saí de casa à noite para ver a sessão das 20h de A CIDADE DOS ABISMOS (2021), de Priscyla Bettim e Renato Coelho, obra bastante exaltada por vários críticos amigos e respeitáveis como um dos melhores lançamentos deste ano. O filme chegou a ser visto durante um festival online no segundo ano de pandemia, mas não cheguei a vê-lo na ocasião. E de certa forma isso foi muito bom, pois ter a oportunidade de ver no cinema faz toda a diferença. As imperfeições (por assim dizer) das imagens ficam mais nítidas e belas.

Chegar ao Cinema do Dragão numa quarta-feira à noite pode ser uma experiência quase assustadora para quem não está acostumado a frequentar o espaço. A praça está tomada por moradores de rua e cachorros, os bancos estão todos quebrados, assim como os ladrilhos, e há pouca gente circulando, o que dá um ar de abandono e de decadência que trouxe uma sintonia especial para o filme, ambientado na noite de uma São Paulo habitada por pessoas marginalizadas. Além do mais, estava com o coração aflito por causa de uma situação pessoal, mas fazia questão de vivenciar tudo que a vida pudesse me proporcionar.

Ao optar pela película e pela simulação de filme antigo (alternando entre 35mm, 16mm e Super-8), percebemos um tipo de textura que nos remete tanto às experiências de frequentar antigos cinemas de rua de décadas atrás, quanto de ver filmes brasileiros em qualidade sofrível, pois infelizmente ainda temos uma dívida imensa com nosso cinema do passado que, felizmente, segue vivo no presente em uma belezura vanguardista como esta. Em alguns momentos, lembrei-me da experiência de filmes urbanos de Jean Garrett (TCHAU AMOR, O FOTÓGRAFO), talvez por tê-los visto nas opções em baixa resolução, mas também por causa da presença da cidade de São Paulo, pela ambientação noturna e pela dor de seus personagens.

No entanto, é bom deixar claro que A CIDADE DOS ABISMOS deixa de lado o erotismo de clássicos do cinema paulistano dos anos 1970/80. Nesse sentido, talvez se aproxime mais do cinema mais experimental produzido nos anos 1960/70, de gente do cinema marginal, como Andrea Tonacci, Carlos Reichenbach e Rogério Sganzerla. Na verdade, fazer comparações com cineastas e décadas específicas do cinema brasileiro é inglório, pois o filme de Bettim e Coelho é quase um inventário da história de nosso cinema, inclusive, trazendo uma homenagem explícita a LIMITE, de Mário Peixoto.

Ver A CIDADE DOS ABISMOS é também se equilibrar entre o esforço de enxergar nas sombras e nas imagens de baixa resolução e de se sentir confortável com essas imagens, com suas cores, seus arranhões. Isso porque, dentro do experimentalismo, há também uma história de certa forma linear sobre três personagens que estiveram presentes durante o assassinato de uma jovem mulher e que passam a viver o luto e a certeza de que são pessoas rejeitadas pelo sistema. Temos um filme sobre solidão, amizades e amor, na acepção maior do termo, vide a participação especial do Padre Júlio Lancellotti, em cena muito tocante.

Os diretores fogem de uma abordagem naturalista e vez ou outra o filme adquire tons lynchianos, como nas vezes em que Arrigo Barnabé toca teclado ou dialoga com uma das personagens. Nem sei se David Lynch foi uma inspiração direta dos diretores, mas senti uma conexão, sim. Inclusive pelo convite a adentrarmos à penumbra da noite e da alma humana, também na tradição do cinema de Walter Hugo Khouri. Ou seja, entrei para ver um filme novo e acabei vendo um objeto tão estranho quanto perdido em seu tempo, para satisfação de minhas preferências cinéfilas que geralmente buscam as profundezas, o mistério e os sentimentos indecifráveis.

A CIDADE DOS ABISMOS é o primeiro longa-metragem de Bettim e Coelho, sendo seu primeiro filme um curta-metragem chamado A PROPÓSITO DE WILLER (2016), sobre o poeta Cláudio Willer, que comparece em participação especial. Próxima missão: ver se esse curta está disponível na internet.

+ TRÊS FILMES

DOS 3 AOS 3

Apesar da simplicidade da ideia, o resultado é encantador. Eu, pelo menos, não havia visto um filme que se detivesse tanto assim na primeira infância. Há o diferencial de trazer uma experiência que uma mãe faz com seu filho de poucos meses. A ideia é usar a abordagem Pikler a fim de ver a evolução da criança, de modo a torná-la o mais autônoma possível para sua idade. E faz sentido esse experimento ser feito através do cinema, já que se trata de uma arte que utiliza a observação desde seus primórdios. Confesso que não achei que fosse tão interessante acompanhar a evolução de uma criança pelas lentes de uma câmera. Em certos momentos, até se instalam pequenos suspenses: será que o bebê vai se machucar?, será que ele vai cair? Ver DOS 3 AOS 3 (2023), de Bianca Bethonico e Pablo Lobato, é também uma ótima oportunidade de refletir sobre essa fase da vida que geralemente costuma ser esquecida por quase todas as pessoas, mesmo sendo ela tão basilar.

O HOMEM CORDIAL

Um dos vários filmes que foram prejudicados pela pandemia, este O HOMEM CORDIAL (2019), que contou com exibição e premiação para trilha sonora e ator (Paulo Miklos) no Festival de Gramado, faria mais barulho se lançado durante o governo Bolsonaro, já que traz uma visão controversa da polícia. Há uma cena em que o personagem de Miklos adentra o bar administrado por seu ex-parceiro de banda vivido por Thaíde, e se questiona sobre um suposto sensacionalismo envolvendo atos homicidas por parte de policiais. Thaíde diz que adoraria ver o mundo sob a ótica tão bonita de um branco, como ele. Um dos méritos do filme é nos deixar ainda mais confusos que o personagem de Miklos, o cantor de uma banda punk que começa a ser "cancelado" por alguma coisa envolvendo o assassinato de um policial. Tanto a situação como as imagens às vezes se veem embaçadas. E a câmera na mão, nervosa, ajuda a contribuir para esse mal estar, embora também seja um aditivo para o caráter de tensão e de suspense ao longo da peregrinação do protagonista pela noite da cidade grande. Mesmo quem não entrar na viagem do diretor Iberê Carvalho (O ÚLTIMO CINE DRIVE-IN, 2015), certamente vai curtir a performance brilhante de Miklos.

ANDANÇA - OS ENCONTROS E AS MEMÓRIAS DE BETH CARVALHO

O cinema brasileiro tem prestado um excelente serviço de preservação e valorização da música brasileira. Desde os anos 2000 que a quantidade de documentários sobre artistas relacionados à nossa música só cresce. O curioso ANDANÇA - OS ENCONTROS E AS MEMÓRIAS DE BETH CARVALHO (2022), de Pedro Bronz, é que a maior parte de suas imagens foi gravada pela própria cantora ao longo de muitos anos. O que o filme faz é juntar essas imagens, dispostas de maneira livre, sem seguir uma ordem cronológica amarrada, à história de vida pessoal, mas principalmente profissional da sambista. O que logo me encantou de cara foi sua aproximação com Nelson Cavaquinho e Cartola, dois verdadeiros poetas da nossa música. Tanto que tudo que vem a seguir, no quesito parcerias, deve deixar mais entusiasmado os fãs do samba e do pagode. Costurando a história da cantora, há a história política do Brasil, em especial na campanha das diretas já, quando ela teve participação decisiva. No mais, como não sabia de detalhes de seus últimos dias de vida, fiquei comovido com a cena de um de seus shows finais.

domingo, maio 21, 2023

À PROCURA DE MR. GOODBAR (Looking for Mr. Goodbar)



Tenho percebido, cada vez mais, que tenho lacunas imensas de filmes pertencentes ao ciclo da chamada Nova Hollywood. Não sei explicar muito bem o motivo – talvez por ter procurado apenas filmes de diretores de maior renome (Scorsese, Allen, Coppola, De Palma etc.), mas nem chega a ser uma verdade, já que deixei de ver um monte de filmes de Robert Altman, só para citar um exemplo. Essa constatação aumentou quando comecei a adquirir os boxes da Versátil Home Video, dedicados a essa era de ouro do cinema americano. E foi vendo um dos destaques de um dos mais recentes pacotes que cheguei a um dos filmes mais impressionantes e talvez chocantes que já vi. Por chocante, talvez queira dizer surpreendente, no sentido mais pessimista do termo, já que, obviamente, já vi títulos mais perturbadores, evidentemente.

À PROCURA DE MR. GOODBAR (1977) é, talvez, o ápice que o cinema desse movimento chegou ao lugar de extremo pessimismo e mal-estar, mas certamente estou enganado, pois me falta repertório ainda, como já disse. No caso deste filme de Richard Brooks, que é um cineasta da geração anterior e não dos novos diretores mais ambientados na contracultura, temos uma obra que apresenta de maneira dolorosa a vida de uma mulher simpática e atraente (Diane Keaton, adorável) que tem a má sorte de se relacionar sempre com homens abusivos.

O que me deixou muito surpreso foi o quanto o filme tem detratores. O que é compreensível, já que pode ser visto de maneiras diversas. Acho que sou uma pessoa que aprendeu a ser menos julgadora do caráter ou das escolhas de vida de certos personagens. Logo, não vi em Theresa Dunn (Keaton) uma mulher promíscua, ou talvez esteja achando o adjetivo muito taxativo de alguém que quer ser sexualmente livre. Theresa quer ter o mesmo direito que os homens de nossa sociedade machista têm: poder se relacionar com vários parceiros sexuais e mandar a culpa católica para a PQP. De todo modo, esse tipo de comportamento, encontraria ainda mais barreiras na década seguinte, com o advento da AIDS.

É verdade que À PROCURA DE MR. GOODBAR acaba fornecendo munição para que tanto a personagem seja vista como irresponsável e culpada pelo seu próprio fim (o que é mais ou menos como culpar a vítima de um estupro no lugar do estuprador), quanto o diretor Richard Brooks como um artista que deixa escapar uma flagrante misoginia. Há, por exemplo, cenas que depõem bastante contra a personagem, como a “capacidade” de deixar as baratas tomarem de conta da louça em seu apartamento modesto. Mas acredito que se fosse um homem no lugar dela essa irresponsabilidade seria levada menos em consideração.

O que me incomodou muito na personagem, principalmente nos instantes iniciais, foi sua relação com um homem egoísta, o seu professor vivido por Alan Feinstein. O sujeito não merece uma mulher tão carinhosa e adorável e nem a entrega física e espiritual dela. Porém, uma vez que veremos outros homens também deploráveis passando pela trajetória de Theresa, começaremos a entender isso como uma espécie de via-crúcis da personagem, numa sociedade extremamente violenta contra a mulher.

Os Estados Unidos daquele período era um país em que reinava a desesperança e isso se refletia nos filmes produzidos. Era também a época da discothèque, quando as pessoas se jogavam nas noites a fim de experimentar prazeres novos, regados a muita bebida e drogas, mesmo que aquilo significasse uma vida diurna um pouco mais sem graça ou com muita ressaca. Mesmo assim, até que Theresa consegue, de certa forma, equilibrar esse estilo de vida à sua carreira de professora de crianças surdas.

Dos personagens masculinos, certamente o de Richard Gere se destaca e influenciou os papéis que receberia posteriormente, como em GIGOLÔ AMERICANO e A FORÇA DO AMOR, no início da década seguinte. Enfim, eis um filme para se ver sabendo o mínimo possível, de modo a não estragar as surpresas. E é também uma obra que consegue trazer um jogo narrativo bem sofisticado, unindo um pouco do classicismo à fragmentação proveniente dos pensamentos e das memórias da protagonista, característica que encontra ecos no cinema francês de vanguarda (lembrei-me de Alain Resnais), ainda que de maneira muito mais sutil ou diluída.

Nota: À PROCURA DE MR. GOODBAR foi lançado seis meses depois de NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA, de Woody Allen, o que só deixava claro o excelente momento na carreira de Diane Keaton. Além do mais, há um diálogo no bar que cita O PODEROSO CHEFÃO, e ver o sorriso de Keaton nesse momento me fez parecer um sorriso de satisfação por ter atuado num dos filmes mais importantes da história do cinema.

+ TRÊS FILMES

DANÇANDO NO SILÊNCIO (Houria)

O ponto de partida deste DANÇANDO NO SILÊNCIO (2022) me fez lembrar O PRÓXIMO PASSO, de Cédric Klapisch. Ambos são filmes de superação sobre moças que vieram de uma educação rígida do balé e enfrentam as dificuldades de uma vida pós-acidente. O filme de Klapisch é muito mais solar e também bem melhor desenvolvido e envolvente, mas talvez o trabalho de Mounia Meddour (PAPICHA, 2019) seja interessante justamente por essa busca por um tom mais sombrio e aterrador na realidade da protagonista. Entra em questão o país em que vivem, que ainda sofre com problemas sociais que acabam por espantar jovens a fugirem para outro lugar. No entanto, não gosto nada do modo muito "autoajuda" do filme, embora compreenda que seja uma obra que afetará diferentes sensibilidades.

A NOITE DO DIA 12 (La Nuit du 12)

Este sétimo longa-metragem de Dominik Moll (LEMMING – INSTINTO ANIMAL, 2005) opta por se interessar mais pelos personagens dos policiais do que em construir um trabalho de tensão a partir da investigação do assassinato da garota. Em alguns momentos, devido ao fato de a jovem ter vários casos amorosos na pequena cidade, é difícil não lembrar de TWIN PEAKS, mas A NOITE DO DIA 12 (2022) é bastante realista, até mesmo na construção da figura dos heróis, principalmente de seu protagonista, vivido por Bastien Bouillon, um policial jovem e muito centrado no que deve fazer, tendo cuidado para que suas emoções não nublem seus pensamentos e seus atos. Quem já está um pouco mais acostumado com o andamento de tradição mais lenta dos filmes policiais franceses certamente vai apreciar bastante. O filme fez parte do Festival Filmelier.

O LUGAR DA ESPERANÇA (Herself)

Na linha dos dramas humanistas e da classe trabalhista de cineastas como Ken Loach e Mike Leigh, O LUGAR DA ESPERANÇA (2020), de Phyllida Lloyd, a diretora de A DAMA DE FERRO (2011), nos apresenta a uma mulher que procura reconstruir sua vida depois de sofrer agressão doméstica do marido. Saindo de casa com as duas filhas pequenas e sem dinheiro no bolso (e nem no banco), Sandra (Clare Dunne) tem a difícil tarefa de trabalhar em dois turnos (como faxineira e como garçonete) e cuidar das crianças, enquanto o marido busca prejudicá-la. Até que ela sabe da ideia de construir uma casa, ela mesma (o "herself" do título original). Para mim, que costumo ser bastante sensível ao drama de mães, há aqui muitos momentos que me provocaram lágrimas e emoção. Gosto também da escolha do final, da opção por um desfecho menos óbvio, e tão agridoce quanto recompensador, ainda que dolorido. O LUGAR DA ESPERANÇA fez parte da programação do Festival Filmelier.

terça-feira, maio 16, 2023

MISSÃO: MARTE (Mission to Mars)



Havia ensaiado a escrita de MISSÃO: MARTE (2000) no domingo pela manhã, mas estava tão mentalmente exausto que não consegui dar seguimento. Aliás, todo esse desgaste que de vez em quando eu trago para este espaço, como desabafo (na minha cabeça, como os leitores do blog diminuíram, eu até me sinto mais à vontade para escrever o que me der na telha), todo esse desgaste acabou fazendo com que eu jogasse a toalha. Cansei de trabalhar doente por semanas seguidas. Então, uma janela de atestado de três dias pode, quem sabe, me ajudar a recuperar minhas energias, até porque eu acabei piorando da gripe mais uma vez. Vamos de Brian De Palma, então.

MISSÃO: MARTE é um dos filmes mais estranhos de De Palma. Não estranho, estranho. Ou seja, não seria estranho se o diretor fosse outro. É estranho justamente por ser um filme "família", uma obra feita para a Disney, inclusive. O fato de o trabalho anterior do realizador ser uma obra bastante cínica (OLHOS DE SERPENTE, 1998) fez com que essa mudança para o extremo oposto deixasse muita gente perdida. Mas o incrível de De Palma é o quanto ele consegue imprimir sua assinatura autoral até em produções “de encomenda” milionárias, como foi o caso de MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996), seu filme mais bem-sucedido financeiramente.

MISSÃO: MARTE, por sua vez, custou uma fortuna (U$ 100 milhões) e não se pagou no mercado doméstico; só juntando com o arrecadado mundialmente que se pagou, algo considerado um fracasso para os executivos. E, como poderemos ver nos trabalhos seguintes, custou caro para o realizador em termos de facilidade/dificuldade de materialização de projetos. MISSÃO: MARTE, inclusive, já é uma produção conjunta com três países (França/Estados Unidos/Canadá). Além do mais, o próprio De Palma não queria trabalhar em produções tão cheias de efeitos como essa. 

O filme pegou muito crítico de surpresa e até hoje faz muita gente ficar sem entender o que aconteceu com o diretor para fazer um trabalho como este. Talvez o roteiro seja um pouco problemático, mas é tão bonito, mesmo assim. Foi uma delícia rever, pois, como não lembrava de nada, foi como se fosse inédito. Os minutos iniciais, com o incidente que atinge o primeiro grupo de astronautas em Marte, até fazem lembrar o De Palma que a gente conhece, com certo gosto pelo gore. Mas, depois, o tom de amor e de união dos personagens, sem um vilão ou uma figura paterna maligna ou um irmão maligno, faz com que se fique com a impressão que De Palma havia feito as pazes com o mundo e com sua família. A competição aparece agora de maneira amigável: o personagem de Gary Sinise gostaria muito de integrar a primeira expedição a Marte, mas por causa de fatores tristes (a morte da esposa) ele é substituído pelo personagem de Don Cheadle. Enquanto isso, há a imagem da felicidade do casal Tim Robbins/Connie Nielsen, que faz com que o protagonista (Sinise) tenha ainda mais saudades da falecida mulher.

As homenagens a 2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO são bem explícitas, visualmente e tematicamente, mas no meio do realismo da semelhança com o clássico de Stanley Kubrick, há, em vários momentos, um sabor das sci-fies ingênuas dos anos 1950, principalmente nas cenas em que os quatro principais astronautas estão procurando conhecer o terreno em que se encontram, já no quarto final. De Palma é também mestre em relembrar e homenagear clássicos do passado, não apenas de Alfred Hitchcock, como sabemos.

Talvez, mais importante do que falar mais uma vez sobre a relação de competitividade existente entre o jovem Brian De Palma e seus dois irmãos, talvez valha a pena falar um pouco sobre uma leve competitividade entre De Palma e seus dois amigos da Nova Hollywood, Steven Spielberg e George Lucas, que já haviam adentrado o terreno da ficção científica já nos anos 1970, com filmes como THX-1138 e GUERRA NAS ESTRELAS (Lucas) e CONTATOS IMEDIATOS DO TERCEIRO GRAU (Spielberg). Ou seja, os três eram fãs de ficção científica, mas só em 2000 De Palma pôde fazer sua ópera espacial, não sem homenagear o amigo Spielberg – tanto em MISSÃO quanto em CONTATOS, o protagonista fica com os extraterrestres no final.

O filme ainda conta com uma bela trilha do mestre Ennio Morricone (ainda que não tão antológica como a de OS INTOCÁVEIS, 1987) e uma fotografia lindona de Stephen H. Burum, que havia trabalhado nos filmes anteriores de De Palma. Entre outras curiosidades sobre o filme, vale lembrar que o diretor cotado para dirigir a produção era Gore Verbinski (O CHAMADO) e é curioso como, mesmo assim, De Palma chega e imprime sua marca, como se o projeto fosse sempre seu. Outra curiosidade é mais uma lembrança da época em que filmes com temas parecidos se esforçavam para chegar antes: o filme de De Palma conseguiu chegar aos cinemas antes de seu rival, PLANETA VERMELHO, de Anthony Hoffman.

MISSÃO: MARTE é um filme sobre laços familiares e visão espiritual que tem tudo a ver com o momento por que De Palma estava passando. Seu irmão Brian, que havia sido “tema” de quase todos os seus filmes, no papel de antagonista, havia morrido em 1997, depois de viver anos em paranoia numa ilha na Nova Zelândia. E em 1998, seria a vez de De Palma perder sua mãe. O novo filme trata da questão desses laços, do quanto o DNA é representativo de nossa herança na Terra. A mãe segue existindo no filho, enquanto esse filho segue existindo na filha dele, representada em algumas cenas do filme. Uma pena que o tom mais idealista não tenha sido tão bem aceito, pois me parece bastante sincero e emotivo.

+ TRÊS FILMES

TREMOR IÊ

É estranho só ver TREMOR IÊ (2019), de Lívia de Paiva e Elena Meirelles, agora, depois de ter visto MATO SECO EM CHAMAS, de Adirley Queirós e Joana Pimenta, já que são filmes que guardam algumas semelhanças muito curiosas, especialmente no modo como fazem uma opção por mostrar uma realidade alternativa (uma distopia) protagonizada apenas por mulheres. Além do mais, ambos os filmes possuem cenas longas com diálogos (na verdade, monólogos) com mulheres de origem simples saídas da prisão e prestes a enfrentar o mundo agora povoado por opressores "do bem", com polícia "do bem" que chama as pessoas de "irmãos" e "irmãs" e um ditador de sobrenome Cunha, talvez inspirado no presidente da Câmara da época em que o filme foi rodado (perto de 2015). Se o filme cearense não tem a mesma força da produção brasiliense, talvez isso se deva em parte à produção muito mais modesta. O despojamento é o lema em praticamente todos os sentidos. Exceto talvez pelas opções dos textos dramáticos, que ora optam por um naturalismo, ora trazem uma espécie de declamação. Gosto muito da cena final e fiquei torcendo para que ela demorasse mais um pouco.

UM JÓQUEI CEARENSE NA COREIA

Guto Parente é certamente um dos melhores cineastas cearenses da atualidade. Meu filme favorito dele segue sendo O CLUBE DOS CANIBAIS (2018), mas é interessante conhecer essa experiência do realizador com o documentário, que, diferente da ficção, é mais dependente do acaso para alcançar a excelência. UM JÓQUEI CEARENSE NA COREIA (2022) possui bons personagens e um estilo de profissão pouco abordada em nossos filmes. Mas o que Parente faz, junto com Mi-kyung Oh, é falar sobre o estado de espírito de quem sente falta do local de origem. A cena de Antônio conversando com os amigos e falando sobre o que realmente importa para ele não deixa de carregar um ar de melancolia, por mais que o filme seja acompanhado de inúmeras sequências divertidas e leves.

LAVRA

É o tipo de filme necessário. Quando vi as reportagens de televisão sobre os crimes terríveis ocorridos em Mariana em 2015 e Brumadinho em 2019 achei que logo viriam vários filmes sobre o assunto. Acabei não vendo esses filmes (talvez só alguns curtas), o que vejo como um grande problema. E isso é tudo o que os caras das mineradoras querem: que as pessoas esqueçam o que aconteceu. E como vivemos num país que vive de contabilizar absurdos e tragédias a cada dia (principalmente nos quatro últimos anos do governo Bolsonaro), filmes como este, para nos fazer lembrar e acordar para o que ocorre em Minas Gerais, são essenciais. LAVRA (2021), de Lucas Bambozzi, acompanha uma mulher (Camila Mota) que viaja para o lugar onde aconteceu o primeiro desastre (o de 2015) e acaba testemunhando o desastre/crime de 2019 também, conversando com as vítimas e pessoas afetadas com a mineração, assim como com pessoas de luta.

sábado, maio 13, 2023

A MORTE DE UM BOOKMAKER CHINÊS (The Killing of a Chinese Bookie)



Em 2013/14, comecei a ver os filmes de John Cassavetes em ordem cronológica, enquanto lia o livro John Cassavetes – The Adventures of Insecurity, de Ray Carney. E estava muito gostoso fazer esse trabalho. Mas sinceramente não sei o motivo de eu ter interrompido essa peregrinação após ter visto UMA MULHER SOB INFLUÊNCIA (1974), um de seus melhores (e mais incômodos) filmes. Será que foi por causa desse aspecto incômodo? Não creio. Enfim. Meu retorno (por ora, pelo menos) à filmografia do pai do cinema independente americano se deu por vias indiretas, já que recebi como encomenda a escrita de um ensaio sobre CANASTRA SUJA, o ótimo filme de Caio Sóh, e, enquanto lia alguns textos a respeito sobre o estilo do filme e do diretor brasileiro, muitas vezes via comparações com o estilo de Cassavetes. Ora, naturalmente, precisaria entrar em contato, nem que fosse por algumas horas com o cinema do diretor nova-iorquino.

E chego ao A MORTE DE UM BOOKMAKER CHINÊS (1976), seu filme supostamente policial ou noir, embora percebamos que Cassavetes faz o possível para fugir das amarras do gênero, mui respeitosamente. Algo totalmente esperado, levando em consideração seu espírito livre e seu olhar inquietante. Não foi um filme que eu vi com prazer, talvez por ter me esquecido do estilo muito particular do diretor, mas certamente foi um filme que foi crescendo na memória afetiva à medida que pensava nele, após passar pela experiência tortuosa de Cosmo Vitelli (Ben Gazzara), o dono de um clube de strip-tease que procura não perder a pose nem nas piores circunstâncias.

O filme se demora muito no universo de Cosmo, primeiro ao vermos o protagonista num café, negociando com outros homens, a câmera trabalhando com o extracampo e a tremida denunciando a falta de um tripé como opção estética. Depois disso somos convidados a conhecer seu clube, cujas apresentações parecem brincadeiras sem ensaio em que um homem velho, vestido de forma estúpida, procura fazer graça para um público que quer mesmo é ver as moças que logo exibirão seus seios em trajes mínimos enquanto dançam como se pertencessem a um bar de décadas passadas. O bar de Cosmo, que sobrevive ao lado de cinemas que exibem filmes pornôs, parece uma espécie de resistência ao caráter explícito, parece querer trazer até um pouco de inocência, apesar de tudo. Outra característica que pode incomodar um pouco a plateia é a iluminação escura do lugar. O interesse de Cassavetes é emular um lugar daqueles.

Nessa brincadeira com o filme noir, vemos, depois de muito tempo de cenas na boate e da relação de Cosmo com suas dançarinas (uma delas, uma espécie de namorada, ou algo parecido), algo próximo a um plot, quando o herói é “convidado” a matar um homem para quitar sua dívida de jogo. Engraçado que isso é geralmente tido como a sinopse do filme, mas acontece lá pela metade da duração relativamente longa desse corte inicial, de 1976 – o corte de 1978, que não vi, procurou se recuperar do fracasso comercial do filme, cortando várias cenas.

A MORTE DE UM BOOKMAKER CHINÊS é uma obra que parece construída de forma diferente de filmes com roteiro de ferro, e essa cara de improvisação nos chama para ver o filme e não a trama. E nos convida a acompanhar a trajetória desse homem que parece querer viver apenas o presente. A fotografia, quase sempre escura, deixa no ar essa sensação de que algo muito sombrio e desconfortável está no ar desde os instantes iniciais. Impressão confirmada especialmente próximo a sua conclusão. Grande momento de Cassavetes, grande momento de Gazzara.

Enfim, espero que a continuação de minha jornada pelo cinema do diretor não demore tanto assim. Afinal, sua filmografia contém poucos títulos.

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O DEMÔNIO DAS ONZE HORAS (Pierrot le Fou)

Terceira vez que vejo O DEMÔNIO DAS ONZE HORAS (1965), de Jean-Luc Godard, e esta terceira é a que vale. A primeira foi em 2002, num telão horroroso, com projetor ruim, depois em 2006, numa cópia relativamente boa em divx, e agora sim: no glorioso cinema, DCP 2K. Toda a beleza da fotografia em cores vivas de Raoul Coutard fica evidenciada, assim como a exuberância de Anna Karina em sua sexta parceria com Godard neste filme que brinca com o gênero criminal, mas enfatizando a diferença evidente do casal de amantes vividos por Karina e Jean-Paul Belmondo. Ele, muito ligado às artes, em especial a literatura e os quadrinhos, e ela muito mais ligada ao mundo, aos sentidos, às emoções. Ela mais musical, ele mais cerebral, como se arquétipos do masculino e do feminino. Godard homenageia Samuel Fuller, quebra a quarta parede, deixa-nos perceber que os atores estão se divertindo com as cenas de ação, mostra o assassinato como algo leve dentro da perspectiva de alguém que está loucamente apaixonado e sai pelo mundo (e dentro de um filme e não na realidade), fugindo de tudo para construir uma nova vida. Diálogos afiados, imagens lindas, espirituosidade singular em um Godard muito bem-humorado e feliz.

CÂMERA DA ÁFRICA (Caméra d'Afrique)

Achei estranho o documentário CÂMERA DA ÁFRICA (1983), de Férid Boughedir, não incluir MANDABI, de Osmane Sembene, neste interessante e necessário estudo e reflexão sobre os primeiros anos de cinema africano. O filme me fez lembrar um pouco, em estrutura, os documentários do Scorsese sobre os cinemas americano e italiano, mas com menos paixão e mais indignação e vontade, levando em consideração toda a história de exploração, violência e morte sofrida pelos países africanos por parte dos colonizadores. Ainda assim, o que temos é a apresentação de alguns filmes muito interessantes, com destaque para o hoje canonizado TOUKI BOUKI – A VIAGEM DA HIENA, de Djibril Diop Mambéty. Há também o caso muito particular da Nigéria, que optou por fazer filmes populares de modo a enfrentar com mais eficiência o cinema americano e europeu nas salas. Como se trata de um documentário de 1983, fiquei muito curioso para saber a continuação, o que aconteceu nos anos seguintes na África. Infelizmente, já sei de antemão que o progresso popular não foi tão visível assim no Brasil.

A CASA DA ESCURIDÃO (Madhouse / There Was a Little Girl)

Um dos pontos positivos deste A CASA DA ESCURIDÃO (1981) é fugir um pouco dos tradicionais slashers produzidos nos Estados Unidos na época. Trazer um diretor italiano para filmar com atores americanos sem saber falar inglês e sem explicar o que está acontecendo para os atores acaba trazendo um resultado curioso. Ovidio G. Assonitis (ESPÍRITO MALIGNO, 1974) parece rodar este filme sem roteiro e sem saber direito o que fazer. O clima de improviso fica bastante acentuado. Na trama, uma jovem mulher fica ainda mais atormentada ao saber que sua irmã louca fugiu do hospício. Enquanto isso, a figura dessa irmã, desfigurada, e com um cachorro como principal arma para atacar os amigos da protagonista, começa a ser o principal elemento do mal, pelo menos até a reviravolta perto de uma hora de projeção. Em alguns momentos, o filme respira de maneira diferente, dando mais tempo para o espectador se apegar à atmosfera. Não funcionou comigo, mas é possível que funcione com outros tantos entusiastas do filme. Visto no box Slashers XIII.

sexta-feira, maio 12, 2023

A RAPOSA CINZENTA (The Grey Fox)



Que dias difíceis esses. Estresse no trabalho e constante queda na imunidade, com gripes me pegando todas as semanas e me dando uma sensação de tristeza e de revolta. Chego do trabalho às vezes com vontade de chorar, embora o choro não venha – e talvez isso seja ruim também, pois as emoções ficam represadas. Vejo o monte de filmes que gostaria de ver, inclusive na estante ou perto da televisão, em formato de mídia física, um monte de livros e quadrinhos que me esperam, e que não encontram brecha neste atual momento.

Vendo meus trânsitos astrológicos atuais, vejo que uma lua progredida em quadratura com o sol indica perigos de descontentamento crônico, que durará até o mês de agosto. Ou seja, preciso ver se esse meu mal-estar é algo passageiro e optar sempre por respirar fundo e procurar manter o bom humor, não importando de que jeito. Além disso, há outro trânsito de lua progredida em oposição a Urano, indicando estresse até julho. Enfim, fui revisar esses trânsitos em busca de respostas para esse atual momento e acho que fazem sentido e de certa forma isso me deixa um pouco mais conformado. Observação: não sou astrólogo: peguei isso do site Personare. 

Enfim, no domingo, chegando de um passeio (acho que forcei a barra, escolhendo uma praia como programação com minha namorada), me vi gripado novamente e exausto. Mesmo assim, fui tentar escolher um filme que talvez não requeresse tanto de minha mente cansada. Costumo pegar slashers, às vezes, mas sei que faroestes também funcionam muito bem como narrativa de conforto. Geralmente funciona como uma espécie de fuga do mundo contemporâneo e o western é um gênero que conseguiu transcender o filme histórico, criando suas próprias regras e seu próprio universo, embora, claro, muitos diretores tenham conseguido, com habilidade, transgredir algumas dessas regras ou adicionar novos elementos.

Tudo isso para dizer que escolhi A RAPOSA CINZENTA (1982), de Phillip Borsos, presente no box Cinema Faroeste Vol. 11, da Versátil Home Video. Lembro que, numa edição antiga da revista SET, o filme foi um dos destaques da sessão de videolançamentos (no tempo do VHS). Porém, ou nunca achei em locadoras ou nunca me interessei suficientemente para vê-lo, a ponto de fazer uma busca pela cidade. Eis que chegou o dia.

Para quem é fã de David Lynch, o filme traz de cara um atrativo: a presença de Richard Farnsworth (HISTÓRIA REAL), já com mais de 70 anos de idade e com olhos e rosto marcado magnéticos o suficiente para ser o ladrão cavalheiro que o filme pedia. Os olhos azuis e o sorriso sereno são marcantes. É fácil se solidarizar e torcer pelo sucesso nos negócios de seu personagem, Bill Miner, um dos maiores assaltantes de carruagens do século XIX, que foi libertado da prisão após 33 anos e descobre que quer continuar fazendo aquilo de que gosta, aquilo que sabe, naquele início de século XX. Ao que parece o filme procura tornar o ladrão muito melhor e agradável do que realmente foi, mas é do filme que estamos falando.

A RAPOSA CINZENTA é um desses filmes que nascem como um milagre. O diretor só havia feito três curtas, mas queria apresentar uma obra essencialmente visual, com poucos diálogos. E conseguiu muito bem, ainda levando consigo o talentoso diretor de fotografia Frank Tidy (de OS DUELISTAS) para fazer quadros vivos lindos com locomotivas, pessoas em movimento e a paisagem fria do Canadá.

Além do mais, há ainda algo que aconteceu meio que acidentalmente nas filmagens, que foi uma maior ênfase no romance que o velho protagonista tem com uma fotógrafa feminista (Jackie Burroughs), um desses romances de dar gosto de ver. E por isso a terceira parte do filme nos deixa tão aflitos. Os executivos, inclusive, estranharam o fato de um western dar tanto peso ao romance, mas nas sessões de teste, notou-se que se estava diante de uma obra que agradaria homens e mulheres, e isso acabou sendo usado na publicidade.

Adoro uma cena em que Bill Miner pergunta à futura namorada o porquê de ela estar ali naquele lugar, onde não havia nada de interessante para fotografar, e ela diz que há sim, que aquele lugar está em estado de mutação e que há muita beleza e desespero. Adorei o modo como ela alia essas duas palavras, como se quisesse dar uma definição para a própria vida.

A RAPOSA CINZENTA é tido como um dos mais importantes westerns crepusculares, embora hoje não seja tão famoso. O próprio diretor hoje é um tanto esquecido por muitos – o fato de ter morrido jovem não ajudou também. Mas é preciso resgatar o filme, torná-lo um pouco mais popular. Inclusive, o andamento cadenciado deve agradar aos fãs de filmes mais arthouse.

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MICKEY ONE

Fico imaginando o público americano entrando no cinema para ver MICKEY ONE (1965) achando se tratar de um suspense, ou um filme com muito romance, e dá de cara com essa obra quase impossível de compreender do mundo de vista da narrativa. Achei cansativo acompanhar o personagem de Warren Beatty fugindo o filme inteiro, sem sequer saber o motivo. Há os simbolismos que Penn e o próprio Beatty pensam do filme, como abordar o macarthismo de forma cifrada, mas a verdade é que MICKEY ONE está mais para um exercício de rebeldia do diretor, que vinha de momentos desagradáveis na relação com as produtoras e acaba conseguindo rodar esse filme muito barato e com a presença do jovem Beatty, que só aceitou participar pela vontade de trabalhar com Penn, já que não gostava do roteiro. MICKEY ONE é um filme quase tão importante quando BONNIE E CLYDE – UMA RAJADA DE BALAS (1967), mas não fez o mesmo sucesso e por isso não é visto como marco da Nova Hollywood quanto seu primo mais rico. Inspirado na nouvelle vague francesa, o filme parece uma espécie de derivado do derivado, o que não deixa de ser interessante e de trazer uma experiência bem curiosa para o espectador que se dispõe a vê-lo. Visto no box A Arte de Arthur Penn.

DEIXEM-NOS VIVER (Alice’s Restaurant)

Vendo DEIXEM-NOS VIVER (1969) é possível pensar na filmografia de Arthur Penn como a de alguém que se sensibiliza com os rebeldes, com aqueles que encaram com coragem o sistema. Depois de BONNIE E CLYDE – UMA RAJADA DE BALAS (1967), o diretor resolve dirigir uma outra história real, mas agora de alguém que está vivo e que interpreta a si mesmo, o cantor e compositor de música folk Arlo Guthrie, que, com seu sorriso no rosto o tempo todo, simboliza o tom leve que o filme se propõe, mesmo tratando de questões dramáticas pesadas, como o uso de drogas injetáveis, ciúme gerado por um tipo de amor mais livre dentro da comunidade hippie e questões sócio-políticas que o país estava enfrentando no momento, como a guerra do Vietnã e a disposição da sociedade conservadora de agir com agressividade com hippies e pessoas pretas. Senti falta de uma simpatia maior de minha parte com os personagens, mas acredito que esse distanciamento faz parte do estilo adotado pela Nova Hollywood naquele momento. Além do mais, Penn não busca um naturalismo nas interpretações e sim um tipo de liberdade que entre em sintonia com o estilo de vida do grupo. Filme visto no box A Arte de Arthur Penn.

O PASTOR E O GUERRILHEIRO

A gente percebe que está velho quando o que vivenciamos com muita intensidade, a virada do milênio, agora parece um momento longínquo. O PASTOR E O GUERRILHEIRO (2022), novo trabalho de José Eduardo Belmonte, se passa em dois momentos paralelos: 1973 e 1999. A personagem de Julia Dalavia (atriz mais conhecida por seus trabalhos na televisão) é a filha de um coronel que trabalhou como torturador para a ditadura civil-militar brasileira e que é chamada para receber a herança do falecido genitor. Na casa desse pai com quem ela não conviveu, a jovem encontra o livro de um homem que combateu na batalha do Araguaia (Johnny Massaro, sempre ótimo) e é desse momento da vida do jovem de esquerda que o filme nos leva para os anos de chumbo. Curiosamente, o filme trata esse personagem como alguém próximo à figura de Jesus crucificado, algo que poderia, inclusive, ter sido explorado com mais profundidade no filme. Um dos momentos mais bonitos é o debate filosófico entre os dois personagens do título, que passam a conviver na prisão e a estabelecer uma relação de amizade. O amigo evangélico ouve o que o guerrilheiro tem a dizer sobre a proximidade do comunismo marxista com Jesus. Também gosto muito da última cena na igreja, com um belo, tocante e respeitador sermão do pastor, agora um homem maduro. O filme melhora da metade para o final e talvez o ponto fraco esteja nos elos, ou seja, nas cenas com a personagem de Dalavia e de seu namorado, ou dela com a avó (Cássia Kis). Mas mesmo algumas cenas com a jovem trazem momentos ricos para discussões. Uma pena que a única sala que exibe o filme em Fortaleza tem uma projeção tão ruim que a fotografia é um verdadeiro breu, principalmente as cenas noturnas na floresta.

sábado, maio 06, 2023

GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3 (Guardians of the Galaxy Vol. 3)



Acho que os executivos da Marvel devem estar num misto de alegria e tristeza com o lançamento de GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3 (2023). Alegria por estarem lançando finalmente um material de ótima qualidade, com um trabalho de direção, roteiro e efeitos visuais de dar gosto em meio a tantos filmes do estúdio que decepcionaram ou causaram tanto revolta quanto desânimo entre os fãs, o que pode significar diminuição no número de futuros espectadores; tristeza, por estarem perdendo James Gunn para a concorrente, que agora se dedicará à criação do universo compartilhado da DC Comics, a partir do próximo ano.

Quanto a mim, o terceiro filme dos heróis menos improváveis do universo Marvel no cinema me pegou como os outros dois não havia conseguido. Na verdade, tenho até pouca lembrança dos outros e vou ter mais tarde que refrescar um pouco a memória nos registros aqui do blog sobre eles. Mas, afinal, o que este terceiro filme tem que os outros não têm? Tem uma perfeita união de drama e comédia e tem uma capacidade de nos deixar interessados e temerosos pelos destinos finais de seus personagens. 

E isso começa de maneira muito bonita e triste com as primeiras imagens, de Rocket Raccon (voz de Bradley Cooper), com olhos marejados, escutando “Creep”, do Radiohead, em versão acústica, no ipod de Peter Quill (Chris Pratt), que por sua vez chora e bebe feito um gambá pela falta de sua amada Gamora (Zoe Saldana). Mas não tiremos o foco de Rocket. Este terceiro filme é o que mais nos leva às profundezas das memórias dolorosas do pequeno e peludo herói. Nascido um guaxinim, ele foi transformado numa criatura antropomórfica pelo Alto Evolucionário (Chukwudi Iwuji) – desde já um dos melhores e mais complexos vilões já apresentados no MCU. E ver esses flashbacks de Rocket é bastante doloroso para o espectador, já que lida com maldade humana versus construção de vínculos de amizade em meio à tortura e à privação de liberdade.

Aliás, é muito curioso como, dentro de filmes que são lembrados pelo humor, temos personagens com traumas pesados. E só agora isso vem à tona com força, já que este terceiro filme tem a intenção de ser uma clara despedida. E é justamente por sabermos disso que cresce uma apreensão pelo destino de seus personagens. Inicialmente de Rocket, que é seriamente alvejado por Adam Warlock (Will Poulter), personagem muito importante para mim na infância, quando tive contato com suas histórias escritas por Jim Starlin, lançadas pela Editora Abril em formatinho no mix Heróis da TV – sim, falar da Marvel é encher o texto de hipertextos e perder o foco do que se estava falando antes.

Enfim, podemos voltar ao começo do filme, com Rocket ouvindo “Creep” (canção poderosíssima e tristíssima) e para os instantes em que somos apresentados àquele espaço que parece ser a atual casa dos Guardiões da Galáxia, onde vivem outros seres apresentados em filmes anteriores. Também somos lembrados nesses instantes iniciais no quanto todos ali se amam e se cuidam. Há dois heróis na equipe que representam com muita força esses papéis materno e paterno, geralmente não associados a uma inteligência mais racional, mas a um tipo de poder amoroso incrível. São eles Drax, o Destruidor (Dave Bautista) e Mantis (Pom Klementieff). À medida que o filme vai se desenvolvendo, esse sentimento de amor entre eles vai contaminando a audiência. Vejo isso como um acerto e tanto de Gunn, um cara que sabe unir humor, violência, ação e drama em doses certas.

GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3 pode até não ser um filme perfeito. A gente sente que houve um problema na montagem para o filme não passar de duas horas e meia. Senti isso especialmente na cena do reaparecimento de Gamora. Ela se junta à equipe de maneira muito brusca e claramente tesouraram cenas. Ainda assim, os pontos positivos do filme se sobrepõem aos problemas. Como não ficar encantado com a cena em que o grupo veste trajes espaciais para chegar até uma nave inimiga? A cena é de encher os olhos e nem o escuro das lentes dos óculos 3D conseguiu tirar o brilho dela (e do filme, no geral, eu diria – está longe, por exemplo, do breu que foi a experiência de ver PANTERA NEGRA – WAKANDA PARA SEMPRE). Percebe-se um interesse em Gunn em fazer uma obra o mais próximo da perfeição no que se refere a grandes aventuras espaciais.

No mais, há o bom uso das canções pop, das mixtapes, um conceito já abraçado desde o primeiro filme e que tanto serve para incluir canções ótimas em cenas e criar um vínculo emocional maior com o espectador, quanto nos lembrar do presente que é a música do planeta Terra, trazida por Peter Quill, para aqueles heróis. Fiquei feliz, por exemplo, ao ouvir “We care a lot”, do Faith No More, com aquele baixozão poderoso. E há um monte de canções pouco óbvias que podem servir como apresentação para muitos. Canções de Alice Cooper, Bruce Springsteen, The The, Heart, Rainbow, Earth, Wind & Fire, The Flaming Lips, Florence + the Machine etc.

Então, o que temos em GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3 é uma bem-sucedida junção de drama e comédia, momentos bastante sombrios com outros cheios de luz, o amor vencendo o mal, mas não sem deixar aquele gosto ligeiramente amargo no final, como se a dança dos personagens funcionasse mais como uma luta contra a depressão do que uma celebração de fato. Essa complexidade de sentimentos traz, a meu ver, mais pontos a favor para o filme, que até ajuda um pouco a compensar a sua conclusão com excesso de fofura, como que herdeira de O RETORNO DE JEDI. Finalmente temos o melhor filme da Marvel desde VINGADORES – ULTIMATO

+ TRÊS FILMES

TILL - A BUSCA POR JUSTIÇA (Till)

Há filmes que são necessários por sua temática. E é o caso de TILL - A BUSCA POR JUSTIÇA (2022), de Chinonye Chukwu, que conta a história de uma mãe procurando, em 1955, lutar para condenar os assassinos de seu filho adolescente, linchado no Mississipi. A história dos Estados Unidos é cheia dessas manchas e infelizmente isso não se tornou coisa do passado, já que há um monte de neonazistas em atividade na chamada "terra da liberdade". Um dos pontos fortes deste filme é a força da interpretação de Danielle Deadwyler, atriz que até então desconhecia, mas que me deixou muito impressionado. Há uma cena que considero o ponto alto do filme, quando se vê um super-close dos olhos dela, seguido da imagem do trem que traz o caixão de seu filho, e o choro de dor, logo em seguida. Grande momento, que deve mesmo ser assim, derramado de lágrimas e de dor. E há outros muito bons, inclusive na parte dedicada ao tribunal, que foge do padrão justamente por se passar num estado altamente racista e antes das lutas por direitos civis da década seguinte. Mamie Till foi uma das precursoras dessa luta e por isso sua história merece ser conhecida. Nada como o cinema para popularizar as histórias.

NADA DE NOVO NO FRONT (Im Westen Nichts Neues)

Impressionante filme antibélico este NADA DE NOVO NO FRONT (2022). Um dos mais bonitos e bem cuidados dos últimos anos. Há um cuidado com as imagens, com a beleza da paisagem que contrasta com o horror da guerra, mostrada com toda a crueldade; há um cuidado com a trilha sonora, que antecipa as desgraças que os jovens recrutas verão logo que chegarem às trincheiras. Há um cuidado com os atores, em especial o estreante Felix Kammerer, que faz o soldado Paul. É através dele que somos levados à guerra, no que há de pior, principalmente, mas também aos momentos de breve trégua e alegria, como quando roubam um ganso e fazem uma bela e deliciosa refeição entre si. O diretor Edward Berger não nos poupa das cenas gráficas, das lutas corpo a corpo, das mortes às vezes duras de serem finalizadas, da crueldade dos generais. E há o momento em que ficamos aguardando o armistício, que é muito cruel. Milhares de jovens morrem enquanto os alemães decidem a rendição. Uma das grandes produções de 2022, sem dúvida.

PACIFICTION

Nem todo cineasta é capaz de dilatar o tempo. Albert Serra consegue com PACIFICTION (2022). O problema é que a experiência de ver um filme dele, em geral, é dolorosa, e seus personagens são incrivelmente chatos. A começar pelo protagonista, vivido por Benoît Magimel (ENQUANTO VIVO), um homem que representa o estado, ou seja, a França, naquelas paradisíacas ilhas da Polinésia francesa. Albert Serra parece querer fazer seu público passar por algum tipo de prova, de ter que aguentar mais de uma hora até entregar o que parece ser uma espécie de anti-thriller, anti-filme de gênero. Acho que o que eu mais gosto são as cenas noturnas, especialmente no mar, próximo do final, ou na praia, quando se instala uma espécie de tensão, embora seja uma tensão ligeiramente afastada do suspense. Até mesmo quando o filme traz momentos de deslumbramento visual o faz com um ar de apatia ou enfado. Mesmo com as tensões seríssimas apresentadas, o personagem de Magimel parece estar sob efeito de sedativo. Incomodou-me também a fotografia digital que me fez lembrar de MIAMI VICE, de Michael Mann, embora sem a mesma textura e optando por encobrir os personagens e as paisagens com uma baixa luminosidade, o que passa a impressão de que é problema da cópia ou da projeção. E isso é tão desagradável quanto irritante. Pode ser questão de se acostumar com a proposta visual e narrativa, para então passar a apreciá-lo. Mas não deu pra mim.