sábado, maio 27, 2023

A CIDADE DOS ABISMOS



Na última quarta-feira, saí de casa à noite para ver a sessão das 20h de A CIDADE DOS ABISMOS (2021), de Priscyla Bettim e Renato Coelho, obra bastante exaltada por vários críticos amigos e respeitáveis como um dos melhores lançamentos deste ano. O filme chegou a ser visto durante um festival online no segundo ano de pandemia, mas não cheguei a vê-lo na ocasião. E de certa forma isso foi muito bom, pois ter a oportunidade de ver no cinema faz toda a diferença. As imperfeições (por assim dizer) das imagens ficam mais nítidas e belas.

Chegar ao Cinema do Dragão numa quarta-feira à noite pode ser uma experiência quase assustadora para quem não está acostumado a frequentar o espaço. A praça está tomada por moradores de rua e cachorros, os bancos estão todos quebrados, assim como os ladrilhos, e há pouca gente circulando, o que dá um ar de abandono e de decadência que trouxe uma sintonia especial para o filme, ambientado na noite de uma São Paulo habitada por pessoas marginalizadas. Além do mais, estava com o coração aflito por causa de uma situação pessoal, mas fazia questão de vivenciar tudo que a vida pudesse me proporcionar.

Ao optar pela película e pela simulação de filme antigo (alternando entre 35mm, 16mm e Super-8), percebemos um tipo de textura que nos remete tanto às experiências de frequentar antigos cinemas de rua de décadas atrás, quanto de ver filmes brasileiros em qualidade sofrível, pois infelizmente ainda temos uma dívida imensa com nosso cinema do passado que, felizmente, segue vivo no presente em uma belezura vanguardista como esta. Em alguns momentos, lembrei-me da experiência de filmes urbanos de Jean Garrett (TCHAU AMOR, O FOTÓGRAFO), talvez por tê-los visto nas opções em baixa resolução, mas também por causa da presença da cidade de São Paulo, pela ambientação noturna e pela dor de seus personagens.

No entanto, é bom deixar claro que A CIDADE DOS ABISMOS deixa de lado o erotismo de clássicos do cinema paulistano dos anos 1970/80. Nesse sentido, talvez se aproxime mais do cinema mais experimental produzido nos anos 1960/70, de gente do cinema marginal, como Andrea Tonacci, Carlos Reichenbach e Rogério Sganzerla. Na verdade, fazer comparações com cineastas e décadas específicas do cinema brasileiro é inglório, pois o filme de Bettim e Coelho é quase um inventário da história de nosso cinema, inclusive, trazendo uma homenagem explícita a LIMITE, de Mário Peixoto.

Ver A CIDADE DOS ABISMOS é também se equilibrar entre o esforço de enxergar nas sombras e nas imagens de baixa resolução e de se sentir confortável com essas imagens, com suas cores, seus arranhões. Isso porque, dentro do experimentalismo, há também uma história de certa forma linear sobre três personagens que estiveram presentes durante o assassinato de uma jovem mulher e que passam a viver o luto e a certeza de que são pessoas rejeitadas pelo sistema. Temos um filme sobre solidão, amizades e amor, na acepção maior do termo, vide a participação especial do Padre Júlio Lancellotti, em cena muito tocante.

Os diretores fogem de uma abordagem naturalista e vez ou outra o filme adquire tons lynchianos, como nas vezes em que Arrigo Barnabé toca teclado ou dialoga com uma das personagens. Nem sei se David Lynch foi uma inspiração direta dos diretores, mas senti uma conexão, sim. Inclusive pelo convite a adentrarmos à penumbra da noite e da alma humana, também na tradição do cinema de Walter Hugo Khouri. Ou seja, entrei para ver um filme novo e acabei vendo um objeto tão estranho quanto perdido em seu tempo, para satisfação de minhas preferências cinéfilas que geralmente buscam as profundezas, o mistério e os sentimentos indecifráveis.

A CIDADE DOS ABISMOS é o primeiro longa-metragem de Bettim e Coelho, sendo seu primeiro filme um curta-metragem chamado A PROPÓSITO DE WILLER (2016), sobre o poeta Cláudio Willer, que comparece em participação especial. Próxima missão: ver se esse curta está disponível na internet.

+ TRÊS FILMES

DOS 3 AOS 3

Apesar da simplicidade da ideia, o resultado é encantador. Eu, pelo menos, não havia visto um filme que se detivesse tanto assim na primeira infância. Há o diferencial de trazer uma experiência que uma mãe faz com seu filho de poucos meses. A ideia é usar a abordagem Pikler a fim de ver a evolução da criança, de modo a torná-la o mais autônoma possível para sua idade. E faz sentido esse experimento ser feito através do cinema, já que se trata de uma arte que utiliza a observação desde seus primórdios. Confesso que não achei que fosse tão interessante acompanhar a evolução de uma criança pelas lentes de uma câmera. Em certos momentos, até se instalam pequenos suspenses: será que o bebê vai se machucar?, será que ele vai cair? Ver DOS 3 AOS 3 (2023), de Bianca Bethonico e Pablo Lobato, é também uma ótima oportunidade de refletir sobre essa fase da vida que geralemente costuma ser esquecida por quase todas as pessoas, mesmo sendo ela tão basilar.

O HOMEM CORDIAL

Um dos vários filmes que foram prejudicados pela pandemia, este O HOMEM CORDIAL (2019), que contou com exibição e premiação para trilha sonora e ator (Paulo Miklos) no Festival de Gramado, faria mais barulho se lançado durante o governo Bolsonaro, já que traz uma visão controversa da polícia. Há uma cena em que o personagem de Miklos adentra o bar administrado por seu ex-parceiro de banda vivido por Thaíde, e se questiona sobre um suposto sensacionalismo envolvendo atos homicidas por parte de policiais. Thaíde diz que adoraria ver o mundo sob a ótica tão bonita de um branco, como ele. Um dos méritos do filme é nos deixar ainda mais confusos que o personagem de Miklos, o cantor de uma banda punk que começa a ser "cancelado" por alguma coisa envolvendo o assassinato de um policial. Tanto a situação como as imagens às vezes se veem embaçadas. E a câmera na mão, nervosa, ajuda a contribuir para esse mal estar, embora também seja um aditivo para o caráter de tensão e de suspense ao longo da peregrinação do protagonista pela noite da cidade grande. Mesmo quem não entrar na viagem do diretor Iberê Carvalho (O ÚLTIMO CINE DRIVE-IN, 2015), certamente vai curtir a performance brilhante de Miklos.

ANDANÇA - OS ENCONTROS E AS MEMÓRIAS DE BETH CARVALHO

O cinema brasileiro tem prestado um excelente serviço de preservação e valorização da música brasileira. Desde os anos 2000 que a quantidade de documentários sobre artistas relacionados à nossa música só cresce. O curioso ANDANÇA - OS ENCONTROS E AS MEMÓRIAS DE BETH CARVALHO (2022), de Pedro Bronz, é que a maior parte de suas imagens foi gravada pela própria cantora ao longo de muitos anos. O que o filme faz é juntar essas imagens, dispostas de maneira livre, sem seguir uma ordem cronológica amarrada, à história de vida pessoal, mas principalmente profissional da sambista. O que logo me encantou de cara foi sua aproximação com Nelson Cavaquinho e Cartola, dois verdadeiros poetas da nossa música. Tanto que tudo que vem a seguir, no quesito parcerias, deve deixar mais entusiasmado os fãs do samba e do pagode. Costurando a história da cantora, há a história política do Brasil, em especial na campanha das diretas já, quando ela teve participação decisiva. No mais, como não sabia de detalhes de seus últimos dias de vida, fiquei comovido com a cena de um de seus shows finais.

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