segunda-feira, março 11, 2024

OSCAR 2024



Foi a melhor cerimônia do Oscar em muito tempo. Ainda vejo muita gente reclamando de uma coisa ou de outra, e talvez essa impressão tenha vindo do gosto ruim que o Oscar 2023 trouxe, especialmente pela premiação daquele filme de nome comprido que acho melhor até esquecer. Agora foi diferente. A raiva que eu tive foi mais do ponto de vista técnico, pessoal: não conseguia assistir à premiação pela MAX através da minha televisão sem pausas constantes no streaming. Muito irritante. E é um problema que preciso ainda resolver - pena que assinei essa joça por um ano. Ainda bem que deu certo ver pelo computador e usar o cabo HDMI. Melhor do que nada, ainda que isso significasse menor qualidade de imagem.

Mas falemos das coisas legais que a cerimônia trouxe. Posso começar logo pelo ponto alto da noite, que foi a apresentação do Ryan Gosling de “I’m Just Ken”, uma das canções de BARBIE, que concorria com duas, mas que acabou ganhando pela cantada por Billie Eilish (a pessoa mais jovem a ter dois Oscar, com apenas 22 anos). E o engraçado é que não via nada demais na canção do Ken no filme, mas a apresentação no Oscar, ao vivo, brincando com todo mundo ali presente, com o Ryan saindo da cadeira atrás da Margot Robbie, e depois aparecendo, até o Slash tocando guitarra no meio da coreografia que contava com os outros Kens do filme. Sensacional. Deu vontade de rever imediatamente.

A cerimônia como um todo não teve nada de muito diferente, nada de tapa na cara, ou alguém dizendo o nome do filme errado, mas, que eu me lembre, essas duas premiações específicas foram chatas e acabaram ganhando repercussão por causa desses eventos. Havia uma espécie de harmonia no ar, em parte pelo host da noite, que é muito tranquilo. Jimmy Kimmel só no final fez uma piada ácida com o ex-presidente Donald Trump, o que até me deixou bem surpreso, mas que trouxe mais uma vez à tona o caráter mais progressista do segmento “indústria de cinema”.

Das premiações, a que eu mais gostei foi a de Emma Stone por POBRES CRIATURAS, de Yorgos Lanthimos. Havia me deitado na cama naquele momento e levantei de alegria com seu prêmio. Já até estava conformado com a premiação de Lily Gladstone por ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES, mas o filme de Martin Scorsese acabou ficando sem nada. A própria Emma não estava acreditando e ficou atordoada e falou o quanto temia ter um ataque de pânico lá no palco. Uma graça, essa menina. Aliás, da categoria principal, o filme de Marty, MAESTRO, de Bradley Cooper, e VIDAS PASSADAS, de Celine Song, foram os únicos a saírem de mãos abanando. Até o mediano FICÇÃO AMERICANA teve o seu prêmio, de roteiro adaptado.

Outro prêmio também animador foi o de GODZILLA MINUS ONE, ganhando efeitos especiais de produções caríssimas realizadas nos Estados Unidos. Foi bacana ver esse grupo de japoneses conseguindo esse Oscar com poucos recursos. Também achei muito legal a estatueta de ator coadjuvante para Robert Downey Jr., um sujeito cheio de carisma e que tem uma trajetória de vida muito tortuosa. Legal ele ter vencido as drogas e conseguido esse sucesso na maturidade. Não sou muito fã de OPPENHEIMER, mas todo mundo já sabia que seria o grande vencedor da noite, e por mim tudo bem. Um bom filme, sim. E feito por um homem que tem ajudado a alavancar o IMAX como formato mais atraente da atualidade.

Aqui no Brasil, houve problemas na transmissão e perdemos até mesmo uma premiação (de curtas). Mas gostei que convidaram a Andrea Horta, essa moça incrível, que veio de família humilde e tem muita sensibilidade, inclusive para falar de cinema. Que ela retorne no próximo ano.

No mais, participei de três bolões e gostei muito da experiência. É divertido e adiciona uma dose extra de excitação e entretenimento para a noite.



Os Premiados

Melhor Filme – OPPENHEIMER
Direção – Christopher Nolan (OPPENHEIMER)
Ator – Cillian Murphy (OPPENHEIMER)
Atriz – Emma Stone (POBRES CRIATURAS)
Ator Coadjuvante – Robert Downey Jr. (OPPENHEIMER)
Atriz Coadjuvante – Da’Vine Joy Randolph (OS REJEITADOS)
Roteiro Original – ANATOMIA DE UMA QUEDA
Roteiro Adaptado – FICÇÃO AMERICANA
Fotografia – OPPENHEIMER
Montagem – OPPENHEIMER
Trilha Sonora Original – OPPENHEIMER
Canção Original – “What Was I Made For?”, por Billie Eilish (BARBIE)
Som – ZONA DE INTERESSE
Efeitos Visuais – GODZILLA MINUS ONE
Direção de arte – POBRES CRIATURAS
Figurino – POBRES CRIATURAS
Maquiagem e cabelos – POBRES CRIATURAS
Filme Internacional – ZONA DE INTERESSE (Reino Unido)
Longa de Animação – O MENINO E A GARÇA
Curta de Animação – WAR IS OVER! INSPIRED BY THE MUSIC OF JOHN & YOKO
Curta-metragem (live action) – A INCRÍVEL HISTÓRIA DE HENRY SUGAR
Documentário – 20 DIAS EM MARIUPOL (Ucrânia)
Curta Documentário – THE LAST REPAIR SHOP

domingo, março 10, 2024

MANDINGO – O FRUTO DA VINGANÇA (Mandingo)



"Mandingo is racist trash, obscene in its manipulation of human beings and feelings (...)”
Roger Ebert


No ano passado, uma das três obras-primas incontornáveis que eu vi em casa foi OS NOVOS CENTURIÕES (1972). Neste ano, certamente, terei uma outra obra-prima de Richard Fleischer que guardarei com muito carinho no coração, MANDINGO – O FRUTO DA VINGANÇA (1975). É uma pena que eu tenha demorado tanto a escrever sobre o filme e não tenha aproveitado o impacto emocional próximo dos dias que o vi, cerca de um mês atrás. Tento remediar isso agora, meio que esnobando a temporada do Oscar, para falar de um filme de décadas atrás. Aliás, neste ano meio que desisti de tentar ver tudo o que é possível dentre os indicados ao prêmio da academia, principalmente quando não estão disponíveis nos cinemas. Não tenho mais tempo hábil para tal, já que o trabalho, o cansaço e demais atividades consomem o tempo. Além do mais, os filmes de outras épocas me são muito mais atraentes atualmente.

Quanto a MANDINGO, que filme incrível! E corajoso também por mostrar um tipo de sociedade que o próprio cinema parece querer esquecer. Afinal, mostra a vergonha que é/foi o modelo de sistema escravocrata, adotado principalmente no sul dos Estados Unidos e muito conhecido do brasileiro também. E Fleischer parece querer confundir certas audiências ao mostrar às vezes uma trilha sonora que remete à calma e à tranquilidade dos antigos westerns (a trilha é de Maurice Jarre), como se quisesse mesmo botar o dedo na ferida da questão da colonização e dizer: vejam o que era romantizado nos filmes da Hollywood clássica. 

O próprio cartaz lembra o de ...E O VENTO LEVOU, inclusive. O jeito que o filme é vendido parece, em alguns momentos, denotar algo de exploitation, mas o diretor faz um trabalho tão poderoso que cada detalhe da trama e cada fala e ação dos personagens faz perceber uma obra de grande sofisticação. E a violência, no caso, é essencial, eu diria, e não apelativa. Quando muitas pessoas criticam o uso da violência nos filmes, eu penso em A Ilíada, de Homero, cuja descrição detalhada das cenas de batalha e o impacto nos corpos dos homens de ambos os exércitos tornou a obra mais verdadeira para mim. É assim que vejo também no cinema, por mais que entenda que o grafismo na imagem em movimento seja muito mais difícil para pessoas mais sensíveis.

Na época de seu lançamento, boa parte da crítica caiu de pau em cima de MANDINGO, acusando-o de racista, obsceno, manipulador, explorador, como foi o caso de Roger Ebert, que ainda destaca a personagem de Susan George como excessivamente sensual, quando na verdade ela está fazendo o papel de uma mulher com necessidade de carinho e afeto, que era abusada sexualmente no seio familiar, que por não se casar virgem é odiada pelo marido e lhe é dito que não age da maneira que uma moça branca deveria agir e que tem um final trágico e muito triste, por ter feito algo que pode ser visto como uma abominação pela sociedade americana (tanto a do século XIX quanto a do XX): o sexo interracial. Além do mais, as cenas de sexo com ela não são exatamente confortáveis e sensuais; todas lidam com um mal estar presente na situação em que se encontra.

Felizmente, existem alguns ótimos defensores do filme, aqueles que, parece, compreenderam melhor as intenções de Fleischer. É o caso de Robin Wood, renomado crítico britânico que escreveu um belo texto chamado “’Mandingo’: The Vindication of an Abused Masterpiece”. Wood destaca o quanto essas pessoas que odiaram o filme são predominantemente formadas por homens brancos, e possivelmente  podiam temer que nos Estados Unidos da década de 1970 o filme poderia incitar uma espécie de revolução por parte da população negra, que começava a se impor de maneira mais forte na sociedade.

MANDINGO se passa nos anos 1840 e, na trama, um proprietário de escravos (Perry King) treina um homem negro recém-adquirido (Ken Norton) para lutar com outros homens escravizados usados para competir em embates apostados, como cães ou galos de briga, podendo, inclusive, nessas lutas, matar ou morrer. Antes disso, o filme nos deixa a par do funcionamento daquele sistema escravocrata, em que o patriarca (James Mason) usa uma criança negra para ficar debaixo de seus pés a fim de passar para o menino sua doença – eles acreditavam (será?) que aquilo poderia curar a doença do velho.

Naquela sociedade também era comum os homens brancos terem suas escravas de estimação para o sexo mais livre, por assim dizer. Hammond, o personagem de Perry King, tem um carinho especial por Ellen (Brenda Sykes) e diz a ela que se casará com uma mulher branca (Susan George), mas que nunca deixará de ter seus encontros com ela. Ellen, em determinado momento, quando engravida de Hammond, implora a ele que o filho da relação dos dois nasça livre. Essa é uma das inúmeras cenas incômodas e tristes do filme. Outras tantas virão, e o final... o final é algo tão forte que acho preferível não destacar aqui, deixar para aqueles que querem dar uma chance ao filme e darem de cara com uma das obras mais fortes e cruéis já feitas em Hollywood.

Richard Fleischer é um cineasta que começou fazendo filmes baratos na década de 1940, ora dramas familiares, ora comédias, e depois entrou entre os grandes nomes do filme noir, com títulos como ALMA EM SOMBRAS (1949) e IMPÉRIO DO TERROR (1950), e que se adequou incrivelmente ao clima de pessimismo e crueza do cinema da Nova Hollywood na década de 1970.

Filme visto no excelente box A Arte de Richard Fleischer.

+ DOIS FILMES

FICÇÃO AMERICANA (American Fiction)

Em vários momentos, FICÇÃO AMERICANA (2023), de Cord Jefferson, parece o piloto de alguma série que pode melhorar com o tempo, mas que não promete ser muita coisa em suas duas horas de apresentação. Em outros momentos, me parece materializar o tédio do personagem de Jeffrey Wright no próprio andamento narrativo, por mais que coisas emocionantes não faltem em sua vida, como a questão da doença da mãe, de uma morte em família, do sentimento de rejeição do irmão e um namoro. E em outros momentos, tem aquela coisa meio engraçadinha de certos filmes que lidam com o bloqueio criativo. De todo modo, é um filme que procura trazer à tona aquilo que é muito comum de se ver em obras que trazem o drama de personagens negros, que acabam descambando num clichê. Felizmente os personagens do filme não têm esse problema, creio eu. Não que isso ajude muito.

A COR PÚRPURA (The Color Purple)

Nunca vi a versão de Steven Spielberg (só alguns trechos na televisão), mas é fácil entender quando dizem que esta versão musical da história traz mais leveza ao drama dos personagens. Apesar de não ser nada fã das cenas musicais, fiquei bastante envolvido com a história de Celie, uma jovem que (depois de ser obrigada a dar seus dois bebês) é vendida a um homem que a usa como escrava, enquanto lhe nega contato com a irmã. A história de A COR PÚRPURA (2023), de Blitz Bazawule, vai ficando melhor quando surge em cena a personagem da cantora de blues, vivida por Taraji P. Henson, e na relação de amor que se constrói entre as duas. As cenas de virada da protagonista são muito boas e reacendem o interesse pela história. A última cena é bem bonita e emotiva.

quinta-feira, março 07, 2024

TENEBRE



Um dos motivos para que as obras-primas do giallo sejam tão cultuadas está no quanto elas crescem nas revisões. Na primeira vez que vi TENEBRE (1982), de Dario Argento, não tive o mesmo impacto que desta vez, em fevereiro. Fiquei maravilhado com cada cena, com a beleza da violência estilizada, com o visual que deixa o filme num tempo não estabelecido e com o tom onírico aplicado. Tudo a ver com o fato de que Argento estava saindo de uma pausa de sete anos dos gialli, vindo de dois filmes de horror de bruxas, as também obras-primas SUSPIRIA (1977) e A MANSÃO DO INFERNO (1980). Ou seja, naquele momento da carreira, o maestro estava no auge.

Essa impressão de necessidade de revisão constante dessas obras se dá, possivelmente, por se sustentarem num material de sonho, como se o diretor adentrasse um outro território de nosso cérebro, inclusive por não estar tão interessado em racionalizar. Ou seja, TENEBRE e outras obras do tipo ficam arquivadas no mesmo compartimento de nossa mente onde guardamos a lembrança dos sonhos. E apesar de haver uma trama bem pensada – e eu gosto muito das revelações quanto à identidade do assassino, por exemplo –, claramente a força maior do filme está na construção das cenas, em especial das cenas de assassinato ou de perigo extremo, ao som da excelente trilha sonora.

O assassinato das duas amigas em seu apartamento, a incrível perseguição de uma garota por um cachorro, a amputação do braço de uma mulher e sangue esguichado pintando de vermelho a parede (um espetáculo visual!), o fechamento que é puta catarse. E Argento ainda trata no mesmo filme de rebater ou jogar mais lenha nas acusações de sexismo, ao trazer um protagonista que muito lembra o próprio realizador na condição de escritor de romances criminais com violência extrema.

Na trama, o escritor Peter Neal (Anthony Franciosca), em seu caminho para Roma a fim de promover seu novo livro intitulado “Tenebre”, descobre que alguém que leu o seu romance o está usando como citação explícita em seus homicídios – as vítimas são encontradas com páginas do livro em suas bocas. O escritor é visitado pela polícia, encabeçada pelo detetive Germani, vivido por Giuliano Gemma, e, à medida que mais pessoas vão morrendo, mais ele pretende se aproximar do crime para descobrir a identidade do assassino. O curioso é que, mesmo eu, que não curto muito um whodunit, fiquei muito interessado em tentar descobrir a identidade do serial killer, até porque boa parte dos personagens da trama vão morrendo pelas mãos do sujeito de luvas pretas.

TENEBRE é o tipo de filme em que cada cena é empolgante, mas obviamente os destaques são mesmo as cenas de suspense e gore. A relativamente longa cena da perseguição da adolescente por um dobermann dos infernos é incrível. No começo, ela briga com o namorado, desce da moto, é atacada por um bêbado, corre, fica irritada com o cachorro, que pula a cerca e a persegue dentro de uma floresta, e em seguida ela invade uma casa, justamente a casa do assassino, onde descobre fotos das vítimas. Podemos dizer que este momento fecha o lado A, por assim dizer. E, por que incrível que pareça, TENEBRE ainda consegue se manter tão ou até mais interessante depois desta cena, quando a identidade do assassino se torna ainda mais intrigante, levando a um dos finais mais intensos da filmografia de Argento, com aquela imagem magnífica de Daria Nicolodi.

Este filme de Argento é muitas vezes associado a algumas obras de Brian De Palma, já que cineasta americano homenageou o maestro em pelo menos duas ocasiões, SÍNDROME DE CAIM e PAIXÃO, em que determinada cena é “repetida”.

+ DOIS FILMES

O ESTRANHO VÍCIO DA SRA. WARDH (Lo Strano Vizio della Signora Wardh)

A estreia de Sergio Martino no mundo dos gialli foi com este sensual O ESTRANHO VÍCIO DA SRA. WARDH (1971), de Sergio Martino, nascido após o diretor ter iniciado com três documentários e um western spaghetti. Ou seja, o diretor vinha de territórios um pouco mais concretos, antes de ingressar nesse mundo quase abstrato, o dos gialli. Talvez por isso este filme não seja do tipo tão viajante, o que não quer dizer que não existam imagens bastante próximas da atmosfera de sonho, em especial os flashbacks e os pesadelos de Edwige Fenech com um homem com quem teve um relacionamento de sadomasoquismo no passado e que a deixou traumatizada. Agora casada, esse homem aparece novamente em sua vida, assim como um primo que veio da Austrália (George Hilton). Esses três homens se mostrarão fundamentais para a conclusão da trama, que dá um ar ainda maior de misoginia, apesar da punição no final. Algumas cenas de assassinatos são construídas com uma boa dose de suspense e tensão, outras têm uma preocupação maior com a plasticidade e outras são um pouco escuras demais para se julgar. No mais, Fenech está adorável em seu misto de coragem e fragilidade.

JOE – DAS DROGAS À MORTE (Joe)

Na época que JOE – DAS DROGAS À MORTE (1970) saiu em home video no Brasil, a revista SET deu apenas três estrelas, mas o colocou como um dos destaques do mês. Não foi o suficiente para me deixar interessado e só agora, graças ao divertido testemunho de Quentin Tarantino em seu livro Especulações Cinematográficas, em que conta quando viu o filme quando criança, com seus pais, no cinema, aí sim me chamou a atenção. No caso, o texto do Tarantino é cheio de spoilers, mas isso não tem problema para mim. JOE é desses filmes que, infelizmente, não envelheceram. No Brasil dos dias de hoje o personagem seria claramente identificado com um bolsonarista. Na virada para os anos 1970, ele representa o cara de direita que tem uma coleção de armas e muito ódio da contracultura e de tudo o que ela trouxe para a sociedade daquele tempo. Eis que a amizade, por assim dizer, dele com um homem que mata um traficante por acidente os leva a momentos às vezes divertidos, às vezes chocantes e tensos. Adoro, por exemplo, as cenas em que os dois vão parar numa casa de hippies e acabam por aproveitar a orgia e a maconha disponíveis. É interessante como esse cinema da Nova Hollywood queria mesmo romper com a antiga tradição, inclusive no quesito nudez, algo mais comum de se ver, na época, no cinema europeu. Talvez o problema do filme seja tornar Joe um sujeito simpático e não a figura odiosa e perigosa que é. Avildsen vinha de dois filmes meio exploitation e se tornaria mais famoso com o sucesso de ROCKY, UM LUTADOR (1976).

domingo, março 03, 2024

DUNA – PARTE DOIS (Dune – Part Two)



Denis Villeneuve entra na mitologia de Blade Runner com sua obsessão por histórias familiares. Desde seu longa de estreia, 32 de AGOSTO NA TERRA (1998), que a questão da paternidade é tratada com profundidade e seriedade. Isso seria levado adiante em filmes tão distintos como INCÊNDIOS (2010), O HOMEM DUPLICADO (2013) e A CHEGADA (2016). A intersecção entre esses filmes inclui pessoas que se sentem deslocadas e se veem diante de um elemento-surpresa ou um desafio que as fazem questionar os seus papéis na existência.

Esse parágrafo em itálico acima foi escrito por mim quando escrevi a respeito de BLADE RUNNER 2049 (2017), primeira experiência com sci-fi do cineasta canadense. Foi bom eu reler este trecho do texto e ver o quanto essa questão da família e da paternidade segue presente neste projeto ainda mais ambicioso do diretor, a adaptação do romance de 1965 de Frank Herbert, Duna.

DUNA – PARTE DOIS (2024) é de bem mais fácil compreensão que o primeiro filme (2021), que tinha a difícil tarefa de apresentar os conceitos, os personagens, os embates entre as raças etc. Falo difícil, mas a impressão que temos vendo esta sequência é que Villeneuve faz parecer que foi fácil. E sabemos o quanto as duas adaptações de Duna para o cinema tiveram histórias muito tortuosas. A versão de Alejandro Jodorowsky nem saiu do papel e tinha a intenção de ter 14 horas de duração e contaria com um time dos sonhos. Já a versão dirigida por David Lynch conseguiu sair do papel, mas ficou uma coisa quase incompreensível para quem não leu o livro de Herbert, e uma experiência traumática para Lynch, que nunca mais faria projetos de encomenda novamente (graças a Deus!).

DUNA – PARTE DOIS se demora mais no deserto e começa de onde o primeiro parou, com Paul Altreides (Timothée Chalamet) e sua mãe grávida, Lady Jessica (Rebecca Ferguson), se juntando ao grupo de guerreiros do deserto, os Fremen, por sobrevivência, mas também para planejar uma vingança contra os Harkonnen. No primeiro filme, o pai de Paul, o Duque Leto (Oscar Isaac) é assassinado e quase toda a família Atreides é dizimada pelas tropas do Barão Vladimir Harkonnen, vivido por um Stellan Skarsgård quase irreconhecível em toneladas de maquiagem para criar uma figura tenebrosa. E falando em tenebrosidade, que fantástica que está Rebecca Ferguson, num papel cheio de ambiguidades, sendo ela uma espécie de bruxa manipuladora, mas também dotada de grande sabedoria e conhecimento. Sem falar no visual, no figurino, nas expressões de seu belo rosto. Aliás, falando em figurino, esse é outro destaque desta produção.

Villeneuve faz um filme ambicioso, mas é cinema clássico-narrativo à moda antiga, até lembrando, e não apenas por causa do deserto, LAWRENCE DA ARÁBIA, de David Lean, se distanciando ainda mais de suas realizações canadenses de início de carreira. Com relação a outras semelhanças com outros trabalhos seus, destaco o impacto da consciência, da manifestação da verdade, algo que acontece em INCÊNDIOS e em A CHEGADA. Inclusive, é citado neste filme o quanto o poder da especiaria promove em certas pessoas uma percepção única entre passado, presente e futuro, de certa forma lembrando a comunicação com os extraterrestres de A CHEGADA. Aqui essa visão é conseguida de maneira mais forte através de uma poção que potencializa os poderes místicos de Lady Jessica – e, mais adiante, de Paul, quando ele passa a aceitar sua posição como líder que mudará o destino daquele universo, mesmo sabendo que isso poderá ocasionar milhões de mortes numa chamada guerra santa.

Achei que o filme podia ter explorado um pouco mais o relacionamento amoroso entre o herói e Chani (Zendaya), mas acredito que isso não seria possível sem aumentar ainda mais a metragem. Dizem, aliás, que a Chani de Villeneuve é diferente da Chani de Herbert. A de Villeneuve tem uma personalidade mais forte, é muito menos submissa, por assim dizer. Ela representa o grupo do norte do planeta, que não acredita que Paul é o messias, que vê tudo como uma superstição do povo do sul. Já o grande Javier Bardem faz um Stilgar muito simpático, o personagem que representa o alívio cômico do filme.

As mudanças de cenário e as apresentações de novos personagens são feitas com muita segurança, e em blocos narrativos. Mesmo personagens com menor tempo de cena, como os vividos por Austin Butler, Florence Pugh e Christopher Walken, ganham muita força na trama. Este segundo filme reforça uma questão complexa e delicada, como o uso da religião como alavanca para a chegada ao poder a partir da fé dos fiéis.

Com o sucesso de público e crítica de DUNA – PARTE DOIS, acredito que Villeneuve conseguirá carta branca para o terceiro filme, adaptando o segundo livro, O Messias de Duna, romance bem menos volumoso lançado originalmente em 1969. E mesmo que não consiga, este segundo já se encerra de forma brilhante, com um mal estar associado a uma vitória. No mais, que som, que cuidado técnico, que amor pelo texto de Herbert. 

Quem puder ver numa sala IMAX, opte por esse tipo de sala. Quem não tiver IMAX em sua cidade, procure a maior e melhor tela. É filme pra se ver em tela gigante e com som de primeira. 

+ DOIS FILMES

BEEKEEPER  REDE DE VINGANÇA (The Beekeeper)

Exemplo clássico de filme que começa muito bem, explorando o crime, o justiçamento e a violência brutal (chega a ser um exploitation de alto orçamento). É fácil se divertir no primeiro momento de BEEKEEPER - REDE DE VINGANÇA (2024), mas rapidinho a história parece não saber mais para onde ir e o carisma de Jason Stathan e as situações de ação envolvendo esse exército de um homem só não são suficientes para manter o filme bom até o final. Até a violência deixa de ser interessante e extrema e se torna algo entorpecente no filme de David Ayer, quando o herói aparece quase invencível, disputando sem nenhuma arma vários homens armados ao mesmo tempo. Ainda assim, é possível se divertir com as cenas, com os vilões, com o FBI totalmente imprestável, como também é possível lembrar-se da era dos filmes de justiceiros impiedosos (franquias Dirty Harry, Desejo de Matar etc.), para o bem e para o mal.

AQUAMAN 2 – O REINO PERDIDO (Aquaman and the Lost Kingdom)

Um caso de filme que foi tão malhado pela crítica e pelos fãs que a gente vai ver até com um olhar mais generoso. Não que AQUAMAN 2 – O REINO PERDIDO (2023) não tenha merecido tantas críticas negativas, mas há uma coisa ou outra que merecem ser destacadas. Destaco principalmente o visual das naves submarinas, que parecem saídas de algum romance sci-fi do século XIX, com sua ambientação retrô. A primeira luta entre a nave do Arraia Negra com o exército dos povos atlantes tem seu charme. Até considero o vilão (Yahya Abdul-Mateen II) mais interessante que o herói. Aquaman é aquele herói tão preguiçoso que sua preguiça contagia. E Amber Heard seria apenas a esposa bonita e apagada se não lhe dessem algumas cenas de ação perto do final. Já Patrick Wilson é aquele personagem sem muita personalidade, que funciona como escada para o herói. Além do mais, por ser parceiro de James Wan, fica mais uma vez a impressão de um contrato por amizade. O filme é cheio de problemas de montagem e ritmo, mas não o vejo como a mais desastrosa produção da DC Warner do ano. Esse título fica com SHAZAM! FÚRIA DOS DEUSES. No entanto, não deixa de ser triste quando a comparação feita a um filme passa a ser com os piores.

sábado, março 02, 2024

DIAS PERFEITOS (Perfect Days)



Acho estranho não ter me aprofundado na filmografia de Wim Wenders, sendo ele um cineasta tão importante para o início de minha cinefilia – entre minhas lacunas estão seus celebrados filmes dos anos 1970. Lembro do quanto foi arrebatador ver ASAS DO DESEJO (1987) no cinema, no saudoso Cine Center Um, e do quanto fiquei angustiado vendo, na televisão mesmo, o maravilhoso PARIS, TEXAS (1984) – sim, na virada dos anos 1980 para os 90 eram exibidos filmes dessa natureza na TV aberta, e às vezes legendados. Tanto ASAS quanto PARIS tratam da solidão e acredito que na época eu era mais solitário, e fico me perguntando se era por isso que eu me sentia tão próximo do anjo invisibilizado de Bruno Ganz ou o homem que vagou pelo deserto de Harry Dean Stanton.

A sensibilidade de Wenders o tornava um cineasta singular e um de seus grandes méritos era saber se apropriar do espaço físico e geográfico, do espírito desses lugares, de modo que isso se incorporasse à narrativa e a seus personagens. Podia ser o deserto americano ou a Berlim antes da queda do muro, mas também a melancólica capital de Portugal em O CÉU DE LISBOA (1994).

Desde a suposta decadência artística de Wenders, nos anos 1990, principalmente em se tratando de ficção, seu cinema foi deixando de chamar a atenção do circuito, a não ser por seus documentários. É bem possível que DIAS PERFEITOS (2023) seja seu melhor filme de ficção desde O CÉU DE LISBOA – mas precisaria ver PALERMO SHOOTING (2008) e TUDO VAI FICAR BEM (2015), que dizem ser bem interessantes. O novo trabalho é um retorno do cineasta alemão a seu interesse pelo cinema japonês e especialmente a Yasujiro Ozu, já homenageado por ele em TOKYO-GA (1985), mas não sem explicitar seu amor pela música americana dos anos 1960-80, que surge principalmente nas cenas em que o protagonista dirige seu carro pelas ruas de Tóquio e ouve suas fitinha cassete. 

Um dos interesses do filme está em tratar de uma figura por vezes invisibilizada na sociedade e também no cinema: as pessoas que fazem a higiene sanitária de banheiros públicos. Koji Yakusho, melhor ator em Cannes-2023, é esse homem calado que tem prazer no seu trabalho e em sua rotina, que respira com alegria o ar puro da manhã pouco antes do nascer do sol, sempre que sai de casa. Várias vezes o vemos sorrindo por coisas simples e chega a ficar feliz da vida só por receber um beijo no rosto. 

Há algo nele de que ainda não sabemos e demora um pouco até ficarmos a par de algum detalhe de sua vida pregressa. A chegada da sobrinha adolescente quebra um pouco sua rotina, mas nem isso chega a tornar a trama do filme muito convencional. Não sei dos bastidores, mas sei que Wenders já teve experiência de filmar sem roteiro – caso de ASAS DO DESEJO – apenas tentando buscar inspiração no ar da cidade. Ele faz isso em diferentes países e culturas e muitas vezes consegue resultados incríveis.

Achei a seleção das músicas boa, mas um tanto óbvia, embora, confesso: me arrepiei quando tocou “Pale Blue Eyes”. O próprio Wenders já havia usado "Perfect Day" do Lou Reed, de maneira ainda mais bonita no pouco visto OS BELOS DIAS DE ARANJUEZ (2016). Faltou um tanto para me arrebatar e fiquei pensando em outro filme que lida com o prazer com as pequenas coisas da vida e a transformação em poesia: PATERSON, de Jim Jarmursh – esse, sim, me pegou muito. Mas tudo bem: Wenders faz declarações de amor a coisas que amo muito: o cinema, a música e a literatura. Só por isso, ele já é um dos diretores mais queridos.

+ DOIS FILMES

O MENINO E A GARÇA (Kimitachi Wa Dô Ikiru Ka)

Não resta dúvida que O MENINO E A GARÇA (2023) é um filme de mestre. Mas uma coisa é reconhecer esse fato; outra é se envolver com a obra, entrar naquele mundo onírico com empolgação e maravilhamento. Eu já tenho minhas dificuldades com animações e, mais ainda, com aquelas que voam para muito longe do mundo real, por mais fascinantes que as imagens e as criações se apresentem. Achei fascinante a garça como criação original, mas quando o filme vira uma espécie de Alice no País das Maravilhas, começou a me perder um pouco. Cenas que me ganharam: a personagem da equivalente da mãe do menino do outro lado e o jogo com a porta para o mundo "real"; a chegada do protagonista no reino dos periquitos; o lado engenheiro de Hayao Miyazaki se manifestando na cena do conserto do bico da garça. No mais, achei legal ver a sala completamente lotada do Cinema do Dragão para ver esse filme. Só consegui assistir pois comprei com antecedência.

MEU AMIGO ROBÔ (Robot Dreams)

Esta animação espanhola que foi exibida em Cannes acabou ganhando visibilidade internacional pela indicação ao Oscar, disputando com Disney, Homem-Aranha e Miyazaki, para citar os maiores. A indicação do filme de Pablo Berger foi essencial para sua chegada aos cinemas. E ainda bem que pudemos ver um trabalho tão inventivo quanto este, com aquele final de deixar o coração mexido. Em alguns momentos achei que a narrativa ficou um pouco gordurosa, mas deve ser meu tempo na cadeira para animações sem diálogos, por mais que, para o caso de MEU AMIGO ROBÔ (2023), a falta de diálogos seja fundamental para a história, para a falta de comunicação que prejudica os protagonistas, o cachorro e o robô. Na trama, cachorro compra robô montável para diminuir sua solidão e passa a tê-lo como melhor amigo. Até que algo acontece e traz tensão para a história. Há algumas cenas bem inventivas, como a dança no final, e a cena do boliche com o homem de gelo.

sábado, fevereiro 17, 2024

O BARÃO AVENTUREIRO (The Baron of Arizona)



Ainda estou me acostumando com o cinema de Samuel Fuller. Por enquanto, meu favorito ainda é seu filme de estreia, EU MATEI JESSE JAMES (1949), já que certos títulos dos anos 1960 que pude ver dele, como PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963) e O BEIJO AMARGO (1964), vi talvez sem estar preparado ou sem uma noção maior de sua poética, ou mesmo uma noção das circunstâncias e motivações pelas quais suas obras foram feitas. Das produções dos anos 1980 que pude ver, AGONIA E GLÓRIA (1980) e CÃO BRANCO (1982) também precisam de revisão. Esses e todos os filmes que pretendo conseguir do realizador estarão na minha peregrinação. Não são tantos assim. 

Seguimos agora com seu segundo filme na direção, O BARÃO AVENTUREIRO (1950), em que Fuller mais uma vez abraça as pessoas deploráveis, demonstrando um humanismo poucas vezes visto no cinema. Depois de nos fazer solidários de um covarde em seu longa-metragem de estreia, ele agora nos faz simpáticos a um forjador, um falsificador de ambições imensas, um homem praticamente despojado de sentimentos nobres. A história é muito interessante e é impressionante que seja hoje tão pouco conhecida: um homem, James Reavis, conseguir forjar antigos documentos de modo a possuir todo o território do Arizona, isso é incrível.

No filme, ele é vivido por Vincent Price. Diria que para o bem e para o mal, pois nem sempre Price consegue uma atuação muito convincente (adorei quando ele fez o terrível caçador de bruxas no filme de 1968, por exemplo, mas talvez seja um caso especial). Aqui nesta produção do chamado beco da pobreza de Hollywood, Fuller faz um western bem estranho, com toques às vezes pesados de melodrama, acentuados pela trilha sonora, mas com outros muito divertidos de suspense e aventura (nas cenas do protagonista na Espanha). Chegam a ser engraçadas as cenas em que ele repete uma fala para conquistar as mulheres que passam por sua vida num curto espaço de tempo. 

O fato de esse personagem, esse herói estranho passar vários anos num mosteiro para realizar seu intento é representativo de alguém que acredita no fruto de seu trabalho. Seu trabalho consiste em usar tintas especiais e forjar caligrafias nos livros guardados a sete chaves nesse mosteiro. Imagina só: passar todo esse tempo fingindo ser um sacerdote, enquanto a então menina cresce e se transforma numa mulher. Uma vez que ela se torna “legalmente” (a partir do que ele consegue forjar) baronesa, ele pede a moça em casamento, não importando a diferença de idade. Ele tinha certeza de que havia criado para si uma figura de um mito para aquela menina que crescera suja, brincando com porcos, antes de ele trazer essas fake news de que ela era herdeira de muitas terras.

O BARÃO AVENTUREIRO foi uma produção barata. Suas filmagens duraram apenas 15 dias, ainda que cinco a mais que EU MATEI JESSE JAMES. Apesar da pobreza de recursos, na ficha técnica, a obra conta com um dos mais respeitados diretores de fotografia da história de Hollywood, o chinês James Wong Howe, que fez questão de trabalhar com Fuller. Na época, Howe já havia trabalhado em obras de prestígio, como OS CARRASCOS TAMBÉM MORREM, de Fritz Lang, e UM PUNHADO DE BRAVOS, de Raoul Walsh.

Lendo textos sobre Fuller, diretor nascido no jornalismo, assim como Richard Brooks, vejo críticos falando de suas imperfeições, e de como elas fazem parte de sua grandeza como cineasta. E que falam também de seu senso de urgência narrativa. Confesso que, depois de O BARÃO AVENTUREIRO, fiquei ainda confuso e acredito que seus próximos filmes me farão compreender melhor suas obsessões, suas intenções, sua estética. Por isso, aguardem para breve meu texto sobre CAPACETE DE AÇO (1951).

+ DOIS FILMES

JAMAL

Quando o curta-metragem JAMAL (1981), de Ibrahim Shaddad, começou, fiquei me perguntando se aquele som era do camelo ou do carro de bois - ou seja lá que máquina é aquela que o pobre animal usa. Lembrei-me do som constante de VIDAS SECAS, de Nelson Pereira dos Santos. Mas ao que parece, em JAMAL, é o som do camelo mesmo e o filme busca trazer uma conscientização dos maus tratos sofridos pelos animais, apelando até mesmo para uma espécie de antropomorfização do camelo perto do final. E é triste pensar que é preciso esse tipo de coisa, de fazer comparação do homem como um escravo, rodando vendado uma roda o dia inteiro, para tornar esse sofrimento compreensível. O filme tem uma crueza muito própria de um país que devia ainda estar lutando muito para ter um nível de prosperidade minimamente digna.

A GRANDE TESTEMUNHA (Au Hasard Balthazar)

A revisão de A GRANDE TESTEMUNHA (1966), de Robert Breson, desta vez foi no cinema e em 35 mm. Havia visto pela primeira vez quase 18 anos atrás e desta vez muito me incomodou, além da questão envolvendo o burrinho sendo passado de mão e mão e sofrendo maus tratos e falta de respeito, algo relacionado à personagem de Anne Wiazemsky (A CHINESA). Ela é Marie, cujo nome provavelmente tem um simbolismo cristão, sendo Bresson um cineasta católico. Ela larga a família para viver uma relação abusiva com um jovem deliquente, muito provavelmente o personagem mais odioso do filme. Este é um dos trabalhos do Bresson que mais tive dificuldade de acompanhar e compreender o enredo, por causa da grande quantidade de personagens e das elipses, já que a intenção do cineasta é reduzir tudo ao essencial, não apenas as emoções e os diálogos, mas também o que é apresentado na tela. Então é uma marca do diretor certa obsessão pelas mãos, como muito bem podemos lembrar do maravilhoso UM CONDENADO À MORTE ESCAPOU (1956), uma obra muito mais otimista em sua conclusão. De A GRANDE TESTEMUNHA só podemos esperar o mais rápido possível fim do sofrimento daqueles personagens, seja Balthazar, Marie, o bêbado Arnold, ou os pais de Marie. Neste filme não há salvação neste plano de existência. Uma cena que muito me chamou a atenção desta vez: os campos e contracampos de Balthazar com os bichos aprisionados no circo.

terça-feira, fevereiro 13, 2024

O DIA QUE TE CONHECI



O cinema brasileiro está vivendo um momento excepcional. Já faz algum tempo que deixou de ser quase exclusividade de São Paulo e do Rio de Janeiro para surgir vivo e forte nos demais estados do país. Nos anos 2000, o cinema produzido em Pernambuco e Rio Grande do Sul se destacou, assim como o cinema produzido no Ceará. Eis que, principalmente a partir dos anos 2010, o cinema de Minas Gerais começou a se tornar um dos mais bonitos e criativos do Brasil. Parece que foi que saí do cinema encantado com filmes como ARÁBIA, de Affonso Uchôa e João Dumans, e NO CORAÇÃO DO MUNDO, de Gabriel Martins e Maurílio Martins. E há o principal cineasta desta nova onda do cinema mineiro, André Novais Oliveira.

O DIA QUE TE CONHECI (2023) é apenas o terceiro longa-metragem de Oliveira e ele parece ter chegado a um domínio de direção que beira o sublime. Lembrando que o primeiro curta do cineasta, FANTASMAS (2010), já me deixou muito empolgado. Empolgado e um tanto irritado, já que fiquei pensando: como não tive uma ideia dessas para fazer um filme com tão poucos recursos? Mas eu falei isso sem nunca ter pegado numa câmera profissional na vida. E FANTASMAS não foi uma sorte de principiante: foi talento, foi verve poética, como pudemos ver em seguida nos trabalhos posteriores, como o curta afetivo POUCO MAIS DE UM MÊS (2013), a declaração de amor aos pais com ELA VOLTA NA QUINTA (2014), a comédia QUINTAL (2015) e o aparentemente despojado TEMPORADA (2018).

Mesmo com uma carreira brilhante, ainda de poucos curtas e longas, arrisco dizer que O DIA QUE TE CONHECI é sua maior obra-prima até o momento. No novo filme, cada momento de seus 71 minutos é uma delícia, e os aplausos finais do público partiram do coração, de uma imensa gratidão, já que o cineasta não estava presente na sessão. Emocionado e feliz, eu via o sorriso de contentamento daquelas pessoas presentes na sessão especial do filme, na Mostra Retrospectativa do Cinema do Dragão.

Na trama de O DIA QUE TE CONHECI, Renato Novais (irmão do diretor) é um sujeito que trabalha na biblioteca de uma escola. Acontece que ele tem um problema em acordar cedo e isso vai acabar lhe trazendo uma notícia não muito feliz, como veremos a partir de sua primeira conversa com a personagem de Grace Passô, que faz uma secretária escolar. O diretor encanta com a graça dos diálogos logo no começo do filme (difícil não rir do diálogo entre o protagonista e o seu colega de habitação), mas também com as escolhas de câmera, com o uso econômico (e lindo) da música, com o amor que parece brotar de seu par de personagens que se reconhecem entre os poucos pretos de uma escola majoritariamente branca.

O DIA QUE TE CONHECI tem uma graça tão (aparentemente) simples que fica até difícil tecer palavras de exaltação, pois buscar tais palavras acaba se tornando complicado, levando em consideração que a resposta para a grandeza do filme está nas imagens e no som: as conversas dentro do carro (com a câmera localizada no banco traseiro), do lado de fora do bar (com um papo que envolve remédios de tarja preta), as situações no ônibus e num botequim (com a pausa para o pastel) ou a aproximação do casal na casa. Além do mais, a cena dos dois caminhando pela rua meio deserta de BH é de um encanto que remete aos grandes clássicos musicais da Velha Hollywood. Pelo menos, o espírito leve é semelhante. Talvez por isso a gente saia da sessão assim, como se sentisse tão leve e feliz quanto o Fred Astaire num filme como A RODA DA FORTUNA.

Em algumas críticas que li sobre o filme de Oliveira, percebi citações a Yasujiro Ozu e Abbas Kiarostami como possíveis influências ou conexões. E creio que têm fundamento. Há um cuidado com os silêncios (dentro e fora dos diálogos) que só grandes diretores que lidam com aspectos mais interiores de seus personagens sabem transformar em encanto. Mal posso esperar para rever o filme, quando entrar em cartaz em circuito.

+ DOIS FILMES

FOLHAS DE OUTONO (Kuolleet Lehdet)

Uma história de amor tão simples quanto deliciosa, contada com uma dramaturgia que tem um quê de Bresson, mas com humor embutido. Um homem e uma mulher solitários e da classe trabalhadora mais desfavorecida da Finlândia se encontram em momentos difíceis de suas vidas, mas nem tudo são flores para que fiquem juntos. A estrutura da trama de FOLHAS DE OUTONO (2023) lembra os velhos melodramas hollywoodianos, mas a forma é bem diferente. Gosto muito de como Aki Kaurismäki nos coloca num tempo situado entre o presente (a Guerra da Ucrânia), o passado (os velhos rádios) e o futuro (o calendário de 2024). Mas a preferência é pelo passado. Até porque é no passado que está a glória do cinema homenageado em cenas, cartazes e na própria sala de cinema da cidade. Um filme que traz ternura e amor num mundo em que imperam a dureza, a crueldade e a solidão.

AFIRE (Roter Himmel)

Uma alegria ter um filme novo do Christian Petzold nos cinemas. Trata-se de um realizador muito querido, ainda que dentro de um público ainda bem nichado. AFIRE (2023) segue sua uma tetralogia de filmes sobre os elementos da natureza, iniciada com EM TRÂNSITO (2018) e UNDINE (2020) e que incorpora algo de fantástico dentro de uma narrativa realista. Na trama, um jovem escritor (Thomas Schubert) vai para uma casa de veraneio com seu amigo (Langston Uibel), filho da dona da casa, e lá descobrem que já há uma pessoa instalada (Paula Beer). O personagem do escritor é um sujeito bem difícil de se gostar: é antipático, enjoado e se sente superior aos demais. Concentrado no próprio trabalho e no que as pessoas vão achar do seu texto, acaba não percebendo as coisas que acontecem a seu redor, como o fogo que começa a dominar a floresta. AFIRE é um filme que vai crescendo à medida que pensamos nele.