segunda-feira, julho 22, 2024

O SEQUESTRO DO PAPA (Rapito)



De carreira longeva (dirige filmes desde a década de 1960) e considerado por muitos o maior cineasta italiano em atividade, Marco Bellocchio é um diretor cuja obra lamento não conhecer o suficiente, embora não deixe de conferir cada novo trabalho seu lançado nos cinemas desde pelo menos BOM DIA, NOITE (2003), ainda que tenha perdido alguns de lá pra cá. Na aurora de minha cinefilia, o nome de Bellocchio já era bastante citado e lembro que a revista SET destacava filmes como OLHOS NA BOCA (1982) e DIABO NO CORPO (1986) em suas páginas, filmes que até hoje não vi. Os anos 1990 aparentemente não foram tão bons para o cineasta.

O SEQUESTRO DO PAPA (2023) não é apenas mais uma obra do cineasta para nos deixar felizes, mas um dos melhores lançamentos deste ano. O filme trata de uma história real tão chocante quanto dolorosa e que estava no interesse de Steven Spielberg: a do menino Edgardo Mortara, filho de pais judeus, que é tirado à força de sua família pela igreja católica dos tempos do Papa Pio IX, por ter sido batizado pela babá que cuidava dele quando bebê. A mulher, preocupada se o menino morresse e não fosse para o céu, providenciou o que achava o correto, escondido da família da criança. Na época do sequestro, Edgardo tinha apenas seis anos e nem a polícia e nenhuma outra autoridade podia fazer nada a respeito. Naquela época, o poder da igreja era imenso, sendo maior que as leis do estado e a Itália não era ainda o reino unificado que se transformaria em 1871.

Há uma cena em O SEQUESTRO DO PAPA que já está entre as minhas favoritas do ano: aquela em que a mãe da criança vai visitá-la. Que cena de arrepiar! Uma explosão de emoção num momento em que há muita tensão e tristeza envolvida. Bellocchio foi feliz em trazer uma história real tão incrível quanto esta, uma história que se inicia em 1858, em Bolonha, e imagino o quanto deve assombrar vários católicos até hoje. Para o espectador, é muito fácil ver o papa pintado no filme, vivido por Paolo Pierobon, como o grande vilão. E por isso se torna difícil até aceitar que esse homem tenha sido beatificado em 2000 pelo Papa João Paulo II.

A história do sequestro dessa criança, que aos poucos passaria a ficar mais aproximada à crença católica a ponto de se tornar também um sacerdote, trata de um embate em que não há vencedores. Nem mesmo a Igreja Católica, que, mesmo tendo ganhado a queda de braço para os pais, que enfrentaram a situação se utilizando da justiça e da imprensa, que espalhou a história por todo o mundo.

O filme também faz crítica a estruturas de religiões que enfatizam a palavra dita como palavra que não se volta atrás, sendo que isso vale até para a família judia, ainda que no caso deles haja muito mais nobreza. O último ato é também muito bom, com o menino agora adulto, e há algumas imagens perturbadoras e imensamente tristes, como a do papa sendo empurrado e sua posterior reação, a do caixão sendo levado pela rua ou a da visita de Edgardo à mãe, perto do final. As últimas imagens de Edgardo representam a irreparabilidade dos danos, inclusive psicológicos, desse ato terrível, que para os dias de hoje pode simbolizar um momento em que há uma simpatia por parte da extrema direita de a igreja se intrometer em assuntos de estado.

+ TRÊS FILMES

A ÚLTIMA NOITE DE AMORE (L'Ultima Notte di Amore)

Terceiro longa-metragem dirigido por Andrea Di Stefano e o primeiro puramente italiano, em se tratando de produção (os outros dois são produções de vários países e falados majoritariamente em inglês), este A ÚLTIMA NOITE DE AMORE (2023) não apenas resgata mais uma vez nossa fé no cinema italiano contemporâneo, como também poderia ser um sucesso no circuito mainstream se contasse com um bom marketing. Isso porque se trata de um thriller policial que nos deixa tensos um tempo inteiro, além de ter um ator de primeira grandeza como Pierfrancesco Favino (O TRAIDOR, NOSTALGIA) trazendo ainda mais vigor para a trama. Favino é um policial que está prestes a se aposentar e que recebe uma proposta de trabalhar para os chineses (possivelmente mafiosos) ganhando um bom dinheiro, apenas tendo que fazer o transporte de uma mulher trazendo joias do aeroporto. Claro que sabemos que vai dar merda, mas a própria expectativa disso faz parte da graça, assim como as surpresas e o desenvolvimento da trama (o roteiro é original e também a cargo de Di Stefano). Destaque também no elenco para Linda Caridi, no papel da esposa do protagonista. A atriz pôde ser vista em trabalhos como ENTRE TEMPOS e LAÇOS e é responsável por alguns dos momentos mais bonitos do filme.

SEGREDOS (Confidenza)

A história de SEGREDOS (2024), de Daniele Luchetti se passa principalmente na mente de Pietro (Elio Germano) e por isso é uma história que deve ser vista com desconfiança. Depois do pacto que faz com sua ex-aluna Teresa (Federica Rossellini) de contarem ambos um segredo que jamais contariam para qualquer outro, esse homem começa a viver numa espiral de medo de que sua vida desabe totalmente a partir da revelação do tal segredo. Que o filme não chega a entregar, até para não interferir no julgamento do protagonista por parte do espectador. Por outro lado, nossa visão de Teresa também é a de uma figura que o ameaça apenas com a própria presença ou mesmo lembrança. Pietro casa com outra mulher, Nadia (Vittoria Puccini), de comportamento mais depressivo, mas riquíssima em detalhes nas cenas em que aparece, seja com gestos, seja com palavras. O filme apresenta Pietro como aquela pessoa comum, um professor, que é louvado pelo seu trabalho da chamada "pedagogia do afeto" e temos a impressão de que ele se sente desconfortável, talvez sofrendo de uma síndrome do impostor, sem, no entanto, deixar de aceitar elogios e homenagens de alunos e profissionais da educação. SEGREDOS é um filme envolvente que talvez peque por sua conclusão pouco satisfatória e meio atropelada, embora eu goste muito do instante da reação da filha do protagonista, que traz uma dramaticidade que combina com o tom de agonia e inquietação do personagem. Ao final, ouvimos uma canção de Thom York, que contribui com a trilha sonora. Grande escolha, aliás. Afinal, York talvez seja o compositor contemporâneo que parece melhor saber criar um tipo de música que define a angústia e o desespero do ser humano.

AINDA TEMOS O AMANHÃ (C'è Ancora Domani)

Que linda estreia na direção da atriz Paola Cortellesi! E eu não gosto de dizer que tal filme é necessário, mas diria que AINDA TEMOS O AMANHÃ (2023) é. E é também um filme que raramente teria a mesma força se dirigido por um homem. Afinal, só uma mulher sente na pele, mesmo uma mulher dos dias de hoje, a agressão que o mundo do patriarcado traz. AINDA TEMOS O AMANHÃ é herdeiro do neorrealismo de cineastas como Vittorio De Sica, até por localizar seu tempo no pós-guerra e na Itália destruída, empobrecida e humilhada. E para que personagem mais humilhada do que Delia, vivida pela própria diretora? É uma personagem que começa o filme recebendo tapa do marido. E outras agressões virão. Como se trata de uma obra que já passou pelo pós-modernismo, a narrativa também se constrói em alguns momentos com o uso de recursos musicais, até como uma forma de diminuir um pouco o peso da violência doméstica. E o que é aquele final, hein? O filme constrói um suspense que nos faz grudados na poltrona, torcendo por ela, e ainda muda nossas expectativas com uma surpresa linda e cheia de militância. Um dos melhores filmes italianos dos últimos anos.

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