quinta-feira, janeiro 26, 2023

ARMAGEDDON TIME



Este mês de janeiro acabou se saindo bem diferente do que eu esperava de um mês de férias de meu trabalho como professor. O que eu esperava: ver muitos filmes e atualizar o blog quase todos os dias. A realidade: problemas de saúde (dores lombares, formigamento nos membros e pressão alta ocasional) fizeram com que minha saúde ficasse em primeiro lugar na lista de prioridades e pela manhã fui bastante ao treino na academia e a sessões de fisioterapia. Sem falar que tive que levar minha mãe a médicos para consultas e exames. Como não sou tão bom assim em organizar meu tempo como muitos pensam que sou, além de adorar uma boa soneca, o blog ficou assim desse jeito, um pouco largado. Mas não quero deixar de refletir um pouco mais sobre um dos filmes que mais me tocaram recentemente, ARMAGEDDON TIME (2022), de James Gray.

É muito interessante ver o filme após ter visto OS FABELMANS, pois o que temos aqui são propostas de um cinema de memória bem distintas. Enquanto Spielberg faz uso de um registro mais clássico, inclusive com uma música mais acentuada para dar um tom mais dramático a sua obra, Gray opta por um cinema mais seco, mais sóbrio e também mais sombrio, ao contar a história de seu alter-ego, um menino saindo da infância e criando consciência aos poucos, de maneira muito dura, da realidade a seu redor. Esse tom por vezes amargo adotado por Gray é enfatizado pela ótima fotografia em tons sépia do celebrado Darius Khondji, que havia trabalhado com o diretor em ERA UMA VEZ EM NOVA YORK (2013) e em Z – A CIDADE PERDIDA (2016).

Adoro o jeito como Gray não coloca o jovem Paul (Banks Repeta) como um anjo. Na verdade, o menino é presepeiro e faz coisas reprováveis, embora seja muito fácil ver que ele faz isso de maneira muito inocente. Adoro as cenas carinhosas dele com o avô (Anthony Hopkins), o jeito como ele diz “eu te amo”, como se fosse, talvez, uma forma de trazer para o filme uma espécie de situação que não aconteceu com o próprio diretor (não sei se é o caso, na verdade). E ao pensar nisso, o filme me lembrou AFTERSUN, de Charlotte Wells, mas acho que isso vem da minha relação muito pessoal com o filme da diretora escocesa.

Anne Hathaway e Jeremy Strong estão excelentes nos papéis dos pais do menino, e o filme mostra de maneira dolorosa e tocante as fragilidades de cada um. A convivência de Paul com o único menino negro de sua escola, Johhny (Jaylin Webb), é também um dos pontos fundamentais para se compreender essa história de privilégios e de extrema dificuldade da sociedade americana, principalmente a representada naquele ano de 1980, prestes a eleger Ronald Reagan como presidente, num período que se vê hoje como antecessor da gestão Donald Trump. Trata-se do melhor filme de Gray desde ERA UMA VEZ EM NOVA YORK. Inclusive, há algo de muito cruel no tratamento de certos personagens que é um ponto comum entre os dois filmes, embora ARMAGEDDON TIME encontre mais pontos em comum com FUGA PARA ODESSA (1994), o filme de estreia do cineasta.

O novo trabalho do diretor segue a tendência de filmes memorialistas que têm surgido atualmente. Mas ao contrário de APOLLO 10 E MEIO - AVENTURA NA ERA ESPACIAL, de Richard Linklater, que segue uma linha muito mais doce e nostálgica, por exemplo, James Gray opta por um tom mais duro e teve muito mais coragem de colocar alguém de sua família como sendo uma pessoa desagradável (no caso, o irmão velho) do que Spielberg, que procurou ser gentil com todos os representados (pai, mãe, irmãs e o amante da mãe). Aquela cena em que o menino Paul se recusa a jantar e pede dumplings pelo telefone é de dar raiva – a mãe (Anne Hathaway) costumava economizar comprando peixe mais barato, pensando nas despesas da família. Tanto que a surra de cinturão que o garoto recebe do pai (Jeremy Strong) nem me pareceu tão dura assim, por mais inocente que o menino possa ter sido na situação envolvendo maconha na escola.

Em entrevista para o Collider, o diretor conta que tem uma memória muito boa de sua infância e das escolas por onde passou e que lembra das crianças e de todos os professores. E eu fiquei pensando que eu não tenho tanta recordação assim das escolas e dos professores, acho que me lembro mais dos amores platônicos que tive nesse período do que das aulas em si, embora eu fosse sempre o primeiro ou segundo melhor da sala em se tratando de notas. E eu até poderia me lembrar de momentos e situações tão ou mais melancólicos na minha infância do que as representadas no filme de Gray. E cheguei a me identificar com algumas situações do garoto, como ter um pai de classe trabalhadora pobre e uma mãe que fazia o possível para trazer conforto para toda a família. Sobre o pai vivido por Jeremy Strong, aliás, que cena comovente aquela em que o ouvimos falar sobre o quanto ele é grato ao sogro (Hopkins). Nessa cena, Gray opta por filmá-lo de costas, para enfatizar o ponto de vista do garoto. É maravilhoso quando um cineasta tem tal sensibilidade, não apenas para fugir do óbvio, mas para, principalmente, trazer emoção, mesmo quando opta pela estranheza visual.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES


NOSSA SENHORA DO NILO (Notre-Dame du Nil)

É muito bom e necessário ter contato com a cultura dos países africanos. Uma cultura plural que tem passado desapercebida das salas de cinema por causa da dominação americana e europeia. Claro que há também questões de ordem financeira (esta produção aqui não seria possível sem dinheiro europeu, por exemplo), mas poder ter um cineasta não-europeu (no caso, Rahimi é afegão) já é um ganho. NOSSA SENHORA DO NILO (2019), de Atiq Rahimi se passa em 1973, quando se vê, num internato católico belga, a rixa perigosa já existente entre hutus e tutsis, vista no cinema em HOTEL RUANDA, de Terry George. O que vemos aqui chama atenção também para questões envolvendo a colonização, a história africana, questões de ordem moral e a religiosidade, que funde (ainda que de maneira proibida) as tradições milenares com o catolicismo do colonizador. A direção é muito bem cuidada e a fotografia valoriza a janela scope. A história, porém, se atropela no finalzinho, quando quer deixar mais explícita a guerra entre as duas etnias.

ENQUANTO ESTAMOS AQUI

Tive um pouco de dificuldade de me concentrar neste ENQUANTO ESTAMOS AQUI (2019), de Clarissa Campolina e Luiz Pretti. O fato de haver múltiplos narradores e as imagens não terem muita relação com o que está sendo narrado pode ter contribuído um pouco. A estrutura lembra a de VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, mas percebo um maior prazer, quase poético, no narrar de Grace Passô, mais do que nos outros dois narradores. Talvez porque na vez em que Passô narra, o que ouvimos está mais próximo da escrita literária do que de uma escrita epistolar, como é o caso das outras duas narrações. Há várias referências que são apresentadas ao final, nos próprios textos, e por isso talvez o filme se beneficiasse não apenas de uma revisão, mas de um olhar sem pressa e mais afinado com o tom e o sentimento que ele propõe.

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