Atualmente certas mensagens e certos filmes que precisam passar mensagens, especialmente políticas, precisam ser bastante claros. Didáticos, até. A fim de expressar sem sombra de dúvida aquilo que se deseja dizer. Em tempos de ascensão de uma extrema direita com claros vínculos com o fascismo, uma extrema direita que tem jogado com mensagens cifradas para confundir, isso se torna ainda mais necessário. E se DESTACAMENTO BLOOD (2020) já foi pensado como um filme anti-Trump e naturalmente anti-racista, até por ser dirigido por um dos cineastas mais ativistas dos últimos 30 anos, agora, então, é que tudo se torna ainda mais urgente, a partir da morte de George Floyd e das manifestações anti-racistas que isso desencadeou não apenas nos Estados Unidos, mas em muitos países do mundo.
O novo filme de Spike Lee, que seria o presidente do júri do Festival de Cannes 2020, cancelado por conta da pandemia, estava previsto para estrear mundialmente, fora de concorrência, no festival. Mesmo sendo uma produção da Netflix, em outras circunstâncias poderia ter sessões especiais nos cinemas, como ocorreu com ROMA, com O IRLANDÊS, com OS MISERÁVEIS e com ATLANTIQUE, por exemplo. De todo modo, ter a visibilidade que a Netflix é capaz de trazer acaba sendo positivo para que uma quantidade enorme de pessoas possa acessar o filme.
DESTACAMENTO BLOOD é claramente um produto de nosso momento, mas totalmente interligado a várias outras décadas, em especial aos tempos da Guerra do Vietnã, mas Lee faz sempre questão de aproveitar o seu espaço para enaltecer pessoas negras. Não apenas Muhammad Ali e Malcolm X, que aparecem em imagens de arquivo, mas trazer à tona a estupidez que era, por exemplo, ter um herói como o Rambo tentando fazer com que os Estados Unidos desfizessem o fracasso que foi para eles a Guerra do Vietnã, quando poderiam ter dado destaque, por exemplo, ao primeiro jovem negro morto em combate durante o conflito, como exemplo de herói.
E falando em herói, chega a ser simbólico ter o ator Chadwick Boseman, o intérprete do Pantera Negra, da Marvel, como uma figura mítica, pelo menos entre os seus amigos e parceiros do chamado Da 5 Bloods. Ele é um exemplo de alguém que tinha a sabedoria de entender a situação dos negros diante de um mundo desigual e a melhor maneira de procurar travar uma luta. Como um deles diz: Norman era "nosso Malcolm e o nosso Martin".
Assim, como acontece em boa parte dos filmes de Spike Lee, enaltecer o valor do homem negro, em especial o americano, continua sendo necessário. Tanto que boa parte das canções apresentadas no filme são de Marvin Gaye. Referências aos atletas Tommy Smith e John Carlos, à ativista Angela Davis, ao ano de 1619, quando foram trazidos os primeiros africanos escravizados em solo americano, entre outras pessoas e momentos marcantes, são outros exemplos.
O filme nos apresenta a quatro veteranos da Guerra do Vietnã que voltam ao país para cumprirem uma nova missão. Ou duas. Uma delas tem a ver com uma mala cheia de barras de ouro encontrada nos anos 1970, quando estavam em ação, e enterrada em algum lugar da batalha. A outra tem a ver com o corpo do companheiro Stormin' Norman (Boseman). Cada um desses quatro homens lidam com o presente de maneira muito particular. Um deles se destaca, que é o personagem de Delroy Lindo, o único que, para vergonha dos demais, votou em Donald Trump e até usa um boné com o lema "Make America Great Again".
Na missão de procurar e encontrar o ouro, como é de se esperar, ocorre um conflito de interesses e a ambição, pelo menos de parte do grupo, passa a mover e a envenenar o espírito deles. A referência ao clássico O TESOURO DE SIERRA MADRE, de John Huston, é clara, inclusive nas entrevistas de Lee, em que ele afirma ser o filme um de seus favoritos.
Muito interessante a utilização de três diferentes formatos de tela, o início em scope, as cenas no passado em formato 4:3, e em seguida a proporção 1,85:1, quando se inicia a missão. E mais uma vez acertada a brincadeira com as cores na fotografia, assim como a escolha curiosa e feliz de colocar os homens já envelhecidos nos flashbacks, junto com o jovem Boseman, como para demonstrar o sentimento de que, mesmo já sessentões, eles ainda teriam fôlego e coragem para enfrentar uma missão mortal.
E de fato a missão que eles empreendem é muito mais perigosa do que imaginam, já que ainda há minas, há pessoas especializadas em localizar e desativar essas minas, como a bem-vinda personagem de Mélanie Thierry, atriz que brilhou recentemente no drama de guerra MEMÓRIAS DA DOR, de Emmanuel Finkiel. Aqui ela é uma jovem francesa que faz parte desse grupo e que tem contato inicialmente com o filho do personagem de Lindo. Seu nome é Hedy, em homenagem à estrela hollywoodiana Hedy Lammar, outra das inúmeras referências cinematográficas do filme, assim como é também a inclusão da "Cavalgada das Valquírias", que ficou marcante em APOCALYPSE NOW, de Francis Ford Coppola. No filme de Lee, a inclusão da música de Richard Wagner ganha um ar de deboche.
Um drama bem pessoal de um dos personagens acentua a questão do racismo, dessa vez no Vietnã. O personagem de Clarke Peters reencontra um amor do passado, uma mulher vietnamita. E descobre que tem uma filha com ela, e fica sabendo, com dor, do quanto a garota foi maltratada pela sociedade, por causa de sua cor. Ou seja, a violência do racismo se amplia no cinema de Spike Lee, não apenas nos Estados Unidos, mas aparecendo também em um país do outro lado do mundo. Nada mais justo ampliar esse debate para o mundo. E é isso que está acontecendo. Esperemos que seja para nossa evolução como seres humanos e para o surgimento de uma sociedade mais igualitária e fraterna.
+ TRÊS FILMES
120 BATIMENTOS POR MINUTO (120 Battements par Minute)
Baita filme-pancada este. Gostei de tudo. Das discussões nas reuniões da Act Up, das ações, das cenas de namoro dos dois rapazes, da dor com que é mostrada na evolução da doença e do que vem a seguir. Não esperava gostar tanto. E de fato se um filme como esse fosse feito e lançado lá em meados dos anos 1990 seria como uma bomba. Mas, mesmo lançado agora, 20 anos depois que foram encontrados melhores tratamentos para a AIDS, não tira a sua força não. Até por enfatizar a união dos gays, coisa que está cada vez mais atual, nesse mundo de polaridades e de retrocessos de conquistas humanas. Direção: Robin Campillo. Ano: 2017.
EU, DANIEL BLAKE (I, Daniel Blake)
Caso de filme que arrancou aplausos da audiência, além de choro, mas que não me pegou não. Não funciona como melodrama e a tentativa de torná-lo seco (existe uma trilha sonora?), como o trabalho anterior dos Dardenne, também não diminui a sua cara de novela barata. Ainda assim é um filme bom de ver. Direção: Ken Loach. Ano: 2016.
NERUDA
Mais um filme de Pablo Larraín que não me desce. E pior: me fez ter saudade de O CLUBE (2015). Até tem coisas em NERUDA que me agradam, mas no geral é um filme que parece travar sempre em sua vontade de ser inteligente e bem humorado. E falha também no modo como mostra o poeta e sua arte. Mas o debate em torno da igualdade e de ser coadjuvante é interessante. Ano: 2016.
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