domingo, junho 28, 2020

THE SOUVENIR

Desconhecia o trabalho de Joanna Hogg. Aliás, sequer sabia da existência da cineasta, que já está em seu quarto longa-metragem. Quando vi THE SOUVENIR (2019) não sabia o quanto o projeto era pessoal para a diretora. Não apenas pessoal: é autobiográfico; baseado em suas memórias de quando tinha 20 e poucos anos. Até mesmo o apartamento em que morava foi reconstruído a partir de uma fotografia que ela tinha. A história se passa em Londres, no início da década de 1980. E aborda um relacionamento que hoje podemos facilmente observar como sendo tóxico.

O filme ganhou um dos principais prêmios do Festival de Sundance do ano passado e é curioso como não chegou a ter uma repercussão boa o suficiente no Brasil, talvez por não ter tido um lançamento nos cinemas. Foi lançado nos streamings neste período da quarentena. Ainda assim, acaba passando batido em meio a tantas opções disponíveis, mesmo que a grande maioria das opções não valha o nosso valioso tempo.

Só o fato de ser um filme baseado em uma memória já me provoca o interesse, já alimenta a minha relação com ele. A própria diretora hesitou bastante em materializá-lo, justamente por tratar de algo tão íntimo e tão incômodo. É um projeto que ela alimentou desde 2015. Para conseguir uma atriz para interpretar sua personagem na juventude ela escolheu a semi-estreante Honor Swinton Byrne, filha de Tilda Swinton. A atriz só tinha no currículo de atriz uma pequena participação em UM SONHO DE AMOR, de Luca Gaudagnino, estrelado por Swinton.

Na trama, Honor é Julie, uma jovem estudante de cinema que conhece um homem um pouco mais velho, Anthony (Tom Burke), por quem se interessa e se apaixona. O homem é arrogante, lacônico, costuma apontar defeitos na moça, quando ele mesmo não parece ter lá suas qualidades. Nem bonito ele é. Ele esconde uma vulnerabilidade que surgirá aos poucos, à medida que formos conhecendo mais o personagem.

Em entrevista com a diretora ao jornal britânico The Guardian, a atriz Honor Swinton Byrne afirma: "Toda pessoa na faixa dos 20 anos não sabe o que está acontecendo em sua vida. Você está tentando descobrir no que você é bom, quem você é, o que você quer, quais são seus limites. E você comete erros e tem problemas de auto-confiança." Então, o que Anthony faz com Julie é se aproveitar desse momento mais delicado de se estar em seus 20s. Por mais que possamos nos solidarizar com os problemas de Anthony mais perto da segunda metade do filme, a relação vampírica é difícil de perdoar, de aceitar, ainda mais sendo Julie uma pessoa tão doce.

É impressionante a atuação de Honor. Nem parece estar atuando, de tão natural que é sua performance. Seu trabalho também foi de pesquisa: ela chegou a ler os diários da diretora dos anos 1980, a fim de buscar identificação e conhecimento sobre ela e ajudar na formulação da personagem. E Joanna Hogg imprime um trabalho realista nos diálogos que torna o filme verdadeiro em muitos aspectos.

THE SOUVENIR causa bastante desconforto, pois, desde o começo, a relação que se estabelece entre Julie e Anthony não parece agradável. Vemos tudo com certo distanciamento, não parece ser fácil se apegar ao personagem masculino como ela se apegou. Fica-se o tempo todo querendo que ela saia desse relacionamento e a pergunta vem e é feita à própria diretora na referida entrevista: "Por que ela ficou com Anthony por tanto tempo?". Ela afirma que é uma pergunta que não é possível responder.

Há no filme uma espécie de valorização e de saudosismo do mundo analógico. E isso é mostrado tanto nas cenas em que Julie está fotografando os amigos nas festas intimistas, quanto nas aulas de cinema a que ela assiste ou nas fitas cassete que ela coloca para escutar em seu aparelho de som. Aliás, é muito bom o uso bastante pontual da música no filme, entrecortando os silêncios.

O filme foi rodado cronologicamente em 16 mm e percebemos claramente a textura diferente e o bonito grão na fotografia. Cada rolo de 16 mm tem duração de 11 minutos, então havia o aspecto divertido de lidar com essa limitação. E essa opção por filmar em ordem cronológica pode ter influenciado positivamente na construção dramática da protagonista.

No fim dos créditos, anuncia-se um THE SOUVENIR - PARTE 2, que já está em fase de pós-produção e será lançado no próximo ano. Segundo a diretora, a parte dois começa quase que imediatamente onde termina a primeira e vai de 1985 até o final da década. Fiquemos atentos para mais um mergulho na memória e nos sentimentos de Joanna Hogg.

+ TRÊS FILMES

STAR 80

E o filme de despedida de Bob Fosse foi este drama tenso sobre a morte de uma playmate e atriz iniciante, no filme vivida por uma Mariel Hemingway tão doce que às vezes chega a incomodar. Mas não tão incômodo quanto o namorado aproveitador e escroto vivido por Eric Roberts, um ator menor que talvez tenha aqui seu maior papel, como um psicopata difícil de se livrar. O filme se estrutura às vezes como um documentário, nas cenas em que alguns personagens contam para a polícia suas versões da história. A vítima é Dorothy Stratten, morta aos 20 anos de idade pelo ex-namorado. Seu último filme foi MUITO RISO E MUITA ALEGRIA, de Peter Bogdanovich, que teve uma depressão severa depois do ocorrido. Ano: 1983.

ALÉM DAS PALAVRAS (A Quiet Passion)

Conheço muito pouco ou quase nada da poesia de Emily Dickinson. Mas depois de ver este filme sempre que ler um poema dela vou ficar pensando na vida dela, no que ela passou (e não passou). Filme de silêncios, angústias e tentativas de autoafirmação diante de um mundo hostil. Cynthia Nixon está ótima, mas Jennifer Elhe rouba a cena também. Assim como a interpretação poderosa de Keith Carradine, como o pai de Emily. Direção: Terence Davies. Ano: 2016.

COMO VOCÊ É (Como as You Are)

Pra quem viveu de forma intensa a década de 1990 é bem interessante ver este filme que retrata uma juventude com dificuldade de lidar com a energia ou com os sentimentos. Tem algo na conclusão que não me agrada, mas até chegar lá é um belo filme. Direção: Miles Joris-Peyrafitte. Ano: 2016.

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