sábado, novembro 18, 2023

CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (Chronique d'une Liaison Passagère)



Nesses dias tenho pensado com frequência na cena final de CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (2022), o novo filme de Emmanuel Mouret. O tom agridoce ocasionado pela situação dos personagens tem voltado à minha mente, assim como a abertura para o caminho da felicidade que os últimos segundos deixam no ar. Até falei para a Giselle que, quando vi o filme, lembrei-me de nós dois. Principalmente pelo fato de eu ser o sujeito mais lento e mais tímido, e ela, a pessoa mais disposta aos saltos e mais extrovertida.

Mouret mais uma vez abraça esse personagem que aparentemente é uma espécie de alter-ego do realizador. É um personagem que lembra tanto Woody Allen quanto Charlie Brown, o personagem de Charles M. Schultz. O novo filme pode ser visto como o NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA do diretor francês, pois é contado em cerca de vinte tomadas focadas única e exclusivamente nos encontros entre Charlotte (Sandrine Kiberlain) e Simon (Vincent Macaigne), desde a primeira vez em que se conhecem, através de um aplicativo de relacionamento. Charlotte é uma mulher divorciada e com três filhos crescidos; Simon não tem filhos e é casado.

O fato de nunca vermos a esposa de Simon faz com que não haja no ar um sentimento de culpa, presente noutras obras do cineasta, como ROMANCE À FRANCESA (2015) e AMORES INFIÉIS (2020). A intenção de Charlotte e Simon, pelo menos inicialmente, é manter uma relação centrada mais no prazer que eles podem dar um ao outro. Cada encontro dos dois tem um gosto de um possível último encontro, principalmente por parte de Simon. Com o tempo, essa relação vai cada vez mais se transformando em amor. O problema é que eles não querem admitir isso numa conversa, achando que o sentimento poderia significar o fim do relacionamento. 

Ultimamente Mouret tem evitado protagonizar seus próprios filmes, como fazia nos primeiros trabalhos. A partir de MADEMOISELLE VINGANÇA (2018), o diretor tem optado por outros atores como protagonistas masculinos, trabalhando apenas por trás das câmeras. É até de se admirar que sua parceria com Vincent Macaigne tenha surgido tão tardiamente, já que esse ator tem o tipo perfeito para os papéis de seus filmes, além de ser ótimo quando faz homens desengonçados. No novo filme, ele interpreta o típico personagem mouretiano: tímido e que faz rir justamente por sua insegurança.

Cada cena é um encontro dos dois num formato que lembra vinhetas. Às vezes vemos apenas os carros, com os dois conversando, apenas o som de suas vozes. Às vezes a sequência é mais complexa e mais cheia de rigor, quando eles adentram a casa de uma terceira e importante personagem (Georgia Scalliet). A propósito, como é gostoso comungar com o momento em que Mouret, já tendo ganhado a plateia, faz o cinema inteiro (e lotado) rir a valer desse encontro a três.

CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA talvez seja o filme mais verborrágico do diretor, mas o texto é tão bom que não ouso reclamar. Além do mais, os personagens estão sempre em movimento, nunca estão parados e sentados. Estão na cama, em museus, passeando em bosques, viajando etc. Além do mais, há também a força dos olhares. E isso a Kiberlain, especialmente, faz muitíssimo bem. Em determinado momento, o personagem de Macaigne fala pelos cotovelos, desconfortável e nervoso, enquanto ela cala, olha para ele, manifesta seus sentimentos ainda um tanto misteriosos. O filme é mais um exemplar do rigor formal que o cineasta vem desenvolvendo a cada novo trabalho.

Numa entrevista para o site Cineuropa, foi-lhe perguntado sobre três referências no filme: cartazes de SOB O SIGNO DE CAPRICÓRNIO, de Alfred Hitchcock, e AS DAMAS DO BOIS DE BOLOGNE, de Robert Bresson, e uma cena em que os protagonistas assistem no cinema a CENAS DE UM CASAMENTO, de Ingmar Bergman. O filme do Bergman pareceu de certa forma óbvio de se relacionar. Do Hitchcock, há o uso de apenas planos-sequência por cena. E do Bresson, há o remake, por assim dizer, do filme, pelo realizador, em MADEMOISELLE VINGANÇA. Eu, que acompanho, há algum tempo o cinema de Mouret, gostei de ver na mesma pergunta/resposta uma associação do cineasta com esses três monstros sagrados.

+ DOIS FILMES

DISFARCE DIVINO (Magnificat)

Um filme muito estranho que trafega pelo respeito à fé e ao ofício do sacerdócio, ao mesmo tempo que é transgressor ao aceitar que uma mulher consiga se disfarçar de homem para ser padre, o que, aliás, é também algo muito bizarro (na minha cabeça). Achei que DISFARCE DIVINO (2023), de Virginie Sauveur, não tinha muito a dizer após apresentar a situação logo no início, e de fato demora a ficar interessante de novo. Lá pelo meio, a viagem da protagonista para conversar com um grupo de ciganos ao lado do filho dá aquele respiro necessário e uma esperança que se tornasse mais interessante para mim. Não foi o que aconteceu, mas segue sendo uma obra no mínimo curiosa.

O DESAFIO DE MARGUERITE (Le Théorème de Marguerite)

Filmes que tratam de matemática nem sempre funcionam (não gosto, por exemplo, de O HOMEM QUE VIU O INFINITO). É preciso que a direção esteja atenta àquilo que importa ao espectador leigo, ou seja, à grande maioria das pessoas. Nesse sentido, O DESAFIO DE MARGUERITE (2023), de Anne Novion, esta comédia dramática muito bonita sabe tanto lidar com as questões mais obsessivas da protagonista, quanto apresentar situações muito divertidas e por vezes tocantes dela com outras pessoas, sendo ela alguém muito fechada (o filme não dá diagnóstico algum para a personagem, se não me engano, e até prefiro assim). O final é de encher o coração e Ella Rumpf (presente em RAW, de Julia Docournau) está adorável como a gênio da matemática que, após se dar conta que errou uma fórmula revolucionária, resolve sair do curso e tentar uma vida normal.

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