sábado, junho 07, 2025

MISSÃO: IMPOSSÍVEL – O ACERTO FINAL (Mission: Impossible – The Final Reckoning)



A franquia Missão: Impossível nasceu num momento em que Tom Cruise estava construindo uma carreira perfeita, a partir da parceria feita com grandes cineastas autores. Nesse período, que vai dos anos 1980 até os anos 2000, ele trabalhou com gigantes como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Ridley Scott, Tony Scott, Oliver Stone, Neil Jordan, Steven Spielberg, Michael Mann, Stanley Kubrick e Paul Thomas Anderson. Por isso que os três (ou quatro?) filmes da franquia Missão: Impossível foram dirigidos por gente como Brian De Palma, John Woo, J.J. Abrams e Brad Bird. A ideia, até então, era que cada filme tivesse a cara de seu diretor.

Eis que tudo muda com MISSÃO: IMPOSSÍVEL – NAÇÃO SECRETA (2015), dirigido por Christopher McQuarrie, que dirigiria também os próximos três filmes da cinessérie. Tom Cruise havia gostado de trabalhar com McQuarrir em JACK REACHER – O ÚLTIMO TIRO (2012), mas na verdade McQuarrie já era um roteirista presente em vários outros filmes estrelados pelo astro – desde OPERAÇÃO VALQUÍRIA (2008). E essa parceria acabou dando muito certo num momento em que Cruise assumiu de vez a posição de astro de filmes de ação, e não mais aquele cara que quer ganhar o Oscar ou ficar “à sombra” de um grande autor. Agora ele é dono de seus filmes, o produtor. E um produtor muito exigente, que faz questão até de, ele mesmo, estar presente em cenas bem perigosas, quando poderia usar um dublê.

MISSÃO IMPOSSÍVEL – NAÇÃO SECRETA também foi o filme que trouxe pela primeira vez a belíssima atriz sueca Rebecca Ferguson no papel de Ilsa Faust, uma personagem moralmente ambígua, uma ex-agente de inteligência empregada pelo MI6. Infelizmente Ilsa morre em MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO DE CONTAS: PARTE UM (2023) e pra mim fez muita falta no último filme da série, sua continuação direta, mas uma obra mais ambiciosa, MISSÃO: IMPOSSÍVEL – ACERTO FINAL (2025), que não conta com o mesmo ritmo frenético do anterior e que traz temas mais sérios e exige um pouco mais de concentração por parte do espectador, por mais que a maior parte da informação repassada possa ser relevada, como acontece em muitos filmes de espionagem, quando o que importa é conseguir concluir a missão, muitas vezes só compreendida quando ela já está sendo executada – esse recurso é até inteligente, pois evita repetições e mais blá-blá-blá e até traz algumas boas surpresas na hora da ação.

No sétimo e no oitavo filmes da franquia, Tom Cruise e seu fiel escudeiro, o diretor Christopher McQuarrie, sentiram o desejo de fazer um grande épico, a mais longa aventura de Ethan Hunt, e isso acabou beneficiando mais a primeira parte, de 2023. Nesta segunda, há uma intenção de tornar a ameaça cibernética, uma inteligência artificial chamada A Entidade, como algo maior que um mero mcguffin, e por isso há longos e confusos diálogos a respeito, alguma tentativa de estabelecer certo vínculo com o atual momento geopolítico e certa crítica à dependência que temos do mundo digital e da internet, por mais que no fim das contas saibamos que Missão: Impossível é mesmo sobre obstáculos extremamente difíceis a ser superados.

Inclusive para o próprio Tom Cruise, que até já quebrou o tornozelo uma vez, nas filmagens de um dos mais festejados títulos da cinessérie, MISSÃO: IMPOSSIVEL – EFEITO FALLOUT (2017). O ACERTO FINAL tem o problema de se levar a sério demais e entregar uma quantidade menor de cenas empolgantes, diferente do anterior – além de terem matado uma personagem muito querido no filme passado. A sorte é que, ainda assim, este aqui ainda tem duas atrizes bem carismáticas, Hayley Atwell, a ladra, e Pom Klementieff, a assassina, ambas apresentadas no filme anterior.

As duas cenas de ação mais importantes são a do submarino (bem longa, mas também bem tensa e marcante) e a dos bimotores. E são cenas que se beneficiam do realismo do estilo antigo de filmar, com bem menos uso de CGI. Não deixa de ser um mérito e tanto para os dias de hoje em Hollywood, que faz com que saiamos das sessões de aventuras com a impressão de ter visto uma produção toda feita em computador. Claro que, além da vontade, é preciso muito dinheiro para executar esse tipo de projeto, mais analógico.

Esse ar de maior ambição (e de saudosismo) deste novo filme vem também de uma vontade de fazer uma auto-homenagem, trazendo cenas de títulos anteriores e fazendo uma conexão direta com a história do primeiro e hoje clássico MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996), dirigido por Brian De Palma. As imagens em forma de flashbacks rápidos servem para dar um tom de despedida à franquia e trazer também uma dúvida sobre o futuro da carreira de Cruise. Será que ele vai deixar os filmes de ação e ingressar em filmes de autores consagrados novamente? É possível, já que a idade chega e também há o projeto já em andamento para o ano que vem, sob direção de Alejandro G. Iñarritú, cujo O REGRESSO deu finalmente um Oscar a Leonardo DiCaprio.

+ TRÊS FILMES

BAILARINA (Ballerina)

Talvez se este filme tivesse sido lançado antes do primeiro John Wick, aqui chamado de DE VOLTA AO JOGO (2014), ele fosse visto como sendo algo mais interessante e até inovador, mas a ideia de um spin-off sem muita inventividade e protagonizado por Ana de Armas (talvez por sua boa cena de ação em 007 – SEM TEMPO PARA MORRER) teria funcionado se os criadores da franquia original, principalmente Chad Stahelski, tivessem assumido a direção e o comando também de BAILARINA (2025). Entregar para um cara apagado e sem talento como Len Wiseman ( ANJOS DA NOITE - UNDERWORLD, 2003) é como entregar o ouro ao bandido, ou então não estar muito interessado na reputação tão boa que a franquia estrelada por Keanu Reeves alcançou de público e crítica. Aqui temos uma história de vingança que também não funciona muito bem como história de vingança. Ou funciona em parte, já que no momento em que ela chega no KG do chefe da organização criminosa o filme começa a ficar mais interessante - gosto especialmente de uma cena envolvendo fogo e água, que é simbólica do feminino contra o masculino. Outro problema é que John Wick representa um momento de transição do cinema de ação americano, que passou a olhar mais atenciosamente para as produções de ação de Hong Kong e talvez também da Tailândia para a elaboração das cenas. O que fica em BAILARINA é o ar de familiaridade com o que já conhecíamos: o hotel Continental, os personagens de Ian McShane e Lance Reddick, as moedas de ouro e, claro, a participação de Keanu Reeves. Ana de Armas tem, sim, um grande carisma e já tem um currículo invejável, mas merecia um diretor melhor, até para ter, finalmente, um bom filme inteiramente protagonizado por ela.

O ESQUEMA FENÍCIO (The Phoenician Scheme)

Acompanho Wes Anderson no cinema desde TRÊS É DEMAIS (1998), quando ele ainda não havia sedimentado seu estilo. A partir de OS EXCÊNTRICOS TENEBAUMS (2001), porém, seu estilo ficou inconfundível e sua direção de arte e seu trabalho de simetria tornariam sua assinatura de fácil identificação. Acho incrível o quanto o diretor segue fazendo seu cinema sem concessões e aparentemente livre de interferência de produtores e estúdios. E ainda com elencos invejáveis, com os atores provavelmente trabalhando com salários bem menores para que as produções sejam possíveis. E nem se trata de ser a mesma trupe de amigos: a cada filme, novos nomes talentosos se juntam a seu time. O ESQUEMA FENÍCIO (2025) faz uma homenagem às antigas aventuras rocambolescas dos anos 1920-40, e em especial ao trabalho do diretor e produtor Alexander Korda, de O LADRÃO DE BAGDÁ. O filme é estrelado por Benicio Del Toro, que faz o papel de um chefão do crime que é constantemente alvo de tentativas de assassinato por parte de vários inimigos. O ESQUEMA FENÍCIO não me pegou tanto quanto o anterior ASTEROID CITY (2023), onde eu consegui penetrar no aparente jogo racional de Anderson. Mas acredito que posso ter visto num dia ruim. De todo modo, é difícil não admirar o trabalho do diretor, suas obsessões e seu estilo narrativo semelhante a um livro e às vezes a uma pintura, mas essencialmente cinematográfico.

VINGANÇA (The Assignment)

Quando soube da premissa deste filme já fiquei logo interessado em ver. É mais ou menos como se a personagem-vítima de A PELE QUE HABITO, de Pedro Almodóvar, fosse partir para a vingança depois de ter sido capturada e transformada em mulher numa cirurgia de mudança de sexo. Ou seja, é um tipo de filme que se arrisca no mau gosto, em ser acusado de transfóbico, inclusive, mas ao mesmo tempo é sempre muito atraente. Ou talvez por isso mesmo seja atraente, assim como também chama muito a atenção seu dinamismo como filme de ação criminal, com uma narração em voice-over da protagonista que às vezes lembra um Frank Castle (o Justiceiro, da Marvel), sendo que o nome do personagem é Frank Kitchen. Ainda bem que as cenas de Michelle Rodriguez de barba são poucas, pois são as que menos funcionam, embora uma cena de prótese seja importante para enfatizar o membro perdido, mas depois a atriz entrega muito bem como a pessoa atormentada e disposta a partir pra cima dos responsáveis pelo que lhe aconteceu. Gosto das transições entre cenas, quando Walter Hill, cujo auge como cineasta aconteceu nos anos 1970 e 80, faz brincadeiras com desenho e uso de íris, o que acaba tornando a apreciação deste VINGANÇA (2016) quase como uma leitura de um quadrinhos. Sigourney Weaver interpreta a cirurgiã responsável pela operação, e principal condutora da narrativa. Uma bela surpresa. Valeu pela dica, Cristian Paiva!

sábado, maio 31, 2025

O QUIMONO ESCARLATE (The Crimson Kimono)



Creio que acompanhar a filmografia de Samuel Fuller neste ritmo de um por mês não está sendo tão benéfico assim para que eu possa apreender e compreender melhor os temas e as obsessões do cineasta. Na época da pandemia pude me dar ao luxo de ver um filme a cada dois dias de Abel Ferrara, por exemplo; ou um filme a cada três dias de Fritz Lang. Mas aqueles eram outros tempos e havia a situação do distanciamento social, e da maior possibilidade de adentrar mais leituras e mais filmes noite adentro. E também uma produção maior de escrita de minha parte. Hoje me vejo num emprego que consome minha energia e não sei se torço para a chegada logo de minha aposentadoria ou se aproveito enquanto não tenho ainda 60 anos de idade para agradecer pela vitalidade razoável de que disponho.

Mesmo assim, teimo em seguir nessa tarefa de abraçar a filmografia de Fuller, ainda que, confesso, não esteja tão entusiasmado quanto na época do Ferrara, do Lang e do Brian De Palma, para citar os três últimos diretores que escolhi acompanhar a obra em ordem cronológica. De Palma, sempre amei, na verdade, e a maioria dos filmes eram revisões; mas revisões muito bem-vindas e necessárias. Já Fuller é aquele diretor que ganha mais meu coração após o término do filme, ao pensar em sua obra, do que durante a apreciação. Até porque ele às vezes confunde mesmo. 

Acho O QUIMONO ESCARLATE (1959) um dos títulos de Fuller que tem mais cara de filme B (até porque ele vinha de uma fase de cinema de guerrilha, após sua parceria com a Fox). O filme começa como um thriller policial sobre a investigação da morte de uma stripper (é ótima a cena da moça correndo de lingerie pela rua ao se ver em perigo) e depois vira a chave e se transforma num melodrama bastante carregado sobre um triângulo amoroso que arrisca romper a amizade entre dois amigos detetives de polícia e, mais importante, injeta um tipo de sentimento de rejeição (não necessariamente existente) no personagem nipo-americano, que faz com que passemos a ver um filme sobre autopercepção, sobre sensação de não pertencimento.

Não que seja um trabalho cheio de psicologismos, já que o cinema do Fuller é muito urgente, muito herdeiro de sua formação jornalística, mas mostrar essas pessoas que são ou se sentem rejeitadas é um tema caro a Fuller, que sempre gostou dos fracassados, vide EU MATEI JESSE JAMES (1949), ANJO DO MAL (1953), NO UMBRAL DA CHINA (1957) e RENEGANDO MEU SANGUE (1957). Embora eu goste mais das cenas de tensão dramática entre o trio, é nas cenas de ação que o cineasta mostra mais sua força. Tanto que a opção por apresentar a raiva que consome o personagem de James Shigeta é melhor explodida na luta de kendô com seu colega, o policial vivido por Glenn Corbert.

Os dois detetives de polícia acabam se apaixonando pela mesma mulher, a pintora Chris, vivida por Victoria Shaw. Ela está sob os cuidados deles, sob risco de, ao fazer o retrato falado do principal suspeito, entrar na mira dos criminosos. No momento que ela fica hospedada no mesmo quarto de hotel dos dois, acontece uma química mais explosiva, que infelizmente não parece tão bem desenvolvida, já que a opção de Fuller é por cenas curtas, cortes rápidos. Inclusive, aqui ele se antecipa a Jean-Luc Godard com o uso dos jump cuts em ACOSSADO.

Queria ter me envolvido mais com os personagens, com a trama e com o filme em si, mas comecei também a prestar atenção até em mudanças de luz e tons de preto e branco entre os cortes, o que faz transparecer uma produção muito modesta (trata-se de um de seus filmes mais baratos). É como se Fuller fosse uma espécie de José Mojica Marins, pegando pedaços diferentes de celuloide para dar conta de sua obra. Assim, ora vemos uma imagem de uma tonalidade, ora de outra; ora mais, ora menos nítida. O que não deixa de ser algo charmoso.

Também é destaque em O QUIMONO ESCALARTE o uso das chamadas stolen shots, ou seja, cenas filmadas às escondidas, sem autorização, como uma no final, no meio de uma festa japonesa nas ruas de Los Angeles, no bairro de Little Tokyo, um espaço que é ao mesmo tempo estranho e parte da paisagem da cidade. O respeito que Fuller já havia deixado explícito pelo povo asiático em filmes anteriores, como CASA DE BAMBU (1955) e NO UMBRAL DA CHINA, ganha novos contornos neste melodrama policial que se passa, desta vez nos Estados Unidos, mas privilegiando mais o ponto de vista do policial japonês que se imagina (e muitas vezes é mesmo) como alguém inferiorizado ou até mesmo um inimigo dos brancos americanos do que dos outros dois protagonistas.

Visto no box A Arte de Samuel Fuller.

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VIRGÍNIA E ADELAIDE

Yasmin Thayná estreia na direção de longas – mas com um histórico de obras abordando a negritude e o racismo no Brasil – ao lado de um cineasta já consagrado desde os anos 1980. Para VIRGÍNIA E ADELAIDE (2024), Jorge Furtado carrega a brincadeira enciclopédica que costura a conversa e as sessões de terapia entre as duas mulheres, remetendo principalmente a ILHA DAS FLORES (1989). Reparamos que em nossa sessão havia bastante gente do meio da psicologia e da psicanálise e o filme também busca chamar atenção dos estudiosos e interessados nas questões de raça. Na trama, Virgínia está na faculdade e quer fazer terapia com a única mulher psicoterapeuta do Brasil, uma judia alemã fugida do nazismo na Alemanha dos anos 1930. As duas atrizes estão muito bem, embora eu tenha demorado a me acostumar com o sotaque de Sophie Charlotte e sua personagem mais sisuda - em geral ela faz personagens mais sorridentes. O filme pode trazer, direta ou indiretamente, alguns questionamentos para o próprio espectador, a partir das angústias da personagem de Gabriela Correia. Outro destaque é o quanto aquilo que poderia ser teatro filmado se transforma em cinema, com uso de split-screen, escolhas de esconder ou mostrar o rosto de uma delas, ou nas cenas em que o filme se mixa a um documentário.

BETÂNIA 

Uma das vantagens de um filme como BETÂNIA (2024), de Marcelo Botta, existir está principalmente em mostrar o quanto o Brasil é imenso, o quanto temos vários brasis, e o quanto o cinema maranhense e a própria cultura popular do Maranhão ainda se faz distante do que é veiculado em nossas salas de exibição. A história se passa em vilarejos nos Lençóis Maranhenses, que se mostram tão belos quanto ameaçadores em sua grandiosidade. Diria que se trata de um filme-coral que se pretende maior do que consegue ser em sua capacidade de trazer sensibilidade ao drama dos personagens, encabeçados principalmente por Betânia (Diana Mattos), uma parteira de 65 anos que não quer sair da casa onde cresceu, e que quase perde o protagonismo para Tonhão (Caçula Rodrigues), o guia de turismo responsável pela cena mais divertida. Achei curiosa a escolha por uma fotografia pouca luminosa, como que não aproveitando a luz do estado. Ou talvez tenha sido essa a intenção: trazer mais lusco-fusco do que sol a pino. E de certa forma isso representa um pouco do espírito agridoce do filme.

PELE FINA

A princípio, PELE FINA (2022), de Arthur Lins, me lembrou o inglês BRUXAS, de Elizabeth Sankey, por começar com imagens de outros filmes que retratam a mulher em situações de angústia ou algo parecido. Mas depois essas imagens (ricas) saem de cena e um texto incomodamente teatral começar a dar as cartas, especialmente quando a personagem de Ingrid Trigueiro, uma dramaturga buscando inspiração para trabalhar numa cidade litorânea da Paraíba, passa a explorar tanto suas próprias aflições quanto o texto da dramaturga inglesa Sarah Kane, que se suicidou aos 28 anos e que começa a assombrar a protagonista. O filme sai de vez em quando desse registro mais teatral quando deixa as falas e mostra o mar e o mistério da noite, mas isso não quer dizer que tenha me ganhado. O que eu gosto e admiro, além de algumas cenas com Tavinho Teixeira, é essa coisa de ser cinema de guerrilha, feito com poucos recursos e muita vontade de pôr para as telas aquilo que lhe é caro.

domingo, maio 18, 2025

EMMANUELLE



São tantos os filmes vistos e que eu gostaria de refletir mais aprofundadamente a respeito, que eu fico até zonzo diante de qual escolher. E aí se junta a uma fase um tanto diferente da minha vida que me chama também para resolver coisas práticas, situações familiares e de organização de minha vida presente e futura. Mas aproveito esta tarde de domingo para escrever um pouco sobre este filme que me deixou particularmente intrigado. Serve tanto para pensarmos o olhar feminino sobre o desejo sexual, como também sobre nossas próprias expectativas quanto ao erotismo, que durante muito tempo foi produzido e idealizado quase que exclusivamente pelos homens. O que não quer dizer que eu tenha mudado minha relação com BABYGIRL, de Halina Reijn, que continuo achando um filme constrangedor em muitos aspectos.

Já EMMANUELLE (2024), de Audrey Diwan, já vejo de outra maneira. A intenção da diretora do soco no estômago chamado O ACONTECIMENTO (2021) talvez nem seja fazer um filme erótico. Ou melhor, não como aquele lá de 1974, de Justin Jaeckin, que supostamente teria servido de base para a realização deste novo, pelo olhar de uma cineasta feminista e com interesse em discutir temas não apenas contemporâneos, mas urgentes e necessários. Sendo que o filme de Diwan é muito distinto, sem falar que não tem interesse em promover tanto a exploração do corpo feminino, o que para alguns expectadores pode ser frustrante, mas hoje em dia vivemos noutro tempo: com nudez e erotismo na palma da mão (me refiro ao celular, para deixar claro). Então, falta de opção para ver o sexo fora do cinema não falta. 

Se O ACONTECIMENTO tratou do aborto de maneira chocante, urgente e humanista, em EMMANUELLE a cineasta trata do desejo de uma mulher, e faz isso com muita elegância e com sequências até intrigantes, como a cena da falta de energia no hotel ocasionada por uma tempestade. Essa cena me fez pensar sua importância no contexto do filme como um todo, mas é uma das melhores e uma das que mais pode trazer simbolismos sobre as aflições dessa mulher, vivida por Noémie Merlant, atriz mais lembrada pelo ótimo RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS, de outra cineasta contemporânea que soube explorar muito bem o erotismo, Céline Sciamma.

EMMANUELLE é um filme claramente de blocos. Começa com a cena no avião, com a heroína sentindo atração por um passageiro ao lado e criando uma fantasia sexual dentro do toalete da aeronave; depois há as várias cenas no hotel em Hong Kong, as conversas com a gerente, vivida por Naomi Watts, os encontros com a jovem garota de programa (Chacha Huang) que usa o lugar com a permissão não declarada dos gestores do hotel, com as conversas com o homem misterioso por quem ela se sente atraída (Will Sharp). E é com este homem que acontecerá a cena mais interessante, inclusive do ponto de vista erótico, do filme.

Audrey Diwan pode até nunca mais fazer uma obra tão poderosa quanto O ACONTECIMENTO, mas recebi esta sua reinvenção de EMMANUELLE de peito aberto, possivelmente já considerando que o tipo de erotismo apresentado é de outra natureza: menos gráfico, menos exploratório, como era de se esperar, mas não menos interessante se o aceitarmos como ele é e não como gostaríamos que fosse.

Trata-de um filme sobre a solidão de uma mulher, de sua frustração com as amarras de sua vida de fiscalizadora de hotéis de luxo e de seu encontro com um homem que lida com o desejo de forma diferente dela. E é a relação que se constrói entre eles que torna a última terça parte do filme especial, com pelo menos uma cena que muito provavelmente será uma das mais lembradas do ano. Sem falar que eu adoro o jeito como o filme termina, como numa provocação inteligente para o cinema pornô de olhar e interesse muito mais masculino.

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AS AVENTURAS DE UMA FRANCESA NA COREIA (Yeohaengjaui Pilyo)

Desde A MULHER QUE FUGIU (2020) que não víamos um filme do Hong Sang-soo em nosso circuito. Acho que o problema é que as distribuidoras não conseguem acompanhar o seu ritmo: desde A MULHER... foram seis longas e dois curtas até chegar neste AS AVENTURAS DE UMA FRANCESA NA COREIA (2024), que acredito que só tenha sido adquirido pela distribuidora brasileira por causa da presença de Isabelle Huppert. E gosto do filme, mas é também possível entender o cansaço de ver suas repetições (tanto a repetição de ideias quanto de estrutura). E o interessante é que gosto do filme enquanto ele trabalha de maneira mais explícita com essas repetições. Quando chega a mãe de um dos personagens e bagunça a ordem do que estava sendo mostrado, deixei de me interessar tanto assim. Interessante como Sang-soo gosta de mostrar os coreanos como pessoas idiotas frente a um estrangeiro ou pelo menos a uma mulher bonita, como a Huppert. O filme trata da dificuldade de expor seus sentimentos e isso fica ainda mais claro quando se tenta fazer isso através de uma língua estrangeira de pouco domínio. Cada vez que Huppert pega o caderninho para escrever sua tradução do que a pessoa falou ela escreve de forma mais aprofundada, já que escreve com sua língua materna. O inglês aqui é língua franca, mas uma língua que também provoca confusão entre os falantes, caso de quando a personagem de Huppert não entende o significado de guinea pig.

SIDONIE NO JAPÃO (Sidonie au Japon)

Da série "não sei se conto como visto, por causa do sono", SIDONIE NO JAPÃO (2023), de Élise Girard, filme curioso estrelado por Isabelle Huppert não me pegou no melhor momento do dia. Ainda assim, deixo registrado, por mais que até sonhos meus tenham se misturado com a história desta escritora que parou de escrever, mas aceita o convite para estar presente em uma reedição de seu primeiro livro no Japão. Enquanto aprecia a cultura nipônica, ela é constantemente visitada pelo fantasma de seu falecido marido. Trata-se de um filme sobre mortes e renascimentos, mas principalmente mortes, já que o próprio Japão é um país que cresce à sombra (e sob a proteção) de seus antepassados.

LISPECTORANTE

Este é o quinto longa-metragem de Renata Pinheiro. Só havia visto dela o simpático AMOR, PLÁSTICO E BARULHO (2013), o bom terror psicológico AÇÚCAR (2017), coassinado por Sérgio Oliveira, principal diretor, e CARRO REI (2021), filme premiado, mas que está bem longe de ter me ganhado. Então, não sabia muito o que esperar desse drama estrelado por Marcélia Cartaxo. Na verdade (e infelizmente), ela segue em LISPECTORANTE (2024) o caminho de CARRO REI, até mesmo com uma cena que lembra uma sci-fi de baixo orçamento. Achei bem difícil me envolver com a história de Glória (Cartaxo), mulher recém-separada que volta para a casa da família e vê que sua tia está sofrendo os maus tratos de um homem também da família (Tavinho Teixeira). Ao mesmo tempo, ela começa a se envolver afetivamente com um sujeito que mora na rua e vive de vender artesanato estilo hippie. Pra mim o filme funciona pouco nas cenas das relações humanas e funciona menos ainda quando experimenta um registro mais surrealista ou algo parecido. Quanto a Clarice Lispector, explicitamente há muito pouco dela.

sábado, maio 17, 2025

TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE (All the President's Men)



No início de minha cinefilia, uma das sessões que mais me deu prazer foi a de ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA (1990), no saudoso Cine Fortaleza. Lembro que fiquei encantado com o clima do filme, com o tom da fotografia, com o aspecto mais adulto do enredo. Inclusive, é um filme que seria interessante rever. Na época, acho que já sabia dos filmes de paranoia e política que o diretor Alan J. Pakula havia realizado na década de 1970. Havia visto A TRAMA (1974) na televisão, mas até hoje não vi KLUTE – O PASSADO CONDENA (1971), apesar de seu cartaz tão atraente. E só agora há pouco terminei de ver TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE (1976), de um BluRay da Warner que meu amigo Zezão havia me emprestado há séculos e acho que deve até ter se esquecido.

Senti vontade de ver finalmente o filme ao ouvir por esses dias um episódio antigo do Podcast Filmes Clássicos (um achado, esse podcast!), sem medo de spoilers ou coisa do tipo. E meu retorno ao filme neste momento (retorno, pois cheguei a comer a vê-lo meses atrás, ou anos) foi ótimo pois pude perceber com mais atenção certos detalhes, seja a fotografia do "Príncipe das Trevas" Gordon Willis, que valoriza tanto a escuridão quanto a profundidade de campo na redação do jornal, sejam as interpretações magistrais de Robert Redford e Dustin Hoffman (principalmente Hoffman, com seu estilo mais elétrico). É também admirável a montagem, de Robert L. Wolfe, parceiro de Sam Peckinpah, e que em TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE consegue fazer com que um filme que se passa num jornal consiga ganhar ares de suspense intenso, graças a cortes espertos e escolhas muito inventivas.

O grau de verdade que eles passam para a história é incrível e vendo os extras sobre os bastidores da produção, tudo fica ainda mais impressionante. O idealizador do projeto é Robert Redford, que leu o livro e ficou interessado em fazer um filme protagonizado não pelas pessoas que trabalharam com Richard Nixon e foram implicadas, mas com o próprio ofício, com a investigação dos dois. Assim, Redford e Hoffman passaram um tempo junto com os verdadeiros jornalistas de modo a ficarem mais parecidos com eles. Houve também todo um interesse em fazer o mais próximo possível de uma rotina de um jornal, muito diferente do que Hollywood até então mostrara. Alan J. Pakula foi escolha de Redford, ele entraria depois da escolha dos atores. Foi escolhido por seu estilo mais clássico. E também, muito provavelmente por seus dois thrillers de paranoia que fizeram história.

Ficar um bocado perdido com tantos nomes e tantas conexões que os jornalistas ligam faz parte dessa sensação de estar buscando uma agulha num palheiro. É fascinante ver como era aquele mundo pré-internet, com dados tendo que ser buscados em cada pequeno documento, como cartões de biblioteca, em cada declaração pessoal sequer dita com todas as palavras por testemunhas temerosas de denunciar o maior escândalo da história da política americana, o que levou Richard Nixon a renunciar. Achei também interessante mostrar os dois repórteres investigadores como homens solteiros totalmente devotados a seu ofício, quase não dormindo, com tanta coisa para ser investigada, tantas peças para montar um quebra-cabeças que demora até a fazer sentido quando a narrativa vai chegando a princípio para o editor-chefe do jornal, vivido por Jason Robards.

TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE foi indicado ao Oscar de melhor filme no mesmo ano de TAXI DRIVER, de Martin Scorsese, REDE DE INTRIGAS, de Sidney Lumet, ROCKY, UM LUTADOR, de John G. Avildsen, e ESTA TERRA É MINHA TERRA, de Hal Ashby. Foi um ano incrível. O filme de Pakula e Redford ganhou em quatro categorias: melhor ator coadjuvante para Jason Robards, melhor roteiro adaptado para William Goldman, melhor direção de arte e melhor edição de som. Inclusive, como vi em som DTS-HD, fiquei impressionado com esse trabalho em especial.

+ TRÊS FILMES

VITÓRIA

Fernanda Montenegro está maravilhosa como uma senhora idosa e muito frágil que ousa filmar os crimes acontecendo na janela de seu apartamento, uma vez que ninguém parece querer fazer nada a respeito (dos tiroteios, do tráfico de drogas, das crianças pegando em armas). Quando até a polícia é corrupta, o que fazer? Embora tenha gostado do resultado, fiquei me perguntando como seria se Breno Silveira tivesse conseguido tocar o projeto. A morte precoce de um diretor tão sensível é muito triste. Mas Andrucha Waddington faz, sim, um belo trabalho em VITÓRIA (2025), sabendo colocar a câmera nos locais certos para nos deixar em estado de aflição até numa simples passagem para o outro lado da rua da personagem de Fernandona. Mas a cena que mais me tocou acontece no final, depois que a protagonista passa por todo o sufoco e abraça a amiga vivida por Linn da Quebrada. Que lindo que é aquela cena. Alan Rocha, como o repórter investigativo, também está muito bem. Parece ser um personagem saído dos filmes americanos de jornalismo. E falo isso como um elogio.

OSTENDE

É difícil ver TRENQUE LAUQUEN (2022) e não ficar interessado na filmografia pregressa de Laura Citarella. E vendo os títulos que ela já realizou, este OSTENDE (2011) foi o que mais me chamou a atenção: primeiramente por também trazer Laura Paredes, certamente uma das melhores atrizes da Argentina e provavelmente da América Latina, e depois por também ser uma história ambientada numa cidade pequena e com um plot de suspense, mas aquele tipo de suspense mais cheio de poros, de respiros, mas com uma clara influência de Hitchcock, em especial de JANELA INDISCRETA. Na trama, Paredes é uma jovem mulher que espera o namorado num hotel à beira-mar e enquanto isso percebe o comportamento estranho de certos hóspedes, principalmente de um homem velho que está junto a duas mulheres mais jovens. Destaco pelo menos duas cenas: uma em que a protagonista está em seu quarto e ouve barulhos estranhos no quarto ao lado, e outra, em que ela persegue o velho e uma das mulheres, com a câmera fazendo um jogo interessantíssimo de foco e desfoco. Há um momento também especialmente incômodo, mas acredito que é proposital, que é a do longo monólogo do atendente da lanchonete e sua ideia para um filme. Citarella economiza na trilha sonora, o que confere ao filme até um mistério maior, e utiliza a música de forma pontual e acertada. OSTENDE não está no mesmo nível de TRENQUE LAUQUEN, mas é bem possível que a obra-prima da realizadora não existisse se não fosse a experiência dela com este trabalho de 2011.

QUEM A VIU MORRER? (Chi L'ha Vista Morire?)

Dos dois gialli de Aldo Lado este segue um padrão mais próximo do estabelecido nos anos de ouro do subgênero. E talvez por isso eu ainda prefira A BREVE NOITE DAS BONECAS DE VIDRO (1971), seu trabalho anterior, bem mais inventivo e original, da estrutura à premissa. Este tem também o seu charme e há uma semelhança com a trama de INVERNO DE SANGUE EM VENEZA, de Nicolas Roeg, que só seria lançado no ano seguinte. Nos extras do box Giallo Vol. 8 há um comentário muito interessado de um crítico americano em que ele faz um rápido mas muito curioso paralelo entre os dois filmes. Em QUEM A VIU MORRER? (1972), George Lazenby é um escultor divorciado cuja filha pequena vai visitá-lo em Veneza. Logo essa menina será vitima do mesmo assassino (ou assassina) de crianças que mata uma menina no prólogo. O fato de ser um assassino com roupas de mulher acaba lembrando PSICOSE, e o filme vai seguindo uma linha natural de deixar pistas e personagens para imaginarmos quem é o assassino. Diferente do filme de Roeg, este não é exatamente um filme sobre luto: há um gosto maior pelo gênero, pela fixação nas mortes e no mistério e na construção cênica do que nos sentimentos dos personagens, ou mesmo no terror em si. A personagem de Anita Strindberg (NO QUARTO ESCURO DE SATÃ) é bem subaproveitada, quase como se não soubessem o que fazer com ela.

domingo, maio 04, 2025

PROIBIDO! (Verboten!)



“At the most basic level, Fuller’s films revolve around the themes of war and marriage, reciprocity of hate and reciprocity of love”.
Peter Wollen em
Samuel Fuller (editado por David Will e Peter Wollen)

Curioso que só agora, lendo esse trecho acima do livro-ensaio de Wollen sobre Samuel Fuller, que comecei a perceber o quanto o casamento também é um tema caro ao cineasta. No caso de PROIBIDO! (1959), isso fica mais evidente. Afinal, a trama é sobre um soldado americano que, durante um tiroteio na Alemanha ainda não vencida pelos aliados, se abriga numa casa e é salvo por uma mulher alemã, por quem se apaixona e deseja se casar, apesar de todo o tabu existente entre relacionamentos entre americanos e alemães na época. A opinião geral é que todo alemão seria necessariamente um nazista. Outros filmes de Fuller que tratam do casamento de forma mais explícita: O BARÃO AVENTUREIRO (1950), CASA DE BAMBU (1955), NO UMBRAL DA CHINA (1957) e RENEGANDO O MEU SANGUE (1957).

O que chama a atenção logo de cara em PROIBIDO! é que se trata de um filme de guerra de Fuller que se passa na guerra que ele próprio lutou, a Segunda Guerra: em seus trabalhos de guerra anteriores, ele optou por lidar com outros conflitos, como a Guerra da Coreia (CAPACETE DE AÇO e BAIONETAS CALADAS, 1951), da Indochina (NO UMBRAL DA CHINA), a guerra fria dentro de um submarino (TORMENTA SOB OS MARES, 1954) ou a situação de um país dominado por outro no pós-guerra, retratado no excelente CASA DE BAMBU (1955).

Assim, temos agora Fuller, que por mais que tenha feito muitos filmes de guerra era contrário à política armamentista americana e considerava a guerra uma espécie de insanidade organizada, falando sobre um tema que o distanciaria um pouco das acusações de ser um fascista. A história se passa nos dias finais da guerra, e depois no período de ocupação americana na Alemanha, quando líderes da resistência nazista ainda tentaram fazer um grupo para incitar um novo levante, a organização Werwolf. De certa forma, acaba sendo mais confortável para Fuller lidar com essa relação entre americanos e alemães do que lidar com o comunismo ou com a simpatia a um soldado confederado, como é o caso de RENEGANDO MEU SANGUE.

A primeira trama de PROIBIDO! gira em torno do relacionamento entre um soldado (e depois ex-soldado) americano com uma mulher alemã, o que era algo considerado "verboten", ou seja, proibido. Para os americanos, aquela mulher só queria se aproveitar das boas condições do jovem americano, não seria um relacionamento nascido do amor. E em determinado momento também passamos a pensar assim também, o que é curioso pois tira o filme de uma aparente simplicidade de abordar uma paixão proibida. Tanto que depois essa questão é deixada de lado na segunda metade do filme, mais focada na política e nesse grupo de neonazistas.

Gosto de como Fuller utiliza cenas reais enxertadas em seu filme, dando tanto um ar de realismo e um tom documental, quanto deixa claro a produção modesta do filme, já que Fuller havia deixado a Fox e também age como produtor aqui. PROIBIDO! é menos virtuoso do que DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957), seu trabalho anterior, mas tem uma cara muito própria. Além do mais, PROIBIDO! é um dos primeiros filmes a tratar do Julgamento de Nuremberg, inclusive trazendo imagens de arquivo do próprio julgamento e dos campos de concentração nazistas.

+ TRÊS FILMES

ANTÔNIO BANDEIRA – O POETA DAS CORES

Um caso de filme que adota uma estrutura tradicional de documentário e que por isso fica refém de seu conteúdo. E acaba fazendo com que gostar ou não dependa de nosso interesse por artes plásticas, pela história do artista ou até mesmo pelo contexto histórico em que seu drama acontece. Eu não conhecia Antonio Bandeira de ouvir falar; muito por minha ignorância em pintura, e por isso o filme preenche uma boa lacuna. Mas ANTÔNIO BANDEIRA – O POETA DAS CORES (2024), de Joe Pimentel, chega a incomodar um pouco o excesso de tom laudatório em torno do artista, como se fosse um vídeo institucional. Gosto das partes em que vemos (ouvimos, melhor dizendo) sobre sua chegada na França do imediato pós-guerra, assim como acho curioso seu trabalho artístico, ainda que não tenha simpatizado muito com os textos do artista, talvez por serem muito conscientes de sua grandeza.

SEM CHÃO (No Other Land)

Eu diria que SEM CHÃO (2024), do coletivo formado por Yuval Abraham, Basel Adra e Hamdan Ballal, é mais um filme necessário do que exatamente bom em seus aspectos formais e artísticos. E é necessário não apenas por mostrar as atrocidades que o Estado genocida de Israel faz com o povo palestino, mas por trazer visibilidade quando há tão pouca. Não adianta os telejornais falarem de guerra quando o que existe nem é uma guerra, mas um extermínio cruel. O filme vencedor do Oscar de melhor documentário (e isso sim foi bom para dar visibilidade ao trabalho) nem chegou a mostrar o horror dos últimos anos em Gaza, já que o que é apresentado é de filmagens até 2023 e em um território de nome Masafer Yatta, que consiste num habitado (ou que era habitado) por vilarejos palestinos. Ao lado deles, alguns colonos israelenses do outro lado de uma cerca, vendo e depois "participando" do massacre de famílias, que são primeiro desprovidas de casa e depois de outras necessidades básicas. SEM CHÃO pode até não mudar a realidade do que está acontecendo, mas pode ajudar a somar ao tanto de indignação que já existe diante de tanta desumanidade.

AS CORES E AMORES DE LORE

Acho que os momentos que mais me interessaram em AS CORES E AMORES DE LORE (2024) foram aqueles em que a pintora Eleonore Koch, em entrevista ao diretor Jorge Bodanzky, busca, como numa sessão de terapia, encontrar respostas nem sempre fáceis para as perguntas, como por exemplo, a escolha por não ter casado ou suas confidências sobre os amores da juventude ou da vida anterior à velhice. Gostei mais da vida do que da arte, a pintura em si, embora ter explorado esse aspecto também seja fundamental, já que a pintura foi a razão de viver da mulher. Também gosto de como Bodanzky faz um cruzamento da vida de Koch com a vida de sua mãe, que foram contemporâneas e viveram na Alemanha, sendo que ambas tiveram que fugir e se exilar no Brasil por causa da caça aos judeus pelos nazistas. É um filme que parece incompleto, que demorou tanto a ser feito que é como uma pintura cujo artista resolve finalizar depois de muito olhar para ela, muito mexer nela. O que não quer dizer que não tenha um bom epílogo.

sábado, maio 03, 2025

THUNDERBOLTS*



Os anos 2000 foram gloriosos para a Marvel. Até porque a editora vinha de uma quase falência e se reergueu quando passada para mãos que souberam muito bem o que fazer. Da equipe criativa, o grande nome da companhia que fez acontecer foi Brian Michael Bendis, que comandou os títulos dos Novos Vingadores, do Demolidor, da Jessica Jones (Alias) e do Homem-Aranha Ultimate, além de comandar sagas que foram geralmente mal-aproveitadas no cinema e na televisão, como Invasão Secreta, Dinastia M, Guerra Civil e Reinado Sombrio.

As ideias para os Vingadores que ele teve para os dois títulos dos maiores super-heróis da Terra, que funcionavam como eixo para os demais títulos, inclusive do Capitão América de Ed Brubaker e o Thor e o Homem-Aranha, ambos de Straczynski, entre outros, foram as mais utilizadas nos filmes dos estúdios Marvel. E continuam sendo, conforme pudemos atestar neste THUNDERBOLTS* (2025), assinado por um nome pouco conhecido, Jake Schreier, de CIDADES DE PAPEL (2015). 

E que bom que desta vez a Marvel acertou, e justo quando menos esperávamos algo minimamente interessante, depois do horrível resultado de CAPITÃO AMÉRICA – ADMIRÁVEL MUNDO NOVO, o filme que daria um restart nessa parada estratégica da companhia. O último resultado realmente positivo havia sido com GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3, dirigido pelo cara que foi para a Distinta Concorrência. Agora o chefe de criação do estúdio precisou repensar muita coisa depois de ter pisado no freio e arriscou, quem diria, um filme sobre depressão. O que é algo que vai na direção contrária do tom geralmente mais engraçadinho do Universo Cinematográfico Marvel.

Não que não haja momentos para fazer rir, mas eles são eclipsados pela dor dos personagens, por seus traumas, que chegam, inclusive, a uma mente não muito saudável, que é de um personagem muito importante dos quadrinhos da Marvel dos anos 2000, e que aparece de maneira criativa em THUNDERBOLTS*. Como tenho percebido nas críticas que muitos estão evitando dizer quem é o personagem, então, vou tentar evitar algum spoiler, mas posso adiantar que, para quem gosta do personagem, e de como ele também veio de uma ideia genial de Bendis para os Vingadores, embora não tenha sido uma criação sua, o resultado no filme é muito satisfatório.

Não acredito que a escolha do diretor para o filme tenha sido pensando em sua obra pregressa. É possível que a Marvel tenha desistido de queimar muitos autores que são tolhidos de suas obsessões em prol de um filme para a indústria e em vez disso optam por uma pessoa que dê conta do recado, sendo comandado pelas rédeas dos produtores. Talvez o que conte mais seja o roteiro, que conta com a presença de Kurt Busiek, grande mestre das HQs, de obras como a longeva Astrocity e a marcante minissérie Marvels. Ou seja, é a Marvel do cinema precisando se render ao talento dos roteiristas dos quadrinhos até no resultado para o cinema.

Afinal, a fonte pode secar se as mais novas histórias da Marvel (dos quadrinhos) não se tornarem tão atraentes e boas quanto foram nos anos 2000, que ainda é, como pode se ver neste filme, a maior inspiração para a criação desses filmes – para os anos 2010, a Marvel ainda pode beber na fonte de quadrinhos do Surfista Prateado, do Imortal Hulk e do Gavião Arqueiro, se forem espertos o suficiente.

As cenas de ação de THUNDERBOLTS* são boas e não apelam para a montagem picotada, valorizando as cenas de combate corporal. Porém, os diálogos não ficam muito atrás: na verdade, eles são a base de sustentação do filme, são de onde saem as aflições de Yelena Belova, John Walker e do personagem de Lewis Pullman, entre outros. Ao que parece, filmes como os da franquia John Wick têm mostrado que aquele estilo de ação picotada não está mais sendo apreciada pelos espectadores, que querem assistir as lutas. Nesse sentido, Florence Pugh está mandando muito bem, assim como Sebastian Stan e Wyatt Russell.

Esses atores, inclusive, além do já citado Lewis Pullman, que faz o Bob, conferem um tipo de “realidade” que é muito bem-vindo a um subgênero de filme geralmente escapista. Não que você saia do cinema deprimido, como se sai com BATMAN, de Matt Reeves, esse sim um filme depressivo: THUNDERBOLTS* estaria mais naquele meio termo, em que somos lembrados dos demônios interiores, que nos arrastam para lugares terríveis da mente e até para a morte, em casos crônicos, mas que há no ar algo de doce. E está aí a força deste filme aparentemente mais modesto da Marvel: saber lidar com os tormentos da vida real, transferindo-os para personagens de um mundo colorido. Em certo momento, temos a impressão de estarmos vendo um filme de horror.

Eis um filme bem resolvido, bem orquestrado e que funciona tanto como obra à parte quanto mais um tijolinho nesse universo que a Marvel/Disney insiste em manter de pé. E com razão, se julgarmos o hype em torno de QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS, que vem aí em julho. E por falar nisso, não deixe de ficar até a última cena pós-créditos.

+ TRÊS FILMES

UNTIL DAWN – NOITE DE TERROR (Until Dawn)

Que bom que David F. Sandberg voltou para o terror depois de ter dirigido dois filmes do SHAZAM!, (2019, 2023). Ele ainda não é um diretor que tem um grande filme no currículo, mas curiosamente ele tem se especializado, por assim dizer, em adaptações ou continuações ou prequels. Casos de QUANDO AS LUZES SE APAGAM (2016) e ANNABELLE 2 – A CRIAÇÃO DO MAL (2017). Até considero o filme da boneca diabólica seu trabalho mais elegante e eficiente. Mas UNTIL DAWN – NOITE DE TERROR (2025) é bem interessante. Aproveita a ideia do game da Playstation e constrói uma espécie de slasher com uma história de loop temporal. Ou seja, desde o início já me ganha, e até os personagens são bem-desenvolvidos, até onde se pode desenvolver dentro de uma narrativa rápida, embora irregular. Sandberg sabe fazer uma boa conclusão, quando a repetição do loop começava a cansar. Gostei muito da scream queen Ella Rubin, que apareceu discretamente em ANORA. É uma moça que tem presença de cena e que deve ter um belo futuro.

A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS (La Plus Précieuse des Marchandises)

O mais bacana de A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS (2024), de Michel Hazanavicius, é que é um filme que talvez não funcionasse tão bem se não fosse apresentado assim, em animação, e usando um tipo de traço muito próprio, que enfatiza tanto o tom fabular quanto as imersões na realidade brutal, especialmente quando nos mostra imagens do holocausto. Desde o começo, o tom fabular se destaca, com a bebê surgindo para ser criada pela esposa do lenhador, que demoraria um tanto para aceitar a criança. Depois ficamos sabendo do contexto histórico em que a criança é judia, e portanto odiada pela população daquele vilarejo. Como a a história se passa durante a Segunda Guerra, é possível perceber que o antissemitismo já havia se instalado nas mentes daquelas pessoas. Gosto da conclusão, de como se reflete sobre a natureza verídica ou mítica de certas histórias.

BRUXAS (Witches)

Meu maior interesse pelo documentário BRUXAS (2024), de Elizabeth Sankey, foi pelo passeio pelas (belas) imagens de filmes que mostram a representação de mulheres como bruxas ao longo de várias décadas de cinema (e um pouco até da televisão). Tanto que quando o filme fica mais quadrado e foca na experiência da diretora com depressão pós-parto, a narrativa trava um pouco, perde um bocado da força, por mais que muitas das histórias e depoimentos sejam bem impactantes. De todo modo, gosto de como a terceira parte volta a se conectar com as bruxas e faz isso de maneira muito inteligente, e nos faz perceber o quanto o fato de haver uma alta taxa de suicídio de mulheres no Reino Unido pode estar associado a um passado de séculos de queima e suicídio de mulheres, de perda do papel da mulher como curandeira, enfermeira, parteira e detentora de conhecimentos milagrosos, a partir da chegada dos médicos homens profissionais, na transição do mundo medieval para o período moderno. Quanto às imagens apresentadas, sempre bom quando aparece um filme do Bava, ou uma relação com O MÁGICO DE OZ e outros tantos filmes, principalmente de horror e de fantasia.

domingo, abril 27, 2025

OS DESAJUSTADOS (The Misfits)



why do I feel
this torture?
or why do I feel less
of a human being than others
(Always so of felt in
a way that I’m sub-human
why
in other words
I’m the worst
why?)


Marilyn Monroe em Fragmentos – Poemas, Anotações Íntimas e Cartas de Marilyn Monroe (p. 121)

Achei difícil ver OS DESAJUSTADOS (1961), de John Huston, e não pensar na Marilyn Monroe, no quanto a personagem que ela interpreta carrega muito de si, de sua sensibilidade, de suas inquietações, de suas fragilidades e também de sua alta inteligência e percepção do que está errado no mundo. E Huston, por mais que tenha também a fama de ser esse diretor que é capaz de deixar de lado um set de filmagens para matar um elefante na África, nas gravações de UMA AVENTURA NA ÁFRICA (1951), fato muito bem explorado no excelente CORAÇÃO DE CAÇADOR, de Clint Eastwood, por mais que tenha a fama de carrasco, há também em seus filmes um tipo de sensibilidade que só faz com que achemos a raça humana ainda fascinante em suas contradições.

E em OS DESAJUSTADOS ele parece, sim, ser essa pessoa que tenta se questionar sobre a decadência ou pelo menos a falta de sentido do mundo patriarcal e muito acostumado com a violência. Eu não estava nada preparado para as cenas dos cavalos, que me deram mesmo aflição, mas isso acontece principalmente pois a personagem de Monroe representa muito bem a sensibilidade dentro daquele mundo masculino decadente dos caubóis, representado principalmente pelo personagem de Clark Gable. Acredito que seja a melhor interpretação de Marilyn, além de ser sua última num filme completo, acabado.

Também foi o último filme de Gable, com seu personagem que lamenta os rumos que deu a sua vida, e que vê naquela loira bonita, carinhosa e sem rumo a chance de ser feliz novamente. Além do mais, é um dos últimos de Montgomery Clift, como o caubói que vive uma vida de sacrifício autoimposto, como se quisesse, de alguma maneira, esquecer as angústias através da dor física. O próprio Clift já era, como ator de Hollywood, uma figura carregada de certa tragédia no próprio olhar. Alguns poucos filmes com ele seriam lançados posteriormente, inclusive um dirigido pelo próprio Huston, FREUD – ALÉM DA ALMA (1962), mas já faziam parte da fase de decadência física e emocional do astro. Marilyn, em suas memórias, chegou a descrever Clift como “a única pessoa que conheço que está pior do que eu”. Ou seja, é como se o roteiro de Arthur Miller tivesse sido escrito para Clift, que vivia numa espécie de longo suicídio, de vida de autodestruição.

Por isso OS DESAJUSTADOS é carregado de um simbolismo de fim de uma era para Hollywood, ao vermos a antecipação tripla da morte de figuras tão importantes para a história do cinema americano. E o filme trazer essa sensação de fim, de crepúsculo, de melancolia e angústia, de maneira tão intensa, como se estivesse simplesmente captando com antenas o zeitgeist, só isso já o coloca como uma das obras mais fundamentais do cinema americano.

Na trama, Marilyn Monroe é como uma lâmpada que atrai mosquitos, no caso, os três homens do elenco principal: Gable, e Eli Wallach. Ela é Roslyn, uma mulher separada depois de um relacionamento abusivo, que conhece num bar Gay Langland, um velho caubói vivido por Gable, que a convida para conhecer o rancho de um amigo, o personagem de Wallach, um piloto de aviões também separado depois de um casamento fracassado. É lá nessa casa rústica que os dois, Gay e Roslyn, tentarão uma vida amorosa juntos.

OS DESAJUSTADOS tem uma narrativa em compasso lento, ritmo que seria bastante adotado nos filmes da fase ainda mais tardia do diretor, como OS PECADOS DE TODOS NÓS (1967) e seu canto do cisne OS VIVOS E OS MORTOS (1987). Inclusive, falam maravilhas de CIDADE DAS ILUSÕES (1972) e sobre o quanto é um filme-irmão de OS DESAJUSTADOS, e por isso ele está em minha lista de interesses para este ano ainda. O filme-despedida de Monroe e Gable é uma obra sobre personagens fracassados em busca de segundas chances, e do quanto a sensibilidade de uma mulher é capaz de tornar visível a crueldade do homem. Só por isso, já me ganhou.

Por isso um grande dramaturgo faz uma diferença e tanto num filme. Aqui, Miller, então casado com Marilyn, escreve o roteiro e John Huston, ainda que já veterano àquela altura, faz um filme diferente do que se estava acostumado a se ver em Hollywood naquele momento. Por isso que muitas vezes essa coisa de fazer a divisão entre velha e nova Hollywood acaba sendo problemático, principalmente quando vemos algo desse tipo, que já antecipa bastante o tom que o cinema americano adotaria na década seguinte.

+ DOIS FILMES

BAD GIRLS GO TO HELL

Segundo filme de Doris Wishman que vejo – o anterior foi o infame LET ME DIE A WOMAN (1977), que imagino ser de um outro momento de sua carreira. Este BAD GIRLS GO TO HELL (1965) se encaixa num sexploitation que imagino que era novidade na década de 1960, um período em que se começou a ter mais liberdade para trazer nudez gráfica em filmes americanos, ainda que em obras mais marginais como esta. No entanto, como cinema exploratório do corpo feminino, é sempre bom lembrar que temos uma mulher atrás das câmeras e isso faz toda a diferença. A personagem principal é uma mulher que vive o inferno de se sentir perseguida, após fugir de Chicago depois de ter matado o homem que a estuprava. Usando um nome falso e sem dinheiro, nossa heroína sai em busca de um pouco de paz e alegria para reconstruir a vida em Nova York. O filme é mais sobre a crueldade do mundo patriarcal e covarde com a mulher, disfarçado de obra que explora o corpo nu ou em roupas transparentes. Isso serviria como chamariz. O filme me fez lembrar os primeiros trabalhos de Brian De Palma. E talvez por isso algumas pessoas comparem Wishman a Godard, já que De Palma também queria ser uma espécie de Godard americano.

UM COMPLETO DESCONHECIDO (A Complete Unknown)

Vi UM COMPLETO DESCONHECIDO (2024) sob circunstâncias adversas e numa sala não muito boa, mas o filme é tão bom de acompanhar que quase me esqueci dos problemas. Timothée Chalamet sai de DUNA para o papel de um jovem Bob Dylan. E o rapaz arrasa. Canta e toca violão/guitarra de verdade e não está nada afetado em sua personificação do cantor e compositor mitológico. Além do mais, o filme ainda conta com duas jovens atrizes tão belas quanto talentosas, a revelação Monica Barbaro como Joan Baez e a já famosa Elle Fanning como Sylvie Russo, a namorada de Dylan eternizada na capa do álbum The Freewheelin' Bob Dylan (1963). James Mangold faz aqui um filme que funciona como uma dobradinha perfeita com JOHNNY & JUNE (2005), inclusive com uma participação também de Johnny Cash como alguém que incentiva Dylan a fazer aquilo que deseja, a se libertar dos rótulos e do aprisionamento que ele sentia dentro da indústria da música folk, que ele nunca deixou de fazer, mas cuja virada, mais para o rock, a partir de 1965, foi vital para que o cantor se firmasse por tanto tempo como artista relevante e gigante. O legal do filme é que ele coloca momentos de insatisfação de Dylan e a mudança grande que aconteceria em '65 não acontece de uma hora para a outra para o espectador. Um clássico filme de cinebiografia, mas também uma obra que enfatiza o aspecto misterioso e selvagem da persona de Dylan, principalmente na cena final.

domingo, abril 20, 2025

PECADORES (Sinners)



A música ocidental seria muito pobre se não fosse a contribuição dos negros. Na verdade, se pensarmos bem, a música que até hoje resiste é nascida da criatividade e inventividade negra: o jazz, o blues, o rock, o r&b, o soul, o funk, o reggae, o pop, o samba, o rap, e por aí vai. Até mesmo a música country parece ter também influências da música negra em sua gênese. Ou seja, de um povo criado na dor de ter sido sequestrado, açoitado e ter sido tratado muito menos do que um objeto, pois objetos não são açoitados, nasceu uma das mais ricas contribuições para a cultura contemporânea. No caso da música negra norte-americana, ela ainda teve o agravante de ter a restrição de não se poder usar instrumentos de percussão. No entanto, os negros americanos souberam usar essa restrição a seu favor e criaram uma das músicas mais sofisticadas do mundo.

A metáfora dos vampiros, por isso, parece genial no filme de Ryan Coogler, pois é mais uma tapa na cara dos racistas, dos brancos que se acham superiores. E se pensarmos que os Estados Unidos foram um país que criou uma organização como a Ku Klux Klan e que enforcou pessoas negras ao longo dos anos, sem falar nas proibições de se usar o mesmo banheiro ou de se sentar em espaços diferentes do mesmo ônibus em certos estados do sul, isso só torna a história desse país ainda mais complexa. Por isso que falar dos Estados Unidos é também sempre lembrar de um legado de horrores. E por isso falar dos Estados Unidos também é pensar na alegria que sua música e sua cultura nos trouxeram.

Vendo PECADORES é que passo a entender o jogo de Ryan Coogler em trazer para si, ou melhor, para o protagonista negro, o que geralmente era de um protagonista branco. Aconteceu com CREED – NASCIDO PARA LUTAR (2015), criado a partir da franquia Rocky, sobre um boxeador ítalo-americano, e com PANTERA NEGRA (2018), um filme de super-herói da Marvel que coloca a cultura africana como superior, inclusive do ponto de vista da tecnologia, mas eu não estava preparado para um salto tão gigante como este seu novo filme.

Seu quinto longa-metragem é não apenas um dos mais criativos filmes de vampiros de todos os tempos, mas vai muito além disso, ao retratar a luta do homem negro no sul dos Estados Unidos em tempos de KKK ainda em atividade e ao falar de apropriação cultural. Mas o que mais me encantou mesmo foi mostrar a música como uma espécie de mágica, e como uma mágica que veio com o povo africano escravizado, uma música que faz parte do negro americano; diferente da religião, que foi imposta, e isso é mencionado no filme.

Aliás, Coogler às vezes soa quase didático (no bom sentido do termo), mas há muitos simbolismos mais sutis que merecem um pouco mais de atenção. A própria necessidade do vampiro de precisar que a pessoa o convide para entrar é também representativo do quanto o artista negro americano foi perdendo sua preciosa música para os brancos, de olho no que havia de melhor e prontos também para usufruírem daquela arte incrível, como é o caso do blues e do jazz, e mais adiante do rock também.

Uma das melhores cenas do ano (ou do século) é aquela que vemos a magia do blues perpassando presente, passado e futuro. E não consigo ver outra arte que não o cinema para apresentar aquilo de tal maneira. E essa cena especificamente é talvez o maior flagrante do grande talento de Coogler, que aqui se mostra à altura de um Jordan Peele, para citar um dos grandes mestres do cinema de horror da atualidade – ainda considero NÃO, NÃO OLHE! o melhor filme de terror dirigido por um cineasta negro, mas sei que existem muitas lacunas em minha cultura cinéfila ainda.

Sobre a trama, Michael B. Jordan interpreta dois irmãos gêmeos que voltaram de Chicago para sua cidadezinha do interior do Mississipi em 1932,com muito dinheiro após um período trabalhando para a máfia de Al Capone. Aliás, até a discussão acerca de todo dinheiro ser roubado ali nos Estados Unidos é muito interessante. Esses dois irmãos visitam o primo mais novo, Sammy, chamado de pastorzinho (Miles Caton), por ser filho de pastor, para que ele toque na inauguração de uma casa de espetáculos de blues na cidade. Depois, como em OS SETE SAMURAIS, saem em busca de pessoas que os ajudem na organização do evento, como um homem grande para ser o leão de chácara (Omar Miller), ou um bom músico vivendo na pior (Delroy Lindo) para ajudar na banda, ou uma cantora jovem (Jayme Lawson) etc. O elenco ainda tem Hailee Steinfeld, atriz de ascendência filipina e por isso combina bem no papel de alguém que tem sangue negro nas veias, como o interesse amoroso de um dos irmãos.

O filme lembra UM DRINK NO INFERNO, de Robert Zemeckis, no momento que os vampiros chegam para invadir o espaço. Ou melhor, pedindo para entrar, pois há um jogo muito interessante da trama de aproveitar certos conceitos de filmes e de literatura sobre vampiros, como o alho como elemento que os espanta ou causa dor, a luz do sol como elemento que os mata, além do uso da estaca no peito também. Nesse sentido, a personagem de Wunmi Mosaku como uma espécie de feiticeira, uma mulher detentora da sabedoria de magia e sobrenatural, essencial para a condução desse segundo momento do filme. Mas claro: por mais memorável que seja o filme de Zemeckis com roteiro de Tarantino, Coogler faz aqui um trabalho muito mais respeitável e sofisticado. Desde já um dos melhores do ano.

Ah, e quem puder, veja o filme numa sala IMAX! Faz toda a diferença!

+ DOIS FILMES

DROP – AMEAÇA ANÔNIMA (Drop)

Não sei se já dá para dizer que este é o filme de maturidade de Christopher Landon, vindo ele de obras mais lúdicas como A MORTE TE DÁ PARABÉNS (2017), sua continuação (2019) e a comédia de terror FREAKY – NO CORPO DE UM ASSASSINO (2020). Em DROP – AMEAÇA ANÔNIMA (2025), seu trabalho formal chega a ser impressionante, lembrando muitas vezes Brian De Palma, no modo como lida tanto com o suspense quanto com a câmera nervosa, captando os vários espaços de um restaurante chique. Na trama, mulher traumatizada vai a um primeiro encontro com um rapaz que conhece num aplicativo de relacionamentos, mas as coisas começam a ficar muito tensas quando ela recebe mensagens perigosas em seu celular. Creio que o filme captura bem o mundo em que vivemos. Enquanto via o filme, inclusive, sentia as notificações no celular em meu bolso e percebia o quanto esse aparelhinho que carregamos o tempo todo nas mãos ou no bolso é tóxico. Não que isso seja a moral da história, mas certamente um lembrete para o presente e uma marca documental para o futuro. O que temos é principalmente um filme pra lá de eficiente na condução do suspense e que realmente provoca arrepios em determinados momentos de perigo e tensão. Acredito que o cineasta passará a ganhar mais atenção para os próximos trabalhos que virão, dada a direção elegante e a condução impressionante de DROP.

O MACACO (The Monkey)

Talvez O MACACO (2025) seja o menos interessante da filmografia de Osgood Perkins, mas ainda assim tem seus méritos e um diferencial. Difere dos filmes de brinquedos ou bonecas amaldiçoados que existem por aí, tanto no tom, com um tipo de humor prevalecendo, quanto na maneira como a morte é tratada como algo inescapável, como diz a personagem de Tatiana Maslany a seus filhos adolescentes, quando os dois perdem uma pessoa querida num acidente horrível, logo após o macaco ter sido usado. Esse tom de quase desistência perante a morte é tanto uma força (pela originalidade) quanto uma fraqueza (pela falta de temor de nossa parte). O filme também não explora jump scares e por isso acaba fugindo do terror mais vulgar. Talvez haja uma aproximação maior com a franquia Premonição, pelo modo como se começa a esperar a próxima situação. E algumas delas realmente são bem surpreendentes, como a morte da tia ou a do sujeito que fica viciado no macaco. O MACACO é também um filme sobre a dificuldade de comunicação entre os familiares e sobre a ausência paterna. Não é tão plasticamente bonito como MARIA E JOÃO – O CONTO DAS BRUXAS (2020) e LONGLEGS – VÍNCULO MORTAL (2024), mas mantém o nome de Perkins como um dos principais do gênero da atualidade. Porém, é verdade que ainda falta a ele um grande filme no currículo.

segunda-feira, abril 14, 2025

ONDA NOVA



“Vale assistir aos seus divertidíssimos filmes, repletos de humor sacana e gaiato que não existe mais. E acima de tudo, pensar na arte como o gigante que engole o mundo, e que despreza a barreira misteriosa da morte, eternizando a vida”
ORMOND, Andrea.
Ensaios de Cinema Brasileiro – Volume II: Os Anos 1980 e 1990, p. 221.

O excerto acima de Ormond é sobre A ESTRELA NUA (1984), o terceiro da chamada trilogia do desejo de José Antonio Garcia e Ícaro Martins, estrelada por Carla Camurati. E lendo sobre este filme é que percebo que se trata de uma espécie de continuação ainda mais viajante de ONDA NOVA (1983), que já tem esse tom jazzístico, desinteressado com uma trama e muito afinado com certo espírito libertário.

Também li agora meu texto lá de 2010 sobre ONDA NOVA, escrito no calor do momento em que o vi, após ter recebido uma cópia do amigo Adilson Marcelino, e percebo que algumas impressões que tive vendo esta cópia nova remasterizada no cinema, como pensar certa semelhança com os filmes de Pedro Almodóvar, e o quanto me amarrei nas referências explícitas e verbais a Walter Hugo Khouri (não teria como), foram basicamente as mesmas. Mas claro que gostei muito mais agora, na revisão, no cinema, em imagem cristalina que valoriza a beleza das imagens, das cores, das atrizes, da alegria contagiante.

Ouvi dizer que os outros dois filmes da trilogia de José Antonio Garcia e Ícaro Martins estrelados por Carla Camurati, bem como O CORPO (1991), apenas de Garcia, também receberão o mesmo tratamento que ONDA NOVA recebeu. Olha que notícia maravilhosa, caso seja mesmo verdade (pois só acreditando vendo)! É possível dizer que o relançamento nos cinemas deste filme tenha sido um dos grandes acontecimentos deste início de 2025. Tanto para aqueles que já conheciam o filme e terem essa chance incrível de revê-lo na telona, quanto para quem não conhecia e considerava a obra de certa forma até um tanto esquecida.

O que não é bem verdade. Embora seja verdade, sim, que o próprio cinema de pornochanchada paulista, da Boca do Lixo, por mais que seja reverenciado e tenha sido resgatado por muitos críticos de alto gabarito a partir dos anos 2000, ainda sofra certa resistência e preconceito, inclusive por certa ala da crítica de cinema. O filme, por exemplo, não aparece na lista dos 100 melhores filmes brasileiros, segundo a Abraccine, e é bem provável que aparecesse, agora com esse relançamento, se um novo ranking fosse criado.

ONDA NOVA é uma delícia de ver do início ao fim (mesmo quando o pesadelo parece querer invadir o tom de alegria em dois momentos) e que apresenta um caráter transgressor até para os dias de hoje, dado o suposto aumento de "conservadores" no Brasil (e no mundo). Quem nunca viu os filmes da época vai estranhar a dublagem meio caótica, comum, na produção paulista, especialmente. Além de perceber também uma montagem mais brusca, mas sem perder o charme.

Não há um interesse em se construir um plot: é um filme coral muito livre que mostra um grupo de jovens de um time de futebol feminino no tempo em que esse esporte ainda era quase que exclusividade dos homens. Vejo ONDA NOVA também como uma celebração da liberdade, da alegria, do prazer e da juventude que insistia em rir, fazer sexo e ser feliz, mesmo em tempos em que a censura da ditadura ainda ditava as regras.

O avanço na sensualidade mais gráfica que o cinema brasileiro obteve na primeira metade dos anos 1980 é também diretamente proporcional à habilidade com que um grande número de diretores sabia filmar cenas de sexo. Corpos femininos e também masculinos desfilam nus pelo filme, sem pudor, sem medo de ser feliz. 

Sobre a semelhança com os trabalhos de Almodóvar, que nasceram com o fim do franquismo e por isso se apresentam assim tão desbundantes, tão celebratórios e ousados, o filme brasileiro tem mais alegria, na comparação, mas isso tem mais a ver com o espírito mais festivo de nosso povo, e também do quanto nosso cinema, mesmo sofrendo com a censura, ainda se mostrou imenso no período da ditadura.

+ DOIS FILMES

O MELHOR AMIGO

Baseado em seu curta homônimo de 2013, Allan Deberton cria uma continuação para a história dos dois amigos. Pra quem gosta de Canoa Quebrada, ter o lugar como um espaço fílmico é uma diversão a mais. Para quem curte musical, pode também gostar de O MELHOR AMIGO (2024), especialmente se o seu forte for o cancioneiro popular dos anos 70 e 80. A presença da Gretchen ajuda a dar ao filme um ar de graça que foge um pouco do humor cearense tradicional, que, de machista, é revirado do avesso para o universo queer. Gosto da participação de Cláudia Ohana, das cores vivas e solares da fotografia de Beto Martins, o mesmo de PACARRETE (2019), e nem tanto dos números musicais. Acho interessante o quanto Vinicius Teixeira trabalha bem esse desconforto de alguém muito tímido que se vê ainda deslocado em ambientes em que impera a extroversão e o desembaraço. Parece ser o ator ideal para o papel, assim como Gabriel Fuentes foi uma escolha perfeita para viver o Filipe, o sujeito bonitão e desejado por todos e todas. A ideia de trazer o musical da Broadway para a Broadway de Canoa Quebrada foi outra bela sacada de Deberton.

MAMONAS ASSASSINAS – O FILME

A história da banda Mamonas Assassinas renderia um baita filme, dependendo da abordagem. Aqui, desde a fala inicial do Dinho (Ruy Brissac), o foco do filme parece ser a conquista do sucesso, não desistir dos sonhos, você consegue tudo que você desejar etc. É até uma coisa meio de autoajuda, e que acaba não servindo muito de exemplo quando pensamos no destino final dos cinco. Seria melhor uma vida sem sucesso e uma velhice tranquila? Ou é melhor alcançar uma popularidade enorme e morrer muito jovem? Não que o filme questione esse tipo de coisa. Na verdade, MAMONAS ASSASSINAS – O FILME (2023), de Edson Spinello, parece não se interessar muito em pensar ou se aprofundar em nada. É tudo montado como uma telenovela condensada, com foco nas subtramas relativas aos interesses amorosos dos cinco rapazes. O lado positivo é que dá espaço para os cinco, embora se perceba que o rapaz que interpreta o asiático da banda praticamente não tem uma história própria desenvolvida. Há também problemas quando o filme busca o melodrama, mas até que funciona quando persegue a comédia. Pelo menos isso, já que humor não poderia faltar num grupo lembrado por suas brincadeiras e pela irreverência.

sábado, abril 05, 2025

OESTE OUTRA VEZ



Acordei mais apaixonado por OESTE OUTRA VEZ (2024). O filme de Erico Rassi se agiganta cada vez mais à medida que pensamos nele. E qual não é minha surpresa quando olho para as lembranças do Facebook e vejo que há três anos eu havia terminado de ler Homens sem Mulheres, excelente livro de contos de Haruki Murakami, que comprei por causa de DRIVE MY CAR, mais um filme que adapta contos do escritor japonês.

Podemos dizer que o faroeste moderno de Rassi é uma nova visão de um mundo sem mulheres. Melhor ainda: de um mundo sem o feminino, uma vez que é o feminino em nós que é responsável pela sensibilidade, pela delicadeza e pela inteligência emocional e a capacidade de comunicar os sentimentos, de saber minimamente o que fazer com as emoções, em vez de ir a um bar e olhar para um copo de cachaça, amargando sua dor de corno ou de abandono, enquanto escuta uma canção do Nelson Ned ou outras do cancioneiro popular e que abordam a dor da separação.

OESTE OUTRA VEZ é o segundo filme de Rassi para o cinema, sendo que o primeiro, COMEBACK – UM MATADOR NUNCA SE APOSENTA (2016), lançado já há um bom tempo, um intervalo de tempo infelizmente maior do que gostaríamos, é também uma espécie de western moderno, por assim dizer. Ambos são filmes que homenageiam os faroestes americanos e que lidam com o tema da solidão de homens embrutecidos. Mas se em COMEBACK eu não havia percebido toda essa habilidade incrível do diretor, neste novo há força e sensibilidade tamanhas que se torna impossível passar batido, impossível não perceber o quanto se trata de um trabalho muito especial, além de uma obra feita por um cinéfilo. Aliás, é uma pena que seja um filme que deve ficar restrito apenas a salas alternativas e a poucas sessões. Digo uma pena porque se trata de uma obra que tem a capacidade de agradar a um público muito maior.

Na trama, Totó (Ângelo Antônio) briga com Durval (Babu Santana) pela mulher. Ele acusa Durval de ter roubado a mulher dele e acaba levando uma surra. Sem saber o que fazer, além de ligar para a mulher perguntando se ela mudou de ideia (quem está apaixonado e perde a pessoa amada passa bastante por esse período de negação, de não-aceitação), ele contrata um pistoleiro, ou pelo menos alguém que ele acredita ser um pistoleiro, um homem que trabalha carregando tralhas em um carro de lixo, vivido por Rodger Rogério, para matar Durval. A opção de Totó é partir para a violência extrema, ainda que terceirizada, mas algo dá errado e ele e o velho matador acabam sendo perseguidos no meio do sertão goiano, mostrado ora belo, ora sujo, empoeirado e feio.

OESTE OUTRA VEZ foi o grande vencedor da última edição do Festival de Gramado, ganhando três kikitos nas categorias de melhor filme, melhor fotografia (André Carvalheira, que trabalhou com Rassi em seu primeiro longa) e melhor ator coadjuvante para o nosso querido Rodger Rogério, grande cantor cearense que já faz algum tempo resolveu se enveredar também na carreira de ator. E deu muito certo. Que ator! Que presença de cena! E que personagem Rassi construiu para ele!

OESTE OUTRA VEZ é um filme que acerta tanto em homenagear o western americano quanto em retratar muito bem a solidão do homem num registro que une tanto a melancolia quanto o humor, além de o cineasta optar por fugir frequentemente das convenções do gênero ou do que se esperaria na narrativa. A escolha do diretor e roteirista Erico Rassi em praticamente não mostrar mulheres em cena intensifica a solidão dos personagens. Em algum momento, inclusive, me fez lembrar o incrível PELOS CAMINHOS DO INFERNO, de Ted Kotcheff.

Vendo a entrevista do diretor a Isabela Boskov, soube que Racci até tinha filmado cenas com a mulher que aparece no prólogo, mas que acabou cortando por não saber lidar com ela, sem que ela se tornasse uma personagem bidimensional. Resultado: acabou acertando em cheio com a escolha de cortar as cenas e de tornar a sua ausência uma espécie de ausência presente.

Há uma cena em especial com Antônio Pitanga que quase me arrancou lágrimas – o veterano ator interpreta um homem velho que vive num local muito afastado do interior, numa casinha de madeira sem um prato para comer, mas com um estoque considerável de cachaça. Já o personagem de Rodger Rogério é fascinante, tanto como alguém que almeja a posição de capanga, quanto como uma pessoa que não teve amor de verdade na vida.

OESTE OUTRA VEZ tem o seu próprio tempo, o seu respiro, e nem por isso deixa de ser eletrizante e de ter também um senso de humor muito próprio. Então, ao mesmo tempo que nos solidarizamos com os personagens, também rimos de certos atos, do ridículo de suas ações. Sem falar nas surpreendentes cenas de ação e tiroteio. E do arrepio que é sair do cinema ao som de um poderoso clássico da música popular.

Um dos melhores filmes brasileiros dos últimos dez anos, certamente. Vou querer ver de novo, até porque a cópia exibida estava com falha e ainda rolou em "letterbox". Ou seja, perdeu-se um pouco a glória do scope em toda sua plenitude. Um filme como esse merece o melhor tratamento possível. E também o carinho e a atenção do público.

+ DOIS FILMES

O AUTO DA COMPADECIDA 2

O começo de O AUTO DA COMPADECIDA 2 (2024) já denuncia certa estranheza, pela proposta de Guel Arraes, agora dividindo a direção com Flávia Lacerda, de usar uma direção de arte mais de estúdio, mais artificial na apresentação das casas, dos carros e até da vegetação. É como se fosse uma espécie de volta às origens dos personagens de Ariano Suassuna, já que eles nasceram para o teatro. Eu mesmo tive a sorte de ver na década de 1990, no Teatro do IBEU, uma montagem da peça e fiquei muito impressionado, especialmente com a construção do cenário do pós-morte. Com o grande sucesso da minissérie de 1999 que depois virou filme para cinema em 2000 e com uma inexistência de uma história escrita por Suassuna, ficou o temor de se mexer em coisa que não se devia. Mas acredito que Arraes e os outros roteiristas souberam captar a essência dos personagens e trazer coisas muito interessantes e novas, como a personagem de Fabíula Nascimento, filha do coronel vivido por Humberto Martins, e também Luiz Miranda. Na trama, João Grilo (Matheus Nachtergaele) retorna a sua cidade depois de vinte anos distante e encontra seu amigo Chicó (Selton Mello) vivendo de uma mitologia que ele criou de sua morte e ressurreição. O filme também faz uma boa crítica ao sistema político corrupto, sem que pareça um filme cabeçudo. Na verdade, a intenção deste trabalho é mesmo conquistar pessoas de todas as idades - na sessão em que estivemos, lotada, havia crianças rindo com frequência das presepadas dos personagens. Muito bom também o retorno de Virginia Cavendish, a Dona Rosinha, que havia se casado com o Chicó no primeiro filme e que ressurge com um aceno ao feminismo. Senti que faltou ao filme um pouco de respiro, já que os diálogos rápidos praticamente não dão trégua. Além do mais, talvez tenha faltado uma ideia melhor por parte dos roteiristas para repetir a ida de João Grilo ao pós-morte. Do jeito que ficou, é um mais do mesmo com algumas mexidas nos cenários, que ficaram ainda mais despojados (mais teatrais, nesse sentido). De todo modo, foi uma alegria ver esse retorno do grande público aos filmes brasileiros. Bom demais também perceber que a química entre os dois protagonistas continua muito boa.

UM MUNDO MISTERIOSO (Un Mundo Misterioso)

O nome de Rodrigo Moreno jamais estaria no meu radar se não fosse a grata surpresa de ver no cinema o excelente OS DELIQUENTES (2023). Eis que a Mubi traz dois outros filmes do realizador argentino em seu cardápio e um deles é este UM MUNDO MISTERIOSO (2011), bem mais modesto que seu mais recente trabalho. O protagonista é o mesmo Esteban Bigliardi de seu filme mais famoso, um ator de rosto tão familiar quanto bobo, e por isso perfeito para o papel do sujeito que leva um pé na bunda da namorada e fica à deriva pelo mundo, sem saber direito o que fazer. Certo dia, ela diz que precisa de um tempo. De quanto será esse tempo, ela não sabe dizer, mas ele é logo convidado a ir embora e se instala em um hotel humilde e barato. Um dos grandes baratos do filme está no quanto Moreno valoriza os "tempos mortos", que aqui não são tão estendidos quanto em OS DELIQUENTES, mas se percebe muito bem, especialmente nas cenas do protagonista com um carro velho, principalmente mais perto do final, na oficina. Essa valorização de não ter que dizer nada supostamente importante ou de não ter que ir a lugar nenhum é falado verbalmente por um dos coadjuvantes numa livraria. Não é novidade um diretor sair da linha de uma narrativa clássica, mas de vez em quando isso precisa ser enfatizado. Por mais que todos nós amemos boas histórias, alguém precisa destacar que o cinema tem regras próprias e liberdades são bem-vindas.

sábado, março 29, 2025

ADOLESCÊNCIA (Adolescence)



A minissérie mais comentada do momento conseguiu também me chamar a atenção, apesar de minha atual resistência a produções televisivas, por falta de tempo até mesmo para ver os milhares de filmes para cinema que tenho ainda para ver nesta curta vida. Mas todo mundo estava falando a respeito e, como a minissérie só tem quatro episódios, resolvi encarar. E ADOLESCÊNCIA (2025) é um trabalho que nos ganha logo nos primeiros minutos, nos carregando pelo braço e a gente não faz questão de soltar mais. E quando acaba, com o episódio mais centrado nos pais do garoto de 13 anos que é o centro da trama, eu me peguei chorando e soluçando em determinada cena.

A saber: a cena em que a filha mais velha do casal, Lisa (Amelie Pease, estreante), aparece arrumada para sair. Afinal, era aniversário do pai. A garota sabia o quanto o pai e a mãe estavam sofrendo, mas não estava a par da conversa que o casal estava tendo no quarto, uma conversa expondo feridas abertas e buscando, talvez, compreenderem suas possíveis falhas. Ao falarem do filho, é como se ele tivesse morrido. E de fato morreu. Pelo menos, do modo como eles o conheciam. Nada mais será como antes.

Àquela altura, já havíamos ouvido e nos solidarizado com aqueles pais que, com um sentimento imenso de impotência, se perguntam o quanto são culpados pelo que aconteceu, o quanto foram falhos na educação que deram para o filho mais novo, ou o quanto foram omissos e não perceberam que havia algo de errado. A interpretação do casal, os gigantes Stephen Graham (também cocriador da minissérie) e Christine Tremarco é impressionante. Ver uma interpretação tão intensa quanto a desses dois atores nos lembra da beleza e da grandiosidade do cinema e da teledramaturgia britânicos, cuja tradição é conhecida, mas cujos títulos acabam ficando restritos aos espectadores do Reino Unido mesmo. Os dois em cena não interpretam os personagens: eles os vivem. 

Criada por Stephen Grahan e Jack Thorne, ADOLESCÊNCIA tem seus quatro episódios dirigidos por Philip Barantini, que faz um trabalho primoroso ao conseguir trabalhar com o plano-sequência em todos os quatro episódios, integralmente, não importando quão desafiador seria. E é bastante desafiador principalmente nos dois primeiros episódios, que se passam em lugares diferentes: o primeiro na casa do menino Jamie (Owen Cooper, estreante e escolhido entre cerca de 500 outros candidatos ao papel), depois no carro da polícia a caminho da delegacia e depois em diversas áreas da delegacia. É de se imaginar que a forma pudesse atrapalhar o conteúdo, mas os realizadores conseguem a proeza de nos deixar tão envolvidos com o aspecto mais emocional que quase nos esquecemos desse aspecto particular adotado. O uso do plano-sequência em cada um dos quatro episódios não é apenas um gesto de exibicionismo por parte dos realizadores: ele funciona muito bem para nos deixar mais próximos da ação.

O plano-sequência de longa duração vez por outra surge. Sempre lembramos de FESTIM DIABÓLICO, de Alfred Hitchcock, e depois aparecem outros exemplos, como ARCA RUSSA, de Aleksandr Sukurov, todo filmado em um só plano, mas podemos nos lembrar de obras maravilhosas, como LONGA JORNADA NOITE ADENTRO, de Bi Gan, FILHOS DA ESPERANÇA, de Alfonso Cuarón, OLHOS DE SERPENTE, de Brian De Palma, O PASSAGEIRO – PROFISSÃO: REPÓRTER, de Michelangelo Antonioni; e PIECES OF A WOMAN, de Kornél Mundrunczó, entre outros.

Voltando a ADOLESCÊNCIA, eis um trabalho cujo hype se justifica até pelo tema. O boca-a-boca tem trazido mais e mais espectadores para a minissérie. Também pudera: o tema é quente e tem chamado a atenção de pais, professores e estudiosos da toxicidade masculina facilitada pelas redes sociais, que tem ajudado a culminar em crianças e adolescentes agredindo ou mesmo matando outros garotos e garotas. No filme, o menino Jamie é acusado de ter matado uma menina de sua idade da escola onde estuda. E por mais que isso pareça impossível de acreditar, tudo indica que é mesmo verdade, isso aconteceu. Para os policiais, resta agora descobrir o motivo e a arma do crime, uma faca.

E essa busca dos policiais acontece no segundo episódio, que se passa quase inteiramente na escola. E é nesse episódio que vemos o quanto o abismo geracional que sempre existiu entre adultos e adolescentes, mas que agora está muito maior. Já na década de 1950, esse tema veio à tona em JUVENTUDE TRANSVIADA, de Nicholas Ray, que flagrava uma mudança que estava acontecendo na sociedade naquele momento do pós-guerra. A rebeldia, a fúria juvenil e a incompreensão dos adultos de seus dramas viviam lado a lado com o rock’n’roll e a contracultura. 

Atualmente, porém, essa distância parece muito maior, já que o mundo habitado pelos adolescentes, o mundo das redes sociais, é um outro muito distinto, com regras próprias, uma outra linguagem e muitos perigos, como o do movimento Incel, fenômeno recente que tem afligido e intoxicado muitos meninos que se sentem rejeitados pelas meninas, por algum motivo, sendo que muitos desses motivos são fictícios, trazidos à tona por pessoas maliciosas, e que acabam gerando uma cultura misógina. A série convida à discussão sobre a masculinidade nos dias de hoje, e esse aspecto é tratado em especial no terceiro episódio, em que Jamie tem uma sessão de terapia com uma psicóloga (Erin Doherty), numa cena cheia de muita tensão e incômodo. 

+ TRÊS FILMES


SING SING

É tanto um espaço para o brilho das atuações de Colman Domingo e do ator-revelação Clarence Maclin, quanto um filme sobre o quanto a arte pode trazer dignidade e compreensão da própria existência, ainda que dentro dos muros de uma penitenciária. Gosto muito da fala de um dos diretores da companhia de teatro, que fala sobre a importância de se abrir, de ser vulnerável, e o quanto isso é raro entre os homens. Senti falta de uma maior conexão emocional (de minha parte) com o filme e com os personagens, embora tenha gostado muito dos personagens e de seus dramas pessoais. SING SING (2023) também tem o mérito de não julgar e nem nos incentivar a julgar os erros daqueles homens. Não se trata de novidade no cinema, é claro, mas talvez o diretor Greg Kwedar tenha conseguido mostrar isso de maneira diferente, com uma intenção deliberada de usar uma fotografia despojada, com um negativo em 16 mm e depois ampliado para 35, para passar depois para o digital. A câmera na mão não chega a incomodar e ajuda a trazer dinamismo para um filme quase sempre centrado num espaço fechado. Destaque também para o roteiro que se adequou bem às vozes daqueles ex-detentos.

A VERDADEIRA DOR (A Real Pain)

Esta nova experiência na direção de Jesse Eisenberg é uma espécie de road movie. E como acontece nesse subgênero, durante a jornada, as pessoas vão se conhecendo e algo muda em suas percepções de mundo. No caso dos primos vividos por Eisenberg e Kieran Culkin, eles não podiam ser mais diferentes: Eisenberg é o sujeito fechado, tímido, desconcertado diante das relações sociais; Culkin é o rapaz que por vezes esconde sua condição de depressivo na figura de alguém que brilha sem muito esforço, é descolado e corajoso. Ambos fazem uma viagem para conhecer a terra natal da avó, recentemente falecida, na Polônia. E na excursão, há até uma visita a um campo de concentração. Mas eu diria que a melhor cena de A VERDADEIRA DOR (2024) não vem de Culkin, o vencedor do prêmio de coadjuvante no Oscar 2025 (sendo ele um dos protagonistas), mas a cena em que Eisenberg faz um oversharing, ou seja, compartilha muitas informações delicadas ao grupo, durante um jantar. Esse é talvez o melhor momento do filme. Gosto também das cenas finais, destacando ainda mais as condições psicológicas e de vida dos dois. É um filme pequeno que tem seus momentos tocantes.

TODO TEMPO QUE TEMOS (We Live in Time)

O título original em inglês faz mais sentido para o filme do que o brasileiro. Ou seja, "Nós Vivemos no Tempo" pode não ficar tão poético, mas dá uma dimensão melhor do que o filme apresenta. Com uma narrativa fragmentada e montada fora da ordem cronológica em boa parte do tempo, todos os momentos que vemos o casal vivido por Florence Pugh e Andrew Garfield são importantes, desde o dia que se conheceram, passando pelo diagnóstico de câncer, pela gravidez e o que viria na conclusão, cada cena parece importante (a cena do parto é ótima!). Eu até destaco um momento em que nada realmente importante parece acontecer e que me deu um senso de força maior do que na maior parte da trama: acontece quando a personagem de Pugh se estressa diante de um desafio, vomita do lado de fora do restaurante e olha para o céu e a câmera mostra uma inclinação na imagem por alguns segundos. Até poderia dizer que um dos méritos de TODO TEMPO QUE TEMOS (2024), de John Crowley, é trabalhar com certa sutileza o registro do melodrama, quando se tem tudo para apresentar uma história muito mais carregada, levando em consideração os ingredientes. Acontece que já se contou muita história sobre pessoas que lutam contra o câncer (eu até tenho meus favoritos: LAÇOS DE TERNURA, MINHA VIDA, A GUERRA ESTÁ DECLARADA etc.) e o desafio agora é contar uma história de maneira tão diferente quanto sensível. E creio que o filme consegue esse feito. E muito pela ótima química entre seus atores.