A morte do ex-segurança negro George Floyd, que morreu asfixiado sob o joelho de um policial branco em 25 de maio, ocasionou uma série de manifestações de revolta em várias cidades dos Estados Unidos. Os manifestantes chegaram a cercar a Casa Branca e o Presidente Donald Trump teve que se refugiar em seu bunker. Quase cem cidades americanas fizeram manifestações em plena pandemia. Isso provocou reações em todo o mundo e o Brasil começou a se questionar do porquê não termos esse grau de revolta quando acontece esse tipo de coisa aqui. Muito provavelmente é porque no Brasil ocorreu uma espécie de normalização da agressão e do assassinato de pessoas negras.
Recentemente, o garoto João Pedro, de 14 anos, foi morto em sua casa, no Rio de Janeiro, por bala perdida, em operação das polícias federal e civil no Complexo do Salgueiro. Não faz muito tempo que tivemos o caso da menina Ágatha, de 8 anos, no Complexo do Alemão, que estava voltando para casa de Kombi com a mãe, quando foi baleada nas costas. Existem inúmeros casos, mas esses dois tiveram maior repercussão da mídia.
O que aconteceu nesta semana, porém, foi o que mais me abalou. Muito provavelmente por eu ter assistido o depoimento da mãe do menino Miguel, de 5 anos, que foi deixado aos cuidados, por alguns minutos da patroa da empregada doméstica Mirtes, enquanto ela levava a cadela para passear. A patroa não teve paciência com o menino, que foi parar no terraço de um prédio de luxo em Recife e caiu do nono andar.
Nem é preciso dizer que Mirtes e Miguel são negros e a patroa é rica e branca. Ela teve dinheiro para pagar a fiança, inclusive. É esposa de um prefeito de uma cidade do litoral pernambucano. Ver a mãe contando a história, de detalhes do ocorrido, e do quanto está sentindo a falta do pequeno filho me doeu tanto que pensei no quanto ainda é necessário para que nós também tenhamos o direito e a capacidade de nos indignarmos com o modelo de Casa Grande e Senzala que continua instaurado no país desde a época da fundação do país.
Chegamos, então, a FAÇA A COISA CERTA (1989), filme que fez 30 anos no ano passado, mas que continua ainda tristemente atual em pleno século XXI. Vi o filme devido aos acontecimentos envolvendo George Floyd, e sabendo da semelhança que envolve a morte de um personagem do filme com a de Floyd. O filme, por sua vez, foi feito inspirado na morte de outros dois negros americanos, um homem chamado Michael Griffith e uma mulher chamada Eleanor Bumpurs.
Na época que o filme foi exibido no Festival de Cannes não ganhou nenhum prêmio. O grande vencedor foi SEXO, MENTIRAS E VIDEOTAPE, de Steven Soderbergh. No ano passado, uma obra que tinha muito a ver com FAÇA A COISA CERTA chegou a ser premiada, ainda que não tenha levado a Palma de Ouro. O francês OS MISERÁVEIS, de Ladj Ly, está tanto em sintonia com o clássico de Lee, quanto com o momento de explosão de conflitos étnicos na França contemporânea.
FAÇA A COISA CERTA se inicia vibrante, com a sequência de dança de Rosie Perez, ao som de "Fight the Power", do Public Enemy. O estilo do filme se instala de imediato em suas cores quentes e na mensagem forte do hoje clássico rap. A canção, inclusive, se espalha por todo o filme, pelo rádio grande que o personagem Radio Raheem (Bill Nunn) carrega enquanto passeia pelo bairro de uma Nova York em seus dias mais quentes de verão.
O filme nos apresenta a uma série de personagens que vão ganhando a simpatia da audiência, à medida que nos aproximamos deles. Entre eles está o próprio Lee como Mookie, um entregador de pizza de uma pizzaria de ítalo-americanos. Na pizzaria, o dono é Sal, vivido por Danny Aiello. Um dos clientes de Sal questiona o fato de não haver nenhum negro entre as várias fotos expostas no estabelecimento. Sal avisa que ali é uma pizzaria italiana e só tem espaço para italianos e ítalo-americanos.
Ele tem lá sua razão, mas o descontentamento do rapaz também tem muita razão de ser. Afinal, com o negro tendo desempenhado um papel fundamental na construção da cultura americana, principalmente no campo das artes, é muito incômodo verificar tão falta de consideração, se não por Sal, mas por toda a sociedade branca americana. Há, inclusive, um diálogo muito interessante entre Mookie e o personagem de John Turturro, que afirma que certos negros americanos, como Magic Johnson, Eddie Murphy e Prince, já nem são considerados mais negros, como se eles transcendessem a raça. O que é absurdo, claro.
Do outro lado do quarteirão, por outro lado, o radialista vivido por um jovem Samuel L. Jackson, enumera uma lista de grandes nomes da música negra, como Ray Charles, Otis Redding, Anita Baker, James Brown, Tracy Chapman, Miles Davis, Janet Jackson, Louis Armstrong, Duke Ellington, Count Basie, Stevie Wonder, Sam Cooke, Ella Fitzgerald, Aretha Franklin, Bob Marley, Whitney Houston, Dionne Warwick, Little Richard, Quincy Jones, Marvin Gaye e tantos outros.
FAÇA A COISA CERTA chegou a ser indicado a dois Oscar: um de melhor roteiro para Lee e outro de ator para Danny Aiello. Não ganhou nenhum dos dois. Apenas 30 anos depois a Academia daria um Oscar para Spike Lee: por melhor roteiro adaptado pelo belíssimo INFILTRADO NA KLAN (2019), prêmio entregue por Samuel L. Jackson e com aquele abraço famoso e de alegria entre os amigos de longa data.
A força de FAÇA A COISA CERTA ressoou e ainda ressoa. Lembremos de um videoclipe de "Minha alma (a paz que não quero)", da banda O Rappa, dirigido por Kátia Lund, tão arrepiante na forma como também trata a tristeza e a revolta. Foi, certamente, uma obra audiovisual diretamente inspirada no filme de Lee.
Algo bastante simbólico no filme é o fato de o próprio personagem de Lee, sendo ele funcionário da pizzaria, iniciar o processo de destruição do lugar, e de começo da catarse coletiva. O cineasta se reconhecendo como um incendiário. O filme não apresenta soluções, mas traz perguntas, apresenta necessidades. É possível que entremos em um novo momento em breve. Sou otimista e quero acreditar que sim, que estas e as próximas revoltas sejam necessárias para a chegada desta nova era, de mais igualdade e fraternidade.
+ TRÊS FILMES
TEMPORADA
Muito bom ver que o cinema brasileiro encontrou este espaço de liberdade autoral em um filme que não é levado pelo plot, mas pelo registro de algo bem próximo à vida real, inclusive nos diálogos e nas interpretações. E também na escolha por personagens com os corpos longe dos modelos instituídos. Gosto de como nos faz sorrir com coisas simples. Direção: André Novais Oliveira. Ano: 2018.
O PROTETOR 2 (The Equalizer 2)
Um dos grandes méritos do filme é fazer a gente comprar a ideia de que o personagem de Denzel Washington é mesmo quase invencível. E isso o torna fascinante, principalmente quando o filme brinca com uns tons mais sombrios. Pena que Antoine Fuqua estrague no clímax, com aquela tempestade, com uma montagem picotada e qualquer nota. Ano: 2018.
BARONESA
Mais um da safra de filmes brasileiros que trilham o caminho que fica entre o documentário e a ficção. E que faz isso muito bem. Neste aqui, há que se ficar atento com as elipses, mas não é difícil de acompanhar, não. Só queria ter me envolvido mais. Direção: Juliana Antunes. Ano: 2017.
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