segunda-feira, novembro 16, 2020

A GARDÊNIA AZUL (The Blue Gardenia)



Os 18 meses que antecederam A GARDÊNIA AZUL (1953) não foram fáceis para Fritz Lang. Depois que ele finalizou SÓ A MULHER PECA (1952) em novembro de 1951, começou a perceber que as portas estavam fechadas para ele em Hollywood. O cineasta entrou na famosa lista negra do mccarthismo, não por ser comunista, mas por ser um “potencial comunista”. Foi o chefão da Columbia, Harry Cohn, quem tirou Lang da enrascada, em 1953, testemunhando ao Comitê para Assuntos Não-Americanos que ele não havia sido membro do Partido. Lang ficou muito aborrecido com o ocorrido e esse é um dos motivos, segundo ele mesmo, de ter passado um pouco desse sentimento de amargura para o filme, que apresenta um retrato um tanto desencantado da sociedade americana.

Assim, A GARDÊNIA AZUL passou a ser um filme tão pouco querido pelo próprio diretor quanto pela própria crítica, que não o recebeu tão bem. Hoje a obra tem muito a dizer e muito a dialogar com a recente discussão sobre estupro em casos de embriaguez da mulher. E o mais impressionante de tudo é que o filme nos faz ver a mulher como culpada. Há uma diminuição do ato do agressor, que se torna vítima, pois foi encontrado morto. Assim, nem a protagonista, Norah, vivida por Anne Baxter, por não lembrar do ocorrido após o "apagão" durante o confronto com o agressor, quanto nós, espectadores, acreditamos na inocência.

Olivier-René Veillon, em O Cinema Americano dos Anos Cinquenta, afirmou:

A mulher em Lang está na mesma situação que o pobre Joe Wilson em FÚRIA; as aparências são contra ela. Tudo a designa como culpada. O que a ficção desses filmes dá a entender explicita-se no relato de A GARDÊNIA AZUL, onde, precisamente, sob a forma de intriga policial, a mulher - Anne Baxter - é apontada culpada por todas as regras de verossimilhança, com as maiores provas pesando contra ela sem que qualquer elemento tangível possa ajudar a justificá-la. Lang vai ainda mais longe; o espectador fica convencido da culpa da jovem mulher, vê a moça brigando com a vítima antes que uma elipse o conduza ao dia seguinte ao assassinato. O relato é contra ela; só um detalhe ínfimo permite, no último momento provar sua inocência. (p. 147, Martins Fontes)

E a análise de Veillon é muito feliz, tanto ao trazer a questão da culpa como uma constante na obra de Lang quanto ao apontar a crueldade a que é submetida a personagem de Anne Baxter. Aliás, o próprio filme anterior de Lang, SÓ A MULHER PECA, ainda que indiretamente, mostra também uma sociedade que culpa a mulher, aqui não por um assassinato, mas pela infidelidade. Imaginemos como a sociedade daquela época recebeu esse filme.

Vale destacar que a bela e carismática Baxter vinha de dois títulos que lidavam com temas como o crime e a culpa, para citar dois de seus melhores trabalhos feitos pouco tempo antes de A GARDÊNIA AZUL. São eles: A MALVADA, de Joseph L. Mankiewicz, e A TORTURA DO SILÊNCIO, de Alfred Hitchcock.

A produção de A GARDÊNIA AZUL foi muito rápida e com pouco tempo para analisar roteiro e ter um cuidado que normalmente Lang tinha no set. Filmou em apenas 20 dias. O nascimento do filme surgiu do interesse do produtor Adolf Gottlieb, que queria aproveitar a repercussão do caso da prostituta de nome Dália Negra que foi brutalmente assassinada. Assim nasceu a ideia de fazer um filme com este título, para imediatamente aproveitar esse hype mórbido das reportagens.

Para os espectadores de hoje, porém, o filme acaba lembrando VELUDO AZUL, de David Lynch, tanto pelo título quanto pelo fato de haver uma canção-tema sendo cantada durante um momento marcante da narrativa, em um bar-restaurante. Aqui a canção aparece na voz de Nat King Cole, que surge cantando, sorrindo e tocando piano. Curiosamente, vemos o reflexo do cantor em um espelho que fica acima dele. Não entendi a intenção de Lang, seu simbolismo, mas ficou plasticamente muito bonito.

Na trama, Norah é uma jovem que, depois de ficar muito triste com a carta do namorado, soldado na Guerra da Coreia, que diz ter se apaixonado por uma enfermeira, ela aceita imediatamente o convite por telefone de um sujeito mulherengo (Raymond Burr), como forma de esquecer aquela noite. Inclusive, ela queria se sentir à vontade para beber o bastante para ficar high. Quando ela vai até o apartamento do homem, embriagada, ele tenta forçar sexo e ela se defende. Ao acordar e ver o corpo do homem no chão, sai correndo na chuva, deixando os sapatos. Os sapatos que serão justamente a maior pista, transformando A GARDÊNIA AZUL em uma espécie de Cinderella criminal.

Aqui temos o que de melhor Lang construiu ao longo de sua carreira em Hollywood: o drama criminal junto com o melodrama, o suspense e uma análise de julgamento rápido feito pelo sistema e pela sociedade americana, algo que já havia aparecido de maneira bem forte no excelente MALDIÇÃO (1950). Ou seja, a cada novo filme que vemos de Fritz Lang, mais percebemos que ele foi um dos maiores monstros do cinema de todos os tempos.

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