sexta-feira, abril 07, 2023

TÁR



Ver TÁR (2022) no cinema é outra coisa (havia ficado muito triste com o fato de a distribuidora brasileira não ter lançado o filme por essas paragens). E deu para perceber os motivos de o filme pedir sempre uma tela grande: o trabalho de escala que Todd Field faz, que vem desde as letras pequenas dos créditos (que são difíceis de ler na tela pequena), passando pela dimensão maior com que os cenários parecem dispor para trabalhar com os personagens e seus movimentos, além da valorização de cada parte de sua janela scope. A cena de Lydia Tárr conversando com os alunos no teatro, por exemplo, dá o tom. O teatro parece tão monumental nas lentes de Field que as cadeiras parecem saídas do cenário de O INCRÍVEL HOMEM QUE ENCOLHEU.

Rever o filme também é uma oportunidade de prestar mais atenção, com prazer, nos detalhes. Quem o vê apenas como um excelente trabalho de Cate Blanchett (e de fato é o papel de sua vida) não viu o filme, na verdade. Claro que sem ela o filme não existiria (falou o diretor), mas o que vemos é uma obra que tem um rigor formal tão perceptível que fica óbvio que estamos diante de um trabalho fora do comum.

Não sei o quanto o filme será um documento de nosso momento no futuro, no que se refere à questão da cultura do cancelamento e as questões envolvendo artistas que cometem atos reprováveis (Bach é cancelado por um personagem por ser misógino e mulherengo), mas, sendo o cinema uma arte que trabalha mais com a empatia do que com o julgamento, é fácil nos colocarmos no lugar de Lydia – pelo menos em alguns momentos – e compreender sua atração pela jovem violoncelista, por exemplo, ainda que fique um pouco no escuro o que ela fizera com a jovem que cometeu suicídio. Apenas para dar conta desse aspecto do filme, uma terceira e quarta revisões seriam bem-vindas, já que é possível estabelecer elos entre o que ela diz, o que ela faz e o que seu subconsciente tenta avisar através de sonhos, os quais dão a TÁR um ar de um cinema fantástico invadindo o que supostamente seria uma biopic.

O curioso é que foi preciso que Field fizesse uma obra assim, grandiosa, para que ele chamasse mais atenção para seus trabalhos anteriores, de menor pretensão, talvez, e que agora sinto a curiosidade de rever, embora lembre de ter gostado de ambos na época do lançamento. A questão é que TÁR é tão bom que quase nos esquecemos que também há um trabalho de direção de atores incrível, destaque para o elenco feminino lindo e internacional: ao lado de Blanchett estão Nina Ross, Noémie Merlant e Sophie Kauer, uma música de verdade estreando como atriz. Lembrando que o trabalho de atores era algo já bastante evidenciado em ENTRE QUATRO PAREDES 2001) e em PECADOS ÍNTIMOS (2006).

A princípio, TÁR não parece um filme fácil (pelo menos, não para plateias impacientes), mas depois é só se habituar com o andamento – as primeiras sequências são bem longas e algumas delas mostram longos diálogos, duas com dois homens do meio da música erudita, em restaurantes. Mas Field nunca escolhe o ângulo de câmera mais óbvio e isso faz toda a diferença, assim como a escolha da própria iluminação na fotografia do alemão Florian Hoffmeister (ALÉM DAS PALAVRAS), às vezes optando por uma penumbra bonita. O filme não se apressa a apresentar sua história, embora ela seja menos importante do que a nossa aproximação com a heroína, do que conhecermos um pouco mais suas manias, seu egoísmo e seu temor de estar aos poucos perdendo a capacidade de conduzir sua vida. Logo ela, que é uma maestro (assim no "masculino" mesmo).

Tive um pouco de dificuldade de sentir o filme mais palpável, mas esse teor um pouco etéreo o torna mais atraente (aliás, eu diria que no cinema é possível ver o filme um pouco mais palpável, por ser o espaço ideal para vê-lo). No mais, foi uma bela sacada de Field começar seu filme com os “créditos finais”, com todos os técnicos responsáveis por detalhes supostamente menos importantes da construção de um filme, deixando para o fim o elenco etc. É como se o diretor estivesse deixando claro que, mesmo um gênio como Lydia Tárr, só está nos holofotes por causa de muitas outras pessoas, auxiliando com muito talento e competência. E não deixa de ser também um gesto de humildade do próprio Field, ele mesmo se mostrando um gigante na condução de seu maior filme, pedindo aplausos para todos aqueles que contribuíram para a materialização de sua obra.

+ TRÊS FILMES

ENTRE MULHERES (Women Talking)

Sarah Polley faz um filme que traz muita coisa para a discussão, muitos problemas e sofrimentos criados para as mulheres dentro do mundo do patriarcado. E ela opta por uma obra com mais amor do que raiva, embora a raiva passe e esteja presente, especialmente na personagem de Jeff Buckley, a que sofre agressão do marido constantemente. Enquanto isso, a personagem de Rooney Mara transborda amor apenas pelo olhar. O título original parece sintetizar de maneira modesta sobre o que o filme trata (simplesmente mulheres falando), mas também tem o poder de dizer que, naquele momento, é a vez das mulheres falarem. Tanto que o personagem de Ben Whishaw, que é o único homem presente nas reuniões, pois é a única pessoa que sabe ler, representa o masculino que chora de dor pelos danos provocados por pessoas do seu gênero. Ainda que seja um filme de muitos diálogos, fugindo bastante do que costumamos ver no próprio cinema indie americano, há um cuidado com o visual que se destaca já desde a escolha por uma janela hiper-larga (2,76:1), pela montagem que junta passado e presente e também imagens que às vezes contrastam com o que é dito. O fim de ENTRE MULHERES (2022) tem uma melancolia carregada de esperança, embora seja uma esperança que precise ser nutrida com ações e com paciência, pois o mundo ainda demorará muito para mudar, já que os homens ainda não aprenderam a agradecer às mulheres pelos presentes recebidos. Infelizmente não pude ver no cinema, pois a minha sensibilidade ocular com projeção tremida estragou essa oportunidade e me fez sair da sessão (não sem antes reclamar com o gerente). Com isso, preferi vê-lo em casa.

A BALEIA (The Whale)

Oitavo longa-metragem de Darren Aronofsky, que tem se mostrado cada vez mais ousado em ir longe com suas histórias e situações que beiram o mau gosto e o grotesco. Mais do que nunca, eu diria. Não deixa de ser admirável, pois vejo um diretor no controle da situação, mas que parece cada vez mais querer optar pelo choque para chegar a um tipo de transcendência. Vem causado muita polêmica com A BALEIA (2022); há quem o acuse de gordofobia e, nesse sentido, ele é sem dúvida exploratório até dizer chega. Ainda assim, eu gosto de muita coisa do filme, em especial da personagem da filha, vivida por Sadie Sink (STRANGER THINGS), mas principalmente de toda a atmosfera que é criada dentro de uma casa que parece trazer um cheiro de mofo e suor ou qualquer outra coisa desagradável. Enquanto isso, quase sempre está chovendo lá fora, num cenário bem teatral, mas que também remete à obra anterior do diretor, MÃE! (2017), por se passar num único espaço, quase sempre fechado. Contudo, as cenas que parecem feitas para virar clipes para o Oscar são bem constrangedoras.

TRIÂNGULO DA TRISTEZA (Triangle of Sadness)

Só reproduzindo o texto que escrevi na época que vi TRIÂNGULO DA TRISTEZA (2022), anterior ao resultado da premiação:

Pronto. Já dá para sonhar com um Oscar memóravel, com TUDO AO MESMO TEMPO etc. ganhando melhor filme e o Ruben Östlund ganhando direção. Que beleza, hein! Não odiei o filme como muitos odiaram; tampouco me entusiasmei. Na verdade, dei umas boas (mas preguiçosas) risadas na cena do barco na tormenta e depois disso o último ato, que lembra um pouco O ANJO EXTERMINADOR, também não me disse muito. Palma de Ouro. Lembrando seus concorrentes:

HOLY SPIDER, de Ali Abbasi
LES AMANDIERS, de Valeria Bruni Tedeschi
CRIMES OF THE FUTURE, de David Cronenberg
THE STARS AT NOON, de Claire Denis
FRERE ET SOEUR, de Arnaud Desplechin
TORI AND LOKITA, de Jean-Pierre & Luc Dardenne
CLOSE, de Lukas Dhont
ARMAGEDDON TIME, de James Gray
BROKER – UMA NOVA CHANCE, de Hirokazu Kore-eda
NOSTALGIA, de Mario Martone
R.M.N., de Cristian Mungiu
DECISÃO DE PARTIR, de Park Chan-Wook
SHOWING UP, de Kelly Reichardt
LEILA’S BROTHER, de Saeed Roustayi
BOY FROM HEAVEN, de Tarik Saleh
A ESPOSA DE TCHAIKOVSKY, de Kirill Serebrennikov
HI-HAN (EO), de Jerzy Skolimowski

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