quinta-feira, abril 20, 2023
OLHOS DE SERPENTE (Snake Eyes)
Eu guardo uma lembrança muito boa do impacto que tive nos primeiros minutos de OLHOS DE SERPENTE (1998), semelhante ao que aconteceu em O RESGATE DO SOLDADO RYAN, de Steven Spielberg, curiosamente, uma produção do mesmo ano. Ou seja, na minha cabeça, eram filmes brilhantes em seus minutos iniciais, mas que perdiam força ao longo da metragem. Minha percepção mudou, pelo menos em relação ao filme de Brian De Palma, já que não tive oportunidade de rever o Spieberg ainda. E mudou para melhor. A força do filme não está apenas nesses atordoantes minutos iniciais, na cena do assassinato na luta de boxe e no pânico na multidão. Até porque De Palma retorna algumas vezes a esse momento ao longo da trama, de diferentes perspectivas, seja através de memórias (uma delas muito suspeita), seja por registros de câmeras.
OLHOS DE SERPENTE é um dos filmes em que De Palma mais explora seu talento com jogos de câmera e até o split-screen parece mais inovador. Trata-se de uma espécie de filme-síntese do autor, trazendo de volta questões de confiança e desconfiança nas relações, como nos anteriores O PAGAMENTO FINAL (1993) e MISSÃO: IMPOSSÍVEL (1996). Acredito que o filme, com uma produção que conta com tantos figurantes e tanto apuro técnico, só tenha sido possível por causa do sucesso nas bilheterias de MISSÃO: IMPOSSÍVEL. Porém, não chegou a se pagar no mercado americano: custou cerca de 100 milhões e só faturou 40 nas bilheterias.
OLHOS DE SERPENTE é talvez o filme em que De Palma mais trabalha o aspecto formal em detrimento do conteúdo. Há uma estranheza no início, mas não uma estranheza semelhante à de SÍNDROME DE CAIM (1992), que remete talvez a produções de gênero italianas. O uso do plano-sequência, no começo, disputa o nosso interesse com a personalidade do personagem de Nicolas Cage, um sujeito que tem um tipo de malandragem que não parece combinar com a de um policial, como logo saberemos se tratar. Ele é um sujeito que aceita subornos, faz negócios pouco honestos e vê na figura do oficial da marinha vivido por Gary Sinise a personificação da honestidade em pessoa. São como dois irmãos (tema caro a De Palma), como duas imagens retratadas num espelho deformador. Um deles parece o homem exemplar; o outro, a ovelha negra. Os duplos são complexos. Sinise é revelado como vilão, mas ele parece ter certas razões para chegar àquele caminho tortuoso; Cage é o herói, mas um herói que, no epílogo, terá que pagar também por suas falhas.
De Palma se mostra um cineasta bastante moralista, nesse sentido. Não basta o protagonista se redimir com a situação da trama principal do filme: é preciso também que suas ações pregressas sejam passadas a limpo. Sobre essa questão do moralismo, a figura da personagem feminina heroica de Carla Cugino se diferencia de outras do cineasta, no sentido de que ela sobrevive no final, e muito provavelmente por sua pureza: diferente de Nancy Allen em UM TIRO NA NOITE (1981), que estava tendo um caso com homens casados; ou de Emmanuelle Béart em MISSÃO: IMPOSSÍVEL, que traiu o marido vilão. Não sei o quanto isso se manifesta de forma consciente ou não nas intenções do realizador.
De todo modo, isso também só deixa explícito o quanto o filme é complexo nesse trabalho de construção dos duplos. Não se trata aqui de uma pessoa boa versus uma pessoa má, como em OS INTOCÁVEIS (1987) ou PECADOS DE GUERRA (1989), mas há muitos tons de cinza. E há também o fracasso de quase todos os personagens, desde o campeão boxeador que se vende, passando pelo vilão, pelas pessoas que o apoiam e finalmente pelo herói, numa visão bastante cínica da vida. E isso até pode ser simbólico se pensarmos que este filme foi a última produção de De Palma inteiramente americana. Depois disso ele precisaria do suporte de outros países para finalizar suas obras.
Sobre o plano-sequência do início, que é incrível até para os detratores do filme, acompanhamos Cage por mais de 15 minutos dentro do ginásio Millennium até o tiro que matará o secretário de defesa dos Estados Unidos, que conversava com uma misteriosa mulher de peruca loira (Cugino). Nesse plano-sequência, há uma série de coisas a se prestar atenção, uma série de personagens estranhos que a câmera faz questão de enfatizar, de modo a aumentar o clima de suspense e de atordoamento.
Trata-se de uma sequência que foi preciso ser orquestrada com um trabalho coletivo que necessitaria de talento e de muito dinheiro para sua materialização. Daí a nossa gratidão pela existência desse filme, por ocasião dos dois sucessos anteriores do diretor. Poder ver OLHOS DE SERPENTE em casa tem as suas vantagens, como poder voltar à cena quantas vezes quisermos, para estuda-la. É possível, inclusive, acompanhar com mais calma a última cena final, que acontece enquanto os créditos sobem, e que traz um interessante easter egg. Isso, após a ótima conversa final entre Cage e Cugino.
No mais, vale destacar a brilhante trilha sonora do grande Ryuchi Sakamoto, falecido recentemente. No começo, confesso que achei seu trabalho parecido com o de Pino Donaggio, responsável pela música de alguns dos melhores trabalhos de De Palma, mas, muito provavelmente, minha comparação é equivocada.
+ TRÊS FILMES
SICK
Diferente do ótimo SOZINHA (2020), o thriller anterior de John Hyams, este novo filme tem altos e baixos, momentos de extrema tensão que funcionam com muita simplicidade e outros que nos tiram o interesse. SICK (2022) é mais um filme da nova linha de slashers, sendo que este conta com Kevin Williamson no roteiro, o que pode trazer um pouco de nostalgia por causa de PÂNICO e de EU SEI O QUE VOCÊS FIZERAM NO VERÃO PASSADO. A sacada inteligente é ambientar a trama em 2020, em plena pandemia de COVID-19, e trazer a questão das festas clandestinas, as chamadas festas do fim do mundo. Achei o prólogo interessante, mas excessivamente simples, mas é o que dá o tom desse filme que opta pela básico, inclusive com uma pouca quantidade de personagens, e pela reciclagem dos clichês de maneira eficiente.
O PERFUME DA SENHORA DE PRETO (Il Profumo della Signora in Nero)
Uma das melhores qualidades deste giallo de Francesco Barilli está em sua beleza plástica. É cada fotograma lindo que enche os olhos neste O PERFUME DA SENHORA DE PRETO (1974) ... No entanto, senti falta de me envolver mais com o drama da protagonista (Mimsy Farmer), uma mulher que fica atormentada com supostas lembranças do passado, incluindo a visita de seu eu infantil. É atípico no sentido de demorar muito a mostrar cenas de mortes explicitamente, mas é tradicional no quanto explora os traumas de infância de maneira parecida com o que se costuma ver no ciclo de filmes do gênero da época. Ainda assim, eu diria que rever cenas soltas do filme pode ajudar a guardá-lo num cantinho especial da memória afetiva, com suas cores belas e seu aspecto etéreo. Destacaria duas cenas em que o sexo agressivo se apresenta brutal o suficiente para se configurar como trauma.
AS CHAMAS DO INFERNO (Don’t Go in the House)
Ultimamente tenho ficado mais curioso para ver os slashers dos anos 70, quando o subgênero não estava tão estabelecido assim, do que os dos anos 1980, até porque os seventistas parecem mais vigorosos e violentos. AS CHAMAS DO INFERNO (1979), de Joseph Ellison, tem essa pegada, além de uma forte e explícita influência de PSICOSE. O próprio protagonista é um psicopata que mora com a mãe morta num casarão e ouve vozes para que ele se vingue de mulheres e saia matando-as. A diferença aqui é que os assassinatos são cometidos com um lança-chamas. Felizmente (ou infelizmente para os mais sádicos), há uma única morte bem mais gráfica. Depois o filme opta por não se repetir. Afinal, os slashers se caracterizam por trazer originalidade e diferença nas mortes praticadas. Assim, este filme prefere explorar o inferno interior do protagonista. Nem sempre é um bom filme, mas em alguns momentos chega a ser ótimo. Gosto das cenas finais.
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