terça-feira, outubro 05, 2021

CENAS DE UM CASAMENTO (Scener ur ett Äktenskap)



Ontem, vendo o segundo episódio do remake americano de CENAS DE UM CASAMENTO (1973), percebi que já faz algumas semanas que assisti à minissérie original de Ingmar Bergman e que precisava escrever um pouco a respeito, antes que a lembrança da experiência, um misto de dor espiritual e prazer estético, começasse a ir para o arquivo morto do cérebro. Ver o remake me ajudou um pouco a não só fazer comparações com a obra-prima televisiva do diretor sueco, mas também a começar a me lembrar de algumas cenas marcantes.

Lendo o texto do livro O Planeta Bergman, de Carlos Armando, soube que o cineasta fez a obra dedicada a Liv Ullmann, o grande amor de sua vida, como uma forma de voltar a vida em comum com a atriz. Desconhecia essa informação e achei muito bonito, me fez lembrar a tentativa de Domingos Oliveira de recuperar o namoro com Leila Diniz quando a convidou para fazer TODAS AS MULHERES DO MUNDO.

Armando destaca o momento em que Johan (Erland Josephsson) fala para Marianne (Ullmann): “eu me permito imaginar que você me ama à sua maneira... Creio simplesmente que nós nos amamos. De uma maneira terrestre e imperfeita.” E agora me pego pensando no termo “terrestre” que ele usa. Afinal, Bergman usou muito de sua obra para falar de questões metafísicas, como a existência de Deus, a morte etc. E aqui se permite abordar exclusivamente a crise de um casamento. Que, aliás, também era seu forte, essa coisa de falar sobre relacionamentos, seja um casamento ou um conflito familiar. E de maneira tão dolorosa que falar “meter o dedo na ferida” passa a ser um eufemismo perto do que ele faz.

CENAS DE UM CASAMENTO, pelo menos na Suécia, foi o trabalho mais popular de Bergman. Chegou às televisões do país e fez muito sucesso. Tanto que até dizem que incentivou muitos casais a se divorciarem. Há uma pesquisa que fala sobre isso, mas não sei dizer o quanto pode ser apenas uma coincidência. Mas o fato é que ali na década de 1970 uma nova sociedade estava se formando. E viver em um casamento apenas aturando o cônjuge deixou de ser uma obrigação.

Preferi ver a versão em minissérie do que a versão lançada nos cinemas no ano seguinte. E creio que fiz a melhor opção. Afinal, quanto mais Bergman melhor. A minissérie se divide em sete episódios. Em “Inocência e Pânico”, nos vemos um tanto atordoados com tantos diálogos, mas também com aquela tentativa de transparecer um casamento perfeito para uma equipe de televisão e em seguida para um casal de amigos, e que já suspeitamos ser só uma fachada. No segundo, “A Arte de Varrer para Debaixo do Tapete”, já sentimos as angústias: Marianne parece não estar muito disposta ao sexo, mas isso não é o único problema no relacionamento. O terceiro, chamado “Paula”, é um dos mais intensos, e que trata da revelação de uma amante de Johan. E nem é esse apenas o problema. Ficamos com um misto de incômodo e solidariedade com o modo como Marianne procura contornar ou aceitar (ou não) aquela nova situação.

Os demais capítulos se chamam “O Vale das Lágrimas”, “Os Analfabetos” e “No Meio da Noite”. A opção de Bergman por preferir usar créditos em áudio do que escritos dão um tom interessante e estranho à experiência. O curioso é que, como se trata de uma obra de um diretor que costuma privilegiar bastante a beleza plástica, por mais que seja um trabalho muito mais despido de imagens de extrema beleza – a minha lembrança imediata era de A FONTE DA DONZELA (1960), que havia visto poucos dias antes -, a experiência de ver uma grande D.R. chega a ser menos dolorosa, já que há também todo um cuidado visual para que possamos compensar a dor com o prazer dos olhos (Sven Nykvist é o diretor de fotografia).

Como sabemos que Bergman passou por diversos casamentos e relacionamentos íntimos ao longo de sua longa jornada de vida, que se confundia muito com seu trabalho incessante, é possível perceber que CENAS DE UM CASAMENTO foi inspirada em sua atribulada vida conjugal. Mas uma coisa que percebemos também é que é fácil tomar o partido de Marianne e ver na minissérie algo de feminista. É fácil amar Marianne e odiar, por vezes, Johan. Não pela traição em si, mas por seu comportamento.

Quanto ao remake americano, estou vendo mais como um belo trabalho dos atores, mas deixemos para falar depois que acabar de vê-la.

Agradecimentos a Paula pela companhia durante as sessões da minissérie de Bergman.

+ DOIS FILMES

O MENINO QUE MATOU MEUS PAIS

Filme vendido junto com A MENINA QUE MATOU OS PAIS, também dirigido por Mauricio Eça, este O MENINO QUE MATOU MEUS PAIS (2021) conta a história a partir do depoimento de Suzane von Richthofen no tribunal, de modo a diminuir sua culpa e colocar quase tudo nas costas do namorado Daniel. E é até fácil ver Daniel como um rapaz de péssima índole, mas, por outro lado, como o filme tem uma construção muito simplista, a visão do sujeito sem muitos tons de cinza prejudica a apreciação. Definitivamente está longe de ser um bom filme, mas acho que os criadores entraram numa situação complicada ao ter que contar duas histórias claramente fantasiosas dos fatos. Difícil comprar Carla Diaz como a menina inocente e o discurso anti-maconha é constrangedor. O momento final, mais aguardado, do assassinato, é pouco impactante, por mais que apele para efeitos de câmera. Além do mais, senti falta do que acontece logo após o assassinato dos pais de Suzane.

A MENINA QUE MATOU OS PAIS

Nem sei dizer se esta versão (contada por Daniel e com a imagem de uma Suzane mais diabólica) é mesmo pior que a outra, mas atravessar toda a sua metragem já vendo a história antes, apenas sob um novo olhar, ninguém merece. A MENINA QUE MATOU OS PAIS (2021) até convence um pouco mais, mas talvez seja por causa da longa tradição das femme fatales no cinema. E também porque já se convencionou tratar Suzane von Richthofen como a mente principal do assassinato dos próprios pais, principalmente por quem não sabe detalhes do ocorrido ou não leu mais a respeito do caso (como eu). A ousadia maior deste está na violência quase gráfica, já que a cena do crime é mostrada pelo ponto de vista de quem o executou com as próprias mãos.

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