sábado, outubro 30, 2021

ASSIM COMO NO CÉU (Du Som Er i Himlen)



Não sei se já contei esta história aqui, já que confidenciei tantas coisas neste espaço. Mas me pareceu justo, por ocasião do filme em questão, falar de algo que aconteceu em minha infância. 

Era uma tarde comum de brincadeira na rua com os outros meninos. Com a animação e a energia que as crianças têm, passei rapidamente perto de casa e minha mãe me chama: “Ailton, vem merendar!”. “Agora não, mãe!”, eu respondo. Poucos minutos depois, acontece um acidente e eu quebro o braço. Uma visão aterradora de ver o meu braço dependurado me fez gritar de horror. Enquanto um grupo de adultos me socorria e contava do ocorrido para minha mãe, eu passei por ela, chorando e disse: “desculpa, mãe”.

Naturalmente, na minha cabeça educada com o castigo divino e a infalibilidade dos pais (da mãe, apenas, no meu caso), aquilo certamente aconteceu por causa de pura desobediência. Deus estaria me castigando. Até hoje nem acho de todo errônea essa teoria, de tão enraizada que a educação religiosa fica em nossa mente.

Relembro esse incidente marcante pois vi algo semelhante no filme dinamarquês ASSIM COMO NO CÉU (2021), de Tea Lindeburg. Em determinado momento, a jovem protagonista Lise (Flora Hoffman Lindahl) acredita que o fato de sua mãe estar à beira da morte por causa de complicações do parto é inteiramente culpa sua. Afinal, ela perdera a presilha que sua mãe lhe dera. Um motivo mais do que justo para que ela (e a mãe, por tabela) fosse castigada pela ira divina.

ASSIM COMO NO CÉU já impressiona a partir de seu prólogo, com a imagem de Lise tendo uma visão do céu. Um céu opressivamente vermelho e pingando sangue. Ela acorda em seu quarto com a luz do sol batendo na janela e ficamos sabendo que estamos em um vilarejo de fins do século XIX na Dinamarca e essa garota é a única da família que será agraciada com a chance de sair de casa para estudar. O pai se manifesta contra, mas a mãe, grávida e muito perto de parir, é completamente a favor do novo universo que sua filha descobriria ao sair daquele restrito mundo da fazenda.

ASSIM COMO NO CÉU tem sido comparado com frequência à obra-prima A PALAVRA, de Carl Th. Dreyer, e isso é compreensível, já que a diretora pegou emprestado alguns temas e atmosferas desse que é o maior filme sobre a fé já feito. Mas a chave aqui é outra, mais rebelde, mais irascível, mais cruel. A mãe da jovem tem uma gravidez muito difícil e as cenas da pobre mulher sofrendo para dar à luz são bem impactantes, quase saídas de um filme de horror.

Gosto demais do momento em que o grupo de jovens e crianças fica esperando o resultado do parto da mãe, durante a madrugada, e há um instante muito especial de uma suposta comunicação entre a protagonista e Deus. Grande momento de atmosfera noturna e misteriosa. Antes disso, enquanto o grupo se reúne para fazer uma oração para que Deus poupe a vida da mãe, Lise interrompe o ato no momento do “seja feita a Tua vontade”. Afinal, ela era contra a vontade de Deus, se isso significasse a partida da mãe.  

Tea Lindeburg opta por uma abordagem mais dura nessas questões de vida/morte e fé/descrença e faz uma forte crítica ao velho sistema patriarcal, à sociedade baseada na ignorância e na superstição e na maternidade como o maior prêmio que a mulher pode ter e querer na vida.

Do ponto de vista visual o filme também é admirável, seja nas cenas diurnas nos exteriores, com ênfase no amarela da luz do sol e das flores, seja nas cenas noturnas  e nas cenas interiores, quando Lise e sua prima também adolescente testemunham como fantasmas a situação de aflição na casa dos pais durante o dramático parto.

Com experiência na televisão de seu país, a estreia de Lindeburg nos cinemas é tão segura quanto poderosa. A premiação que ela recebeu como melhor diretora do Festival de San Sebastián me pareceu justa. A jovem Flora Ofelia Hofmann Lindahl também foi agraciada com o prêmio de melhor atriz.

+ DOIS FILMES

LUA AZUL (Crai Nou)

O grande vencedor do Festival de San Sebastian foi este LUA AZUL (2021), de Aline Grigore, sobre a busca de fuga de duas irmãs de uma família essencialmente dominada por figuras masculinas. A personagem principal é uma jovem de 22 anos que é estuprada enquanto está dormindo, durante uma festa. Sua irmã é alvo do primo, que quer impedi-la de namorar determinado sujeito. Um dos problemas do filme é que, além de bastante caótico no modo como conta sua história, não traz nenhum personagem simpático o suficiente para que tenhamos um pouco de solidariedade. O que acaba contando mesmo no final é a força do simbolismo da fuga como elemento de desespero para aquela situação. Não sei o quanto a diretora quis fazer isso uma espécie de alegoria de seu país ou uma crítica à sociedade machista. De uma forma ou de outra, tem seus méritos, principalmente nas atuações, mas falta força, até quando a intenção é trazer atordoamento.

IRMANDADE (Sestri)

O ponto de partida de IRMANDADE (2021), de Dina Duma, me fez lembrar um pouco FERRUGEM, de Aly Muritiba, pelo tema envolvendo as consequências de um vídeo de sexo performado por uma adolescente sendo viralizado em uma escola. Mas IRMANDADE tem um desenvolvimento bem distinto. Até porque há toda a questão envolvendo a amizade/cumplicidade das duas amigas, Maya e Jana. Gosto muito de como o filme vai se tornando cada vez mais sombrio. Até o tempo mais ensolarado vai se convertendo em chuva, o dia em noite, já perto do final. Muito representativo do estado de espírito das meninas, principalmente de Maya, que detém o ponto de vista da narrativa até o final. O modo como termina dá ao filme um tom de história curta e simples (no sentido de short story), muito eficiente no que propõe. A atriz que faz Maya, Antonia Belazelkoska, é ótima. Gostaria de vê-la em outros filmes.

@mostrasp #mostrasp #45ªmostra #45mostra #euvinamostra

Nenhum comentário: