terça-feira, maio 04, 2021

A FRONTEIRA DA ALVORADA (La Frontière de l'Aube)



Entrar em contato com a carreira de um cineasta desconhecendo seus primeiros trabalhos, e sendo esses trabalhos de décadas atrás, pode causar incompreensão no que se refere a suas motivações. Ainda assim, tenho preferido seguir por esse caminho contrário na carreira de Philippe Garrel, cujo primeiro filme que vi foi AMANTES CONSTANTES (2005), talvez o primeiro de seus trabalhos a estrear nos cinemas de minha cidade. Pelo que andei lendo em sites estrangeiros, não é exclusividade nossa um cineasta tão importante quanto Garrel ter sua obra sendo descoberta tão tardiamente. Nos Estados Unidos o autor também passou a ser conhecido e cultuado com atraso.

O Garrel que passei a conhecer com alguma intimidade foi o da década passada. Felizmente seus filmes se conectam tematicamente, o que ajuda a compreender um pouco suas obsessões e seus interesses. Relacionamentos com destaque para o ciúme e a traição são destaque em seus mais recentes filmes, mas descobri seu interesse pelo tema do suicídio em UM VERÃO ESCALDANTE (2011). O que não imaginava é que esse interesse já havia se manifestado de maneira ainda mais sombria neste A FRONTEIRA DA ALVORADA (2008), também estrelado por seu filho e que compõem juntos uma espécie de dobradinha temática.

Além do mais, Garrel com um pé no cinema de gênero não era algo que eu esperava. Aparentemente o filme parece se dividir em um lado A e um lado B, sendo que o lado A trata do relacionamento de François (Louis Garrel) com a bela e intensa atriz de cinema Carole (Laura Smet). O lado B seria o de sua relação com Ève (Clémentine Poidatz), uma moça mais tranquila e representativa da estabilidade emocional. A atmosfera gótica chega para tornar o filme mais misterioso e incômodo, mas também traz um charme especial. Gosto, em especial, de uma cena na floresta.

Garrel também continua seu delicioso anacronismo, com apaixonados escrevendo cartas manuscritas em pleno 2007 e câmeras fotográficas antigas sendo usadas. Há até o uso de íris, como recurso estilístico. É um filme de cenas majoritariamente curtas, principalmente em sua segunda metade, mas gosto mais das cenas mais estendidas, com a Carole. É curioso o diretor fazer essa dobradinha de filmes sobre personagens suicidas em um curto espaço de tempo. O aspecto autobiográfico comparece especialmente na experiência traumática que o próprio Garrel teve com o eletrochoque, quando foi internado por vício em drogas, na juventude.

O ultrarromantismo comparece de maneira tão forte que é até difícil encontrar paralelos com o trabalho de outros realizadores. E talvez por isso eu tenha achado este filme tão precioso. Os tons góticos fazem lembrar tanto o romance O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, quanto A Volta do Parafuso, de Henry James. Carole, a jovem que se suicida aparece para fazer um convite ao amado, para que ele se junte a ela. Ou seria uma alucinação? É Garrel adentrando (ou tangenciando) o universo dos filmes de horror, com sua delicadeza toda própria.

O filme começa com o jovem fotógrafo François (Louis Garrel) chegando ao apartamento da atriz Carole (Laura Smet) para fazer uma sessão de fotos com a atraente jovem. Logo a relação dos dois vai ficando mais íntima. Ela é casada, mas o marido vive viajando. Enquanto isso, o que parecia ser uma atração baseada apenas em sexo vai se alimentando de juras de amor. François, porém, parece ficar assustado com a instabilidade de Carole (ela bebe muito e às vezes pensa estar sendo seguida). Ter que fugir da cama com a chegada repentina do marido foi provavelmente um sinal de que ele deveria deixá-la.

Isso mais intuímos do que sabemos, já que Garrel tem uma condução dúbia, às vezes, no que se refere aos sentimentos de seus personagens - no caso deste filme não há uma narração off, como em O SAL DAS LÁGRIMAS (2020), por exemplo. Mas sabemos de maneira explícita do sofrimento de Carole, que anseia pelo amado em cartas cada vez mais desesperadas. Um desespero que vai levá-la a uma temporada em uma instituição psiquiátrica.

Há uma cena particularmente muito dolorosa na primeira metade do filme: quando François sofre de ciúmes enquanto Carole flerta com outro homem em uma festa privada com os amigos dela. É talvez a sequência mais longa do filme, e é embalada com uma trilha sonora que privilegia piano e violinos dissonantes. É curioso como a música vai se intensificando no filme, mesmo quando François passa a ter um relacionamento mais estável com Ève (Clémentine Poidatz). Isso porque ele parece temer a estabilidade, temer a chegada de um filho. Isso pode talvez explicar o caminho que ele se vê inclinado a tomar no final.

Houve quem comparasse este filme a AMANTES, de James Gray (ambos foram lançados no mesmo ano), tendo em vista os dois títulos mostrarem um homem dividido entre duas mulheres. Mas, por mais que a obra de Gray ofereça um final um tanto amargo embora realista, o que Garrel faz em A FRONTEIRA DA ALVORADA é muito mais ousado e cruel. E também mais entregue de cabeça a um doentio e perturbador espírito ultrarromântico.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

+ DOIS FILMES

ANGÚSTIA (The Locket)

Embora o tom de ANGÚSTIA (1946), de John Brahm, seja sombrio e sério, é difícil não vê-lo com um sorriso no rosto com os vários flashbacks dentro de flashbacks que ajudam a formar a trama e nos apresentam à personagem de Laraine Day, uma mulher aparentemente perigosa, que está prestes a se casar com um rapaz, que, no dia da cerimônia, é visitado por um homem que diz que deve lhe contar a verdade sobre ela. É mais um dos tantos filmes sobre mulheres perigosas (femme fatales) que ajudaram a construir o subgênero, mas, ao mesmo tempo, confesso que eu fiquei na dúvida sobre a culpa da mulher. O filme é curtinho (um dos motivos de ser a escolha da madrugada) e a trama é muito bem conduzida e redondinha. Como Hitchcock ainda não havia inventado o flashback de mentira (em PAVOR NOS BASTIDORES) havia uma espécie de trato entre roteiristas e espectadores sobre a veracidade do que era mostrado nos flashbacks. No mais, o filme traz elementos da psicanálise que estavam em moda em Hollywood naquele momento.

LUCKY - UMA MULHER DE SORTE (Lucky)

Mais um filme de gênero que se apropria das convenções (do slasher, principalmente) para trazer discussões relevantes sobre a solidão da mulher, a incompreensão ou a falta de interesse da sociedade em compreendê-la, e em um ritmo que faz com que fiquemos cada vez mais irritados com a condição da protagonista, assim como ela. Ou seja, por mais que LUCKY - UMA MULHER DE SORTE (2020), de Natasha Kermani, tenha um formato que use o looping (dessa vez não temporal?), não é exatamente um filme divertido ou prazeroso. Na trama, mulher passa a receber, todos os dias em sua casa, um homem mascarado que tenta matá-la. Ela nada sabe dele e as reações da polícia e todos as pessoas que estão prontas para "ajudá-la" são tão estranhas quanto toda a situação.

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