sábado, março 27, 2021

O SAL DAS LÁGRIMAS (Le Sel des Larmes)



Os dias estão bem difíceis. Estou tentando escrever, já que não estou conseguindo me concentrar nem na leitura nem nos filmes. Preocupado com um amigo na UTI e triste por toda esta tragédia por que estamos passando, fica mais complicado buscar inspiração para escrever sobre um filme, por mais inspiradora que seja a obra. Mas vamos tentar. 

O filme em questão é O SAL DE LÁGRIMAS (2020), mais recente trabalho do mestre Philippe Garrel, novamente com a maravilhosa colaboração do lendário roteirista Jean-Claude Carrière - os dois trabalharam juntos também em dois dos melhores trabalhos de Garrel, À SOMBRA DE DUAS MULHERES (2015) e AMANTE POR UM DIA (2017). A parceria me pareceu aqui ainda mais acertada e apurada do que nos já brilhantes trabalhos citados. Como disse o crítico Carlos Natálio, do site À Pala de Walsh,

"Garrel é o artesão/marceneiro supremo. Nada está a mais. De filme para filme, a maré do que poderia estar “a mais” recua sempre, os cenários são os mínimos, as cenas cada vez mais precisas. Tudo o que é do drama convencional – mortes, gravidezes, desencontros, abortos – acontecem de súbito, em off."

E o uso da figura de um narrador onisciente neste filme é pontual, mas também muito precisa, tornando, inclusive, a cena final arrepiante, ao mostrar por meios também orais a imensa dor do protagonista. O uso da palavra, aliás, nunca foi um problema nos filmes franceses, que muitos consideram verborrágicos. Mas no caso desse cinema mais econômico de Garrel, as palavras são poucas e essenciais, mesmo aquelas que não partem da boca dos personagens. Saber, por exemplo, que Luc (Logann Antuofermo) não sabia ao certo da existência do amor ajuda bastante a nos solidarizarmos com ele.

Logo ele que é um personagem cuja principal característica apresentada é a covardia, sendo facilmente julgável. O que talvez mais doa, em suas atitudes pouco corretas, seja a cena do pai querendo falar com ele no apartamento, e ele fica calado, fingindo que não está. Logo o pai, que é o maior símbolo do amor na vida de Luc. Não o amor romântico, mas o amor em seu sentido maior. O amor romântico ele não procura, mas procura sim as mulheres.

Já no começo do filme, somos apresentados à jovem Djemila (Oulaya Amamra). Os dois se conhecem numa parada de ônibus e Luc puxa conversa, se aproxima, quer vê-la novamente, arranja novos encontros, tenta um contato físico mais íntimo. Mas chega o momento de ele voltar para o interior. Sua passagem por Paris era rápida, para fazer um teste para um curso de marcenaria. Aliás, é interessante esse detalhe da profissão e do anacronismo, já que o filme parece se passar nos dias de hoje, mas a tecnologia usada é antiga.

A segunda mulher do filme é uma antiga namorada de infância, que volta para a vida de Luc, Geneviève (Louise Chevillotte, vista em AMANTE POR UM DIA e também no ótimo SYNONYMES, de Nadav Lapid). Geneviève é uma moça perfeita, elegante e carinhosa. Mesmo assim, Luc não retribui o amor que ela sente por ele, age de maneira covarde quando ela mais precisa, e foge para Paris, sem dar mais notícias. Para ele, ser pai em uma idade tão jovem seria o fim de sua vida.

E de certa forma entendemos essa urgência no viver a juventude através da excelente cena da danceteria, filmada em um único plano-sequência e em um único take. A cena traz uma carga de alegria, excitação e, no meu caso, saudade dos bons tempos da juventude nas boates, que é mais uma prova da excelência de Garrel, de sua capacidade de nos colocar em um território de intensidade emocional. Até porque é naquela noite que Luc encontra a mulher que mudará um pouco sua descrença no amor, a bela Betsy (Souheila Yacoub, vista em CLIMAX, de Gaspar Noé).

E aí é que entra um tema que é muito caro a Garrel, que é a questão da poligamia versus monogamia, do ciúme, das tentativas de lidar com uma relação a três, já que Betsy quer viver também com outro rapaz dentro da mesma casa. A gente sabe que mesmo em sociedades que adotam a bigamia ou poligamia, o ciúme sempre aparece. Na Biblia vemos o caso de Abraão. Sara, sua esposa, tinha ciúme da escrava, Agar, principalmente por ela ter dado a Abraão seu primeiro filho.

Esse sentimento, tão próprio de nós, humanos, frágeis, possessivos e carentes, é um objeto de tanto interesse de Garrel que ele fez um filme com esse título, O CIÚME (2013), que faz parte da chamada "trilogia do ciúme", junto com os já citados À SOMBRA DE DUAS MULHERES e AMANTE POR UM DIA. E Betsy é uma personagem forte e quase toma o filme para si, com sua autoconfiança e sensualidade. Mas também contribui em determinado momento com as lágrimas salgadas do título, quando precisa dar uma notícia ruim para Luc. E o que é aquela porta fechada no final, hein? E aquelas palavras do narrador? Um dos melhores filmes recentes, sem dúvida.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

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