
Os dias estão bem difíceis. Estou tentando escrever, já que não estou conseguindo me concentrar nem na leitura nem nos filmes. Preocupado com um amigo na UTI e triste por toda esta tragédia por que estamos passando, fica mais complicado buscar inspiração para escrever sobre um filme, por mais inspiradora que seja a obra. Mas vamos tentar.
O filme em questão é O SAL DE LÁGRIMAS (2020), mais recente trabalho do mestre Philippe Garrel, novamente com a maravilhosa colaboração do lendário roteirista Jean-Claude Carrière - os dois trabalharam juntos também em dois dos melhores trabalhos de Garrel, À SOMBRA DE DUAS MULHERES (2015) e AMANTE POR UM DIA (2017). A parceria me pareceu aqui ainda mais acertada e apurada do que nos já brilhantes trabalhos citados. Como disse o crítico Carlos Natálio, do site À Pala de Walsh,
"Garrel é o artesão/marceneiro supremo. Nada está a mais. De filme para filme, a maré do que poderia estar “a mais” recua sempre, os cenários são os mínimos, as cenas cada vez mais precisas. Tudo o que é do drama convencional – mortes, gravidezes, desencontros, abortos – acontecem de súbito, em off."
E o uso da figura de um narrador onisciente neste filme é pontual, mas também muito precisa, tornando, inclusive, a cena final arrepiante, ao mostrar por meios também orais a imensa dor do protagonista. O uso da palavra, aliás, nunca foi um problema nos filmes franceses, que muitos consideram verborrágicos. Mas no caso desse cinema mais econômico de Garrel, as palavras são poucas e essenciais, mesmo aquelas que não partem da boca dos personagens. Saber, por exemplo, que Luc (Logann Antuofermo) não sabia ao certo da existência do amor ajuda bastante a nos solidarizarmos com ele.
Logo ele que é um personagem cuja principal característica apresentada é a covardia, sendo facilmente julgável. O que talvez mais doa, em suas atitudes pouco corretas, seja a cena do pai querendo falar com ele no apartamento, e ele fica calado, fingindo que não está. Logo o pai, que é o maior símbolo do amor na vida de Luc. Não o amor romântico, mas o amor em seu sentido maior. O amor romântico ele não procura, mas procura sim as mulheres.
Já no começo do filme, somos apresentados à jovem Djemila (Oulaya Amamra). Os dois se conhecem numa parada de ônibus e Luc puxa conversa, se aproxima, quer vê-la novamente, arranja novos encontros, tenta um contato físico mais íntimo. Mas chega o momento de ele voltar para o interior. Sua passagem por Paris era rápida, para fazer um teste para um curso de marcenaria. Aliás, é interessante esse detalhe da profissão e do anacronismo, já que o filme parece se passar nos dias de hoje, mas a tecnologia usada é antiga.
A segunda mulher do filme é uma antiga namorada de infância, que volta para a vida de Luc, Geneviève (Louise Chevillotte, vista em AMANTE POR UM DIA e também no ótimo SYNONYMES, de Nadav Lapid). Geneviève é uma moça perfeita, elegante e carinhosa. Mesmo assim, Luc não retribui o amor que ela sente por ele, age de maneira covarde quando ela mais precisa, e foge para Paris, sem dar mais notícias. Para ele, ser pai em uma idade tão jovem seria o fim de sua vida.
E de certa forma entendemos essa urgência no viver a juventude através da excelente cena da danceteria, filmada em um único plano-sequência e em um único take. A cena traz uma carga de alegria, excitação e, no meu caso, saudade dos bons tempos da juventude nas boates, que é mais uma prova da excelência de Garrel, de sua capacidade de nos colocar em um território de intensidade emocional. Até porque é naquela noite que Luc encontra a mulher que mudará um pouco sua descrença no amor, a bela Betsy (Souheila Yacoub, vista em CLIMAX, de Gaspar Noé).
E aí é que entra um tema que é muito caro a Garrel, que é a questão da poligamia versus monogamia, do ciúme, das tentativas de lidar com uma relação a três, já que Betsy quer viver também com outro rapaz dentro da mesma casa. A gente sabe que mesmo em sociedades que adotam a bigamia ou poligamia, o ciúme sempre aparece. Na Biblia vemos o caso de Abraão. Sara, sua esposa, tinha ciúme da escrava, Agar, principalmente por ela ter dado a Abraão seu primeiro filho.
Esse sentimento, tão próprio de nós, humanos, frágeis, possessivos e carentes, é um objeto de tanto interesse de Garrel que ele fez um filme com esse título, O CIÚME (2013), que faz parte da chamada "trilogia do ciúme", junto com os já citados À SOMBRA DE DUAS MULHERES e AMANTE POR UM DIA. E Betsy é uma personagem forte e quase toma o filme para si, com sua autoconfiança e sensualidade. Mas também contribui em determinado momento com as lágrimas salgadas do título, quando precisa dar uma notícia ruim para Luc. E o que é aquela porta fechada no final, hein? E aquelas palavras do narrador? Um dos melhores filmes recentes, sem dúvida.
Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.