terça-feira, março 30, 2021

LUA DE FEL (Bitter Moon)



O ano era 1994. Acordei cedo para ir ao trabalho e estava ansioso para saber se havia passado no vestibular. Naquela época não tinha esse negócio de internet e por isso comprei o jornal na banca que ficava perto da CABEC, onde trabalhava. Não consegui me conter e olhei ali na rua mesmo. Fiquei muito feliz quando vi meu nome. Não lembro qual foi a colocação, mas estava aprovado e iria começar o curso de Letras na Universidade Estadual do Ceará, no turno da noite, que era o turno possível pra mim, que trabalhava o dia todo. Nada podia perturbar o meu bom humor naquele dia, portanto.

À noite, resolvi que iria ao cinema. Não lembro que dia era da semana, mas o filme que estava em cartaz no Cine Fortaleza era LUA DE FEL (1992), meu primeiro Roman Polanski no cinema. Em casa já havia assistido a alguns clássicos dos anos 60, 70 e 80 do cineasta e sabia de sua importância. Convidei o Santiago para ver o filme comigo. Ele topou. Na bilheteria, a moça informou que a sala estava com problemas no ar condicionado. Não estava funcionando, na verdade. Aceitamos ver mesmo assim. E foi impressionante como, mesmo sentindo calor, eu me esqueci desse detalhe insignificante perante àquele filme imenso que se descortinava em minha frente.

Rever LUA DE FEL no último sábado foi também perceber o quão importante é a homenagem à narrativa clássica, seja a literária, seja a de origem oral ou a de origem hollywoodiana. A história que importa é, portanto, a do narrador, o escritor Oscar, um homem que em sua cadeira de rodas resolve contar sua história de vida para o viajante inglês Nigel, vivido por Hugh Grant. Ambos estavam viajando no cruzeiro com suas respectivas esposas, Mimi (Emmanuelle Seigner) e Fiona (Kristin Scott Thomas).

Ao convidar Nigel para ouvir sua história e já sabendo que o jovem ouvinte já havia conhecido sua bela esposa Mimi, Oscar sabia o quanto aquela história seria atraente para o viajante. E começam as sequências de flashbacks. Os flashbacks mais fascinantes do cinema dos anos 1990, pois nos jogam em uma narrativa que começa com uma história de amor. E tanto Polanski, com o belo uso da fotografia, quanto o narrador, com seu florear nas palavras, nos deixavam tão apaixonados quanto Oscar. Até porque a atriz escolhida para o papel, Seigner, esposa de Polanski, que já havia trabalhado com ele em BUSCA FRENÉTICA (1988), era estupidamente linda.

A história começa em um ônibus. A moça não tinha o tíquete, Oscar oferece o dele e é obrigado a descer do ônibus. Mas não sem esquecer daquela jovem, que ele procuraria pelas ruas de Paris durante alguns dias. Até que, por acaso, em um restaurante, ele a reencontra. E a partir daí começa um relacionamento apaixonado, que se inicia de maneira doce e até ingênua, mas que chega num crescendo de erotismo forte e belo (a cena do leite, por exemplo, é difícil sair da memória dos espectadores).

E esse erotismo também chega a crescer tanto que se confunde com perversão. Não que haja algum problema com isso, já que as brincadeiras são divertidas. O problema é que Oscar cansa de Mimi. Mesmo reconhecendo que ela era linda, ele sabia que a relação já estava no fim. Ainda assim, o espectador que vê o filme pela primeira vez se surpreende com o que está por vir.

Entre as sessões de narrativas de Oscar para Nigel, o filme nos ambienta tanto àquele navio, que frequentemente enfrenta tempestades, quanto à tensão que se estabelece entre o quarteto de personagens, principalmente porque Nigel estava ficando enlouquecidamente apaixonado por Mimi. Mas a Mimi é uma personagem múltipla. E por isso é a mais rica do filme, passando por diversas fases, seja de menina quase inocente, para uma ninfomaníaca, depois para uma mulher rejeitada e em seguida para uma mulher segura de si, de maquiagem carregada, mas também amargurada.

Mimi vai mudando, a princípio, não por vontade própria, mas imposições das situações que lhe eram impostas cruelmente. Até que chegou o momento em que ela surge para passar a impor as mudanças, a ser dona de seu destino, e do destino de Oscar, quando o filme começa a adquirir um tom de terror psicológico e tintas mais carregadas de dramaticidade, sem o menor temor em parecer cafona. Aliás, Polanski brinca muito com isso. O que é a cena das duas mulheres, justamente ao som de "Slave to love", de Bryan Ferry? E antes, na festa, tocando "Hello", de Lionel Ritchie?

O espírito da época também contribuiu, se pensarmos tanto o uso do erotismo quanto do thriller. 1992 foi o ano de INSTINTO SELVAGEM, de Paul Verhoeven; de O AMANTE, de Jean-Jacques Annaud; de DRÁCULA DE BRAM STOKER, de Francis Ford Coppola; de TWIN PEAKS - OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER, de David Lynch; JAMÓN, JAMÓN, de Bigas Luna; PERDAS E DANOS, de Louis Malle; e até um filme de super-herói, BATMAN - O RETORNO, de Tim Burton, tinha um contorno erótico. Foi a primeira vez que Polanski adicionou o erotismo de maneira tão gráfica em um de seus filmes, e emulando muito a Velha Hollywood, o que torna seu trabalho ainda mais transgressor.

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

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