sábado, agosto 08, 2020

QUE LE DIABLE NOUS EMPORTE

Quem me conhece já deve imaginar que meu interesse pela obra de Jean-Claude Brisseau se deu através, inicialmente, por seus filmes mais eróticos dos anos 2000, os excelentes COISAS SECRETAS (2002), OS ANJOS EXTERMINADORES (2006) e ERÓTICA AVENTURA (2009). Mas como Brisseau também é um cineasta interessado na espiritualidade, os interesses mais densos do plano material se unem de maneira tal, que é quase como se ele conseguisse misturar água e óleo. Ele traz transcendência para o sexo, o elevando a uma experiência religiosa, inclusive com o uso da música, que de forma geral é usada de maneira econômica em seus filmes, nas sequências de diálogos.

Assim, como eu tenho uma lacuna considerável para preencher nos filmes das décadas de 1970-1990 do cineasta, sua visão de realismo social e de poeta dos subúrbios que vejo em alguns textos ainda me foge um pouco. Portanto, a relação que faço de seu filme de despedida do plano material, QUE LE DIABLE NOUS EMPORTE (2018), é com seus trabalhos realizados no novo milênio. Se em seu trabalho anterior, A GAROTA DE LUGAR NENHUM (2012), esse erotismo era deixado um bocado de lado, agora ele retorna para namorar novamente o aspecto espiritual.

A história começa em tons rohmerianos, com Camille (Fabiene Babe) esperando ônibus em um terminal e atendendo a ligação de um celular que se encontra no banco. Do outro lado da linha, uma outra mulher, Suzy (Isabelle Prim), pede para que ela guarde o telefone pra ela, leve-o com ela para sua casa, que logo ela passará para pegar. O primeiro encontro das duas mulheres, no apartamento, parece carregado de sexualidade logo de início, quando Camille, usando apenas um vestido confortável, se mostra atraída por aquela mulher bem mais jovem que ela que afirma ter vários amantes, e que o homem que envia vídeos eróticos para o seu telefone é uma pessoa que está perdidamente louca por ela.

Logo essa atração se torna mútua, com um diálogo que une o naturalismo com uma espécie de estranheza, Suzy mostra os vídeos que ela faz transando com estranhos em público, e Camille a apresenta seus vídeos eróticos caseiros, mas feitos com efeitos especiais e muito bem trabalhados como arte. O sexo entre as duas é inevitável. A dona do apartamento e amiga íntima de Camille, Clara (Anna Sigalevitch), chega, flagra as duas na cama e se junta a elas na festa. O sexo funciona como elo inicial entre aquelas três mulheres.

Clara tem ajudado Camille em uma difícil fase de depressão em sua vida. E Suzy depois se mostrará bem menos femme fatale do que se apresentara inicialmente. Seu único amante na verdade é um homem que a persegue na casa de Clara, Fabrice (Fabrice Deville). As outras mulheres ajudam-na a se livrar do homem, que fica bêbado, usa uma arma e faz uma confusão do lado de fora. Quem mais ajuda a contornar a situação é Clara, que se sente na obrigação de fazer com que Fabrice esqueça Suzy. A cena de Clara fazendo sexo com Fabrice é um dos momentos mais eróticos e também de exposição de fragilidades do cinema de Brisseau. Muito lindo.

O caminho das três mulheres se conduz de maneira diferente. Suzy encontra a espiritualidade com um senhor septuagenário que mora no quinto andar. E Clara encontra o amor romântico pela primeira vez na figura de Fabrice. Já Camille tem conseguido força espiritual e independência depois de tantos anos de necessidade da presença da amiga. Das três, a que mais me encanta é Clara, com sua beleza, sua generosidade, sua sensualidade e seu amor que se expande por todos os níveis.

Como um cineasta profundamente religioso, Brisseau nos traz em seu filme-testamento momentos de gratidão poucas vezes vistos em outras obras para cinema. Ele começa com o amor físico, carnal; depois vai para o amor mais próximo da amizade; depois o amor romântico, e em seguida o amor transcendental. O fato de termos personagens aquebrantados ajuda muito a nos identificarmos em com um ou mais deles.

Li em um ótimo texto sobre o filme que suas personagens femininas são representações das feridas do cineasta. E achei muito interessante essa interpretação. Assim como a ideia de que, em seus trabalhos mais maduros, do fim de sua vida, ele estaria mais interessado na cura do que na fúria, algo bem mais presente em suas obras iniciais, pelo que li e pelo que vi em UM JOGO BRUTAL (1983). É uma forma reconfortante de deixar o mundo material, ainda que continuando com um pé firme nos desejos e nos prazeres supostamente menos nobres.

+ TRÊS FILMES

TRANSTORNO EXPLOSIVO (Systemsprenger)

Impressionante e comovente história de uma garotinha de nove anos que, por conta de um problema de explosão emocional constante, não consegue encontrar um lugar para ficar. Em alguns momentos é até possível ficar um tanto irritado com a garota, mas o filme tem um olhar muito carinhoso com ela e isso faz muita diferença. Apesar de a mãe não conseguir ficar com ela, seu sonho é voltar para a casa de sua mãe. E talvez isso seja o que mais emociona, assim como sua relação de afeto com outras pessoas, como o rapaz que se identifica com ela e tenta ajudá-la profissionalmente. Impressionante a garotinha, Helena Zengel. Daqueles casos de interpretação mirim que deixa a gente de boca aberta. Com o sucesso que teve, ela estará no próximo filme de Paul Greengrass, junto com Tom Hanks, em fase de pós-produção. Direção: Nora Fingscheidt. Ano: 2019.

VIVA - A VIDA É UMA FESTA (Coco)

Já não consigo mais diferenciar o que é Pixar e o que é Disney Animation, mas não tem problema. O que importa é que ver mais um acerto da Pixar/Disney é sempre um prazer. Este filme é daqueles que envolvem tanto e impressionam tanto com seu visual que merece todos os prêmios. Não sei o quanto os roteiristas roubaram da animação FESTA NO CÉU, mas é muito bom ver uma apropriação tão bonita de uma cultura alheia, como a mexicana, e o fascinante Día de los Muertos e a questão da lembrança como elemento de manutenção da vida no pós-vida. E tem também o amor pela arte e um certo ar de rebeldia do jovem protagonista. Tudo isso junto dá um caldo muito bonito. Sem falar no mundo dos mortos. Direção: Lee Unkrich e Adrian Molina. Ano: 2017.

INSUBSTITUÍVEL (Médecin de Campagne)

Eu até que tinha gostado do filme anterior de médico de Thomas Lilti, HIPÓCRATES (2014), mas este me pareceu tão anêmico e sem graça. Não que seja ruim; só não me disse nada e nem oferece nenhuma novidade formal (mas disso eu já sabia). Na trama, depois que um médico é diagnosticado com câncer, um novo médico se junta a ele para atender seus pacientes em uma região rural da França. Ano: 2016.

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