sábado, agosto 22, 2020

A VERDADE (La Vérité)

Fico curioso para ver a experiência de diretores "estrangeiros", especialmente os orientais, em países estranhos a eles. Em geral, costumo gostar do resultado. Gostei de ver Wong Kar-Wai nos Estados Unidos (UM BEIJO ROUBADO); de ver Abbas Kiarostami na França (CÓPIA FIEL) e no Japão (UM ALGUÉM APAIXONADO); de ver Asghard Farhadi na França (O PASSADO) e na Espanha (TODOS JÁ SABEM); de ver Hou Hsiao-Hsien na França (A VIAGEM DO BALÃO VERMELHO). E a gente percebe, vendo esses exemplos, o quanto a França é carinhosa com os autores, tão receptiva a obras que terão seus espaços garantidos em festivais internacionais, mas que não necessariamente terão boas bilheterias.

E mais uma vez a França se mostra interessada em um diretor estrangeiro, o japonês Hirokazu Kore-eda, vencedor da Palma de Ouro com ASSUNTO DE FAMÍLIA (2018). Em Cannes, ele já havia ganhado prêmios importantes antes, com PAIS & FILHOS (2013), que ainda acho o mais bonito dele. Minha primeira experiência com Kore-eda foi com o drama espiritual DEPOIS DA VIDA (1998). De lá pra cá, ainda que perdendo alguns de seus filmes, também pude conferir parte de sua obra e ver o quanto a família lhe é tão cara como tema. Não sei se ele chega a ser comparado com Yasujiro Ozu por causa disso ou se as questões familiares são temas caros aos japoneses de modo geral.

E é tratando de família que ele traz um argumento que estava guardado há alguns anos para filmar e faz nascer A VERDADE (2019), seu primeiro filme não falado em japonês, com Juliette Binoche, Catherine Deneuve e Ethan Hawke. Ludivine Sagnier também aparece no filme, mas em um papel um tanto apagado. Em entrevista ao site Filmed in Ether, Kore-eda conta que não teria como fazer este filme no Japão, pois lá não existe uma estrela do porte de Catherine Deneuve para ser tão representativa desse poder e dessa fama.

Inclusive, o filme brinca com elementos reais da vida/obra de Deneuve, como o fato de ela ter de fato quase filmado com Alfred Hitchcock. Fiquei curioso e procurei saber: Hitchcock ficou encantado com ela em A SEREIA DO MISSISSIPI, de François Truffaut, mas, por algum motivo, o projeto não foi adiante. Até porque, na década de 1970, o mestre do suspense estava com a saúde bem frágil e realizou apenas dois filmes antes de morrer. E embora Binoche seja hoje uma estrela de um porte tão grande (ou quase) quanto Deneuve, há ainda essa relação de adoração maior a Deneuve, por ter uma filmografia mais longa, desde os anos 1960.

Mas acho que gosto mais ainda da Binoche, talvez por ter acompanhado sua carreira desde os anos 1980 e vê-la envelhecer linda e radiante ainda neste momento pós-50's. Ou seja, ela é o caso de atriz bela cujo tempo lhe foi muito gentil. Além do mais, ela tem um cuidado muito especial com os cineastas com quem trabalha. Basta bater o olho em sua filmografia para perceber isso. Nem é preciso citar exemplos. E é interessante vê-la pela primeira vez ao lado de Deneuve, talvez hoje em dia uma espécie de primeira dama do cinema francês.

Binoche é Lumir, uma mulher casada com um ator americano de segundo escalão (Ethan Hawke) e que tem uma filha pequena adorável. A bela família, a princípio sem defeitos, chega para visitar a mãe, Fabienne (Deneuve), uma estrela de cinema que já teve os seus tempos mais gloriosos, se preparando para fazer o papel de coadjuvante em um novo filme. As duas não se entendem muito bem e há traumas na relação, atritos que ressurgem no retorno ao convívio, incluindo a história de alguém que morreu e que foi muito importante para as duas.

Gosto muito da familiaridade de Hawke com aquele ambiente, por mais que ele seja o elemento estranho. Isso talvez se deva às viagens à Europa para fazer a (por enquanto) trilogia de Jesse e Celine com Richard Linklater. Então, ele passa essa imagem de pessoa que equilibra o ambiente, trazendo um pouco de tranquilidade quando o clima às vezes está tenso entre as duas mulheres. E por mais que ele guarde um problema seu, o modo carinhoso com que ele trata a filha também passa bastante ternura.

A VERDADE é um filme de sutilezas. Diria que mais sutil do que qualquer outro filme realizado no Japão (pelo menos, dentre os que vi). E provavelmente menos poderoso também. Ainda assim, é uma delícia de ver. O tempo passa rapidamente em uma trama que não se mostra nem um pouco apressada. Senti falta de algumas cenas para unirem determinados momentos, mas isso não chega a ser um grande problema.

É interessante também ver o "filme dentro do filme", uma espécie de mix de sci-fi com melodrama, em que Deneuve interpreta a filha de uma mulher que vai ao espaço e não envelhece. Assim, há cenas curiosas de uma mulher em seus 70 anos (Deneuve) chamando uma mulher jovem de mamãe. A situação um tanto surreal lembra um pouco os diálogos do pós-vida de DEPOIS DA VIDA, do Kore-eda, mas trazem também reflexões sobre o envelhecimento e a passagem rápida da vida humana, bem como a questão da ausência materna. Enquanto isso, na vida real, Fabienne e Lumir vão descobrindo coisas do passado que elas até então não sabiam.

Agradecimentos à Paula, pela companhia e pela conversa após o filme.

+ DOIS FILMES (CURTOS)

GLAURA

Adoro os filmes do Guilherme de Almeida Prado, lamento o fato de ele estar "parado" e sonho em poder um dia ver a sua obra de estreia, AS TARAS DE TODOS NÓS (1981), realizada na Boca. Foi bom ver este curta com um elenco estelar e com característica de conto literário de linha mais ou menos tradicional. Júlia Lemmertz é uma mulher insatisfeita com a vida que leva, com a cantoria da vizinha, com o fato de ter que levar o sogro cadeirante para a missa aos domingos, enquanto o marido (Alexandre Borges) vai para o futebol. Mas o foco do filme é a questão da felicidade, não apenas no olhar a vida do outro (como o velho vivido por José Lewgoy diz), mas a própria vida mesmo. É talvez o mais despretensioso dos trabalhos do diretor. Ah, e a direção de fotografia é de Carlos Reichenbach! Ano: 1995.

MEU COMPADRE ZÉ KETI

Linda homenagem que Nelson Pereira dos Santos fez ao seu compadre, o grande compositor de sambas e marchinhas de carnaval Zé Keti, que já havia comparecido na trilha sonora de RIO, 40 GRAUS (1955), primeiro longa do cineasta, com "A voz do morro". Aliás, é impressionante a quantidade de clássicos de Zé Keti, que eu só fui conhecer de nome graças à Fernanda Takai, quando ela gravou "Diz que fui por aí" tão lindamente em seu álbum dedicado ao repertório de Nara Leão. As canções de Zé Keti estão tão entranhadas em nossa memória coletiva que é como se elas já existissem há séculos. E a homenagem é bonita e simples: Nelson apenas filma um grupo de amigos do compositor que cantam seus sucessos tomando cerveja, enquanto se prepara uma feijoada. Aqui a alegria supera a tristeza. Ano: 2001.

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