"Todo problema nos filmes de Ferrara é um problema social, um problema endêmico à formação e manutenção de uma comunidade humana."
(Adrian Martin, em "Neurosis Hotel: An Introduction to Abel Ferrara")
Dou meus parabéns a quem está conseguindo manter uma rotina de vida produtiva e tranquila neste período de quarentena. Por mais que tenha conseguido fazer algumas coisas, a maior parte do tempo não é nada produtiva. E embora não seja muito bom ficar se culpando por tudo, é também importante dar um chega pra lá no desânimo, a fim de fazer o que se tem de fazer de home office, sem ficar postergando, e ainda conseguir ler aquilo que se considera importante e ver os filmes que desejaria.
Ontem até tentei escrever alguma coisa para o blog e não consegui. E aí percebi que um dos motivos mínimos para eu encontrar um pouco de entusiasmo tem sido ver, ler e escrever sobre os filmes de Abel Ferrara. Ontem de madrugada terminei de ver INIMIGOS PELO DESTINO (1987), que não é dos seus grandes trabalhos, embora tenha os seus fãs, mas que tem sim a sua marca. É também um dos favoritos do realizador.
Lendo o ensaio "Geometria da Força: Abel Ferrara e Simone Weil", do historiador de cinema Tag Gallagher, especialista em Ford e em Rossellini, fiquei impressionado como o autor consegue destacar coisas que eu até então não havia percebido no filme, como os momentos mais estilizados, detalhes relativos aos objetos em cena, um uso de sombras que ele compara a Murnau, além de atentar para as superfícies geométricas e as texturas. Gostaria que ele fosse mais detalhado, mas ao menos me deixou mais atento para quando for ver novas obras do cineasta.
O filme é uma livre adaptação da história de Romeu e Julieta e também de AMOR, SUBLIME AMOR, de Robert Wise e Jerome Robbins, já que a ação se passa nos guetos de Nova York, e lida com uma briga de gangues. As gangues aqui são os italianos da Little Italy e os chineses de Chinatown. No meio do fogo cruzado, dois jovens se apaixonam: Tony e Tyen.
Diferente do que se poderia prever em um filme que se propõe em ser uma nova versão de uma das histórias mais famosas do mundo, há muito mais destaque para a máfia e para os embates entre as gangues dos dois lados do que para o romance entre os dois. Eu diria que isso prejudica um pouco a empatia e que seria o calcanhar de Aquiles de INIMIGOS PELO DESTINO. Ainda assim, há momentos de emoção intensa, bem típica dos italianos, como a cena do funeral do irmão de Tony. O rapaz acredita que o momento não é de preparar uma vingança contra os chineses, como quer sua famiglia, já que isso só traria mais mortes, e se revolta com todos.
Assim como o crítico Adrian Martin falou na frase que abre a postagem, o problema no filme não é de natureza apenas dos jovens apaixonados, mas algo muito maior, envolvendo toda a comunidade. Algo muito parecido com o que acontece em CIDADE DO MEDO (1984), cujos assassinatos das strippers têm profunda relação com as vidas individuais de cada personagem.
Nesse sentido, o sacrifício ainda que involuntário dos dois jovens serve para trazer um pouco de paz para as duas comunidades. Como herdeiro de um catolicismo que o persegue desde a infância em escola católica, o sacrifício se torna mais importante ainda quando vemos que o grupo de pessoas ao redor não tem consciência de coletividade. O próprio diretor diz que o filme é sobre conscientização, sobre o despertar político dos jovens diante da opressão dos mais velhos.
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Por mais que eu goste do começo do filme, com as festas punk, e fique encantado sempre com a beleza de Elle Fanning, além de achar muito divertido o relacionamento do rapaz com ela (uma alien), apesar disso tudo, não consegui me conectar com este filme. Por isso demorei um tempo para terminar de vê-lo. Aliás, acabei terminando de ver a meia hora final, meio que por acidente, por problemas com a conexão da internet. Sei que não é a melhor maneira de apreciar um filme, mas de vez em quando isso acontece. Só não podia ter acontecido com um espaço de tempo tão grande. Quanto ao final, engraçado eu ter achado bonito, mas nada emocionante. O que só aponta a minha falta de conexão, por um motivo ou outro. Direção: John Cameron Mitchell. Ano: 2017.
TARDE PARA MORRER JOVEM (Tarde para Morir Joven)
Custei um pouco a entrar no clima do filme, que nos joga no meio da ação, em que um grupo de habitantes de uma comuna na região rural do Chile procura se instalar, viver a vida da melhor maneira possível, ter seus relacionamentos etc. A figura principal é da garota Sofia (Demian Hernández), que me faz lembrar as protagonistas de dois filmes brasileiros muito queridos, DESLEMBRO e CALIFÓRNIA, curiosamente também dirigidos por mulheres. Há também um clima que me lembra os filmes de Alice Rohrwacher, para citar outra diretora contemporânea. Embora seja um filme coral, o foco maior está em Sofia e também em outro jovem, um rapaz interessado nela, embora ela prefira um outro, mais velho. Uma pena que falte ao filme uma capacidade maior de nos fazer sentir o que passa pela cabeça e pelo coração de Sofia - achei até mais fácil me solidarizar com o rapaz. Há uma cena de um incêndio que justifica o prêmio de direção que o filme ganhou no Festival de Locarno. Admirável. No mais, porém, o filme me deixou mais inquieto do que presente em cada momento. Direção: Dominga Sotomayor Castillo. Ano: 2018.
ANOS 90 (Mid90s)
Interessante como alguns jovens diretores têm apostado em lidar com a difícil passagem de fase da adolescência. OITAVA SÉRIE, este aqui do Jonah Hill, o FORA DE SÉRIE, da Olivia Wilde são exemplos. Este é bastante centrado nos meninos, com participação feminina apenas pontual, mesmo quando mostra a mãe do protagonista. Gosto muito como Hill apresenta a necessidade de autoafirmação do garoto, os exemplos que ele julga ideais (primeiramente no irmão, única figura masculina da casa, depois nos meninos de rua skatistas). Lembrei em alguns momentos de KIDS, do Larry Clark, ainda que seja menos intenso e mais delicado. Ótimos os garotos escolhidos para os papéis. E a A24 acerta mais uma vez. Tem algum filme ruim dessa produtora? Ano: 2018.
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