Falemos um pouco de um dos filmes menos queridos da filmografia de Abel Ferrara, CIDADE DO MEDO (1984). O próprio diretor não queria fazê-lo, já que o roteiro havia sido pensado por ele e por Nicholas St. John, seu parceiro criativo, em 1975, e ele acreditava que havia ficado datado, que seria melhor um novo projeto. Porém, o estúdio queria fazer esse filme e ele deu o melhor de si para que a obra se materializasse.
Como sou da linha que acredita na teoria dos autores, costumo adotar a máxima que os piores filmes de grandes cineastas são melhores que pelo menos a imensa maioria dos melhores filmes de cineastas sem assinatura. E assinatura não falta em CIDADE DO MEDO. Tudo aquilo que se tornaria arquétipo nos filmes de Ferrara comparece neste neo noir que conta a história de um gerenciador de strippers para um clube, vivido por Tom Berenger, e uma stripper viciada em cocaína. E é também a história do quanto suas vidas são tocadas a partir do surgimento de um assassino serial que caça suas vítimas, na grande maioria mulheres, nas ruas.
O retalhador impiedoso tem vontade de matar, mas principalmente vontade de infligir dor e terror às mulheres. A primeira vítima não morre, embora fique, obviamente traumatizada. Esse personagem, que não tem nome (o próprio ator não aparece nos créditos finais, por algum motivo), assim como a jovem muda de SEDUÇÃO E VINGANÇA (1981), se torna escravo de sua pulsão sexual, e também de sua noção distorcida de moral e pecado.
O erotismo no corpo masculino, associado à violência (o assassino treina artes marciais e uso de facas nu) e no feminino, associado ao prazer e ao contentamento, como podemos ver na cena de striptease da personagem de Melanie Griffith, está presente no filme como associado ao pecado.
O catolicismo de Ferrara se mostra aqui também no personagem de Berenger, que é atormentado por uma culpa do passado, de quando era lutador de boxe e matou um homem no ringue. A culpa, na trama, porém, acaba funcionando mais como um catalisador para que o personagem, no terceiro ato, encontre um motivo forte para voltar a usar de violência ou até a matar um homem novamente.
Há também a brincadeira com os gêneros. O exagero na forma como o diretor pinta tanto o herói quanto o vilão, e principalmente o embate final entre os dois, que parece saído dos mais vagabundos filmes de ação da década de 1980, é tão enfatizado que, saindo de Ferrara, só pode ter sido proposital.
CIDADE DO MEDO foi o primeiro filme com um elenco hollywoodiano de Ferrara e que só não foi distribuído pela Fox porque o estúdio deu para trás quando percebeu que o filme tinha doses generosas de sexo (que nem é tanto assim, na verdade) e violência, e o vendeu para uma distribuidora independente.
+ TRÊS FILMES
ENTRE FACAS E SEGREDOS (Knives Out)
Elegante filme de mistério sobre um assassinato cometido por um dos membros de uma família que muito lembra os romances de Agatha Christie (ou os filmes baseados nos romances/novelas). O que me surpreendeu positivamente é que temos como protagonista, no meio de tantos atores e atrizes renomados, a personagem de Ana de Armas, o verdadeiro coração do filme. Ela é a cuidadora do patriarca da família e tem um problema de não conseguir mentir. O legal é que o filme vai entregando boa parte do que aconteceu na noite da morte do velho logo nos minutos iniciais, o que passa a impressão de que tudo está mais ou menos resolvido. Um elenco bacana, diálogos bem construídos, uma direção de arte lindona (pena que na sala que eu vi a projeção não era lá essas coisas), mas a mim me deixa um pouco cansado esse tipo de filme. Mas só um pouco. Direção: Rian Johnson. Ano: 2019.
JOHN WICK 3 - PARABELLUM (John Wick: Chapter 3 - Parabellum)
Um lado A extremamente excitante e um lado B um tanto desapontador. Ainda assim, ao lembrar das melhores cenas, presentes na primeira metade, há que se sentir uma ponta de alegria pela chance de ver um espetáculo desses no cinema. A cena da biblioteca, a primeira luta de facas com artes marciais, a cena de ação com a Halle Berry, tudo isso é muito bom. Direção foda do Chad Stahelski. Pena que no roteiro não souberam dar uma conclusão satisfatória e sem um vilão memorável. Ano: 2019.
CRIMES OBSCUROS (Dark Crimes)
Uma obra meio torta, mas que não deixa de ser eficiente em muitos aspectos. Jim Carrey está muito bem como um detetive de polícia obstinado, perturbado e rejeitado; a atmosfera da Polônia é de frieza até a alma; e a trama é boa, ainda que pareça ter alguns furos. A trilha, ainda que repetitiva, não deixa de contribuir a favor do filme. Mesmo que não resulte em um bom filme, vale ver essa experiência em língua inglesa do grego que dirigiu MISS VIOLENCE (2013). Direção: Alexander Avranas. Ano: 2016.
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