sábado, março 28, 2020

A LIBERDADE É AZUL (Trois Couleurs: Bleu)

Interessante como há filmes que parecem ao mesmo tão pouco palpáveis e tão atraentes, que a sensação que temos é querer entrar na tela, querer tocar os personagens, tocar aquele universo criado, experimentar todas as sensações possíveis. Eu sei que ver no cinema torna isso mais próximo de se materializar, e por isso lamento muito não ter visto A LIBERDADE É AZUL (1993) na telona. Eu acredito que o filme chegou a ser exibido nos cinemas de Fortaleza, sim, mas, por algum motivo, algum vacilo de minha parte, eu não saí de casa para vê-lo. Por isso, minhas primeiras boas memórias de tê-lo visto foi de uma fita VHS. Rever agora, mesmo com o coração em constante estado de inquietação, foi muito especial, ainda que talvez não o ideal. É como se houvesse sempre uma necessidade de voltar ao filme.

O trabalho de Krzysztof Kieslowski aqui é denso. Tão denso que seu filme, de duração curta para uma obra com um andamento lento, ainda que com tomadas relativamente curtas, parece atingir a perfeição. Cada cena, cada detalhe, é importante, seja para dar contornos mais profundos à trama e à protagonista vivida por Juliette Binoche, seja para oferecer algo que ajude a montar o quebra-cabeças da história. Não que se trate de um filme "de roteiro" - a direção é que é mais importante -, mas há uma preocupação sim nesse aspecto; há um rigor formal perceptível.

Eu costumava comparar A LIBERDADE É AZUL com O TURISTA ACIDENTAL, de Lawrence Kasdan. Ambos são filmes que tratam do luto, da perda. Mas a abordagem dos dois diretores é completamente distinta. Kasdan, por mais belo que seja o seu trabalho, se aproxima mais da narrativa mais clássica, enquanto Kieslowski traz com seus simbolismos e sutilezas um meio um pouco menos direto de se chegar ao âmago de sua história e dos sentimentos que ela traz consigo.

Na trama, Juliette Binoche é Julie, uma jovem mulher que é a única sobrevivente de um acidente de automóvel que mata seu marido, um famoso compositor, e sua filha de cinco anos de idade. Atormentada pela dor da perda do marido e da filha, inicialmente, ainda no hospital, Julie tenta o suicídio com o uso de pílulas. Não consegue, e em seguida resolve tomar algumas medidas que algumas pessoas, inclusive um dos melhores amigos de seu marido (Olivier, vivido por Benoít Régent), acredita ser uma loucura, como se livrar da casa, doar todo o dinheiro deixado pelo marido e ir embora, de preferência para alguma lugar que ninguém a conheça.

A partir da nova vida que surge, Julie nada em uma piscina, faz amizade com uma prostituta no prédio que passa a residir, tenta se livrar dos ratos que estão em seu apartamento, visita a mãe com Alzheimer, passeia pela cidade, procurando sentir alguma paz interior - e em certo momento é até possível vê-la experienciando essa paz. O passado, porém, vem à tona, principalmente na descoberta de que seu marido tinha uma amante e que ela está grávida. Isso acaba por mudar muito da percepção de Julie da vida e do modo como ela deseja lidar com a nova situação, inclusive na vontade que tem de ajudar Olivier na continuidade do projeto ambicioso do marido - o filme deixa indícios de que Julie era uma espécie de escritora fantasma e ajudou muito o marido quando ele estava sem inspiração.

Uma das coisas mais belas no filme, além da beleza extraordinária de Binoche, então com 29 anos, está na paleta de cores da fotografia do polonês Slawomir Idziak, que havia trabalhado com Kieslowski em A DUPLA VIDA DE VÉRONIQUE (1991). O diretor de fotografia destaca, obviamente o azul desde os primeiros frames. Como a cor azul costuma ser associada à tristeza em algumas culturas, não é nada difícil fazer essa associação com o filme também.

Outro aspecto maravilhoso de A LIBERDADE É AZUL está na música do também polonês Zbigniew Preisner, um colaborador assíduo do cineasta e provavelmente um grande amigo. Seu trabalho aqui é o de romper com os silêncios tão presentes no filme e em alguns momentos essa música surge como algo bastante desconcertante, como nas cenas em que a tela fica totalmente preta e a música se torna o elemento único por alguns segundos. Isso se dá em algumas conversas de Julie com outros personagens.

Quem sabe um dia essa obra seja relançada em cópia remasterizada nos cinemas e possamos nos aproximar mais daquilo que parece tão pouco palpável, mas que tem uma beleza fantasmagórica maravilhosa.

+ TRÊS FILMES

FELIZ ANIVERSÁRIO (Fête de Famille)

Curioso como este filme vem passando em branco, recebido com certa frieza até. Como exemplar de filmes sobre famílias com problemas, é um dos mais felizes que eu vi há um bom tempo. Lembrei do brasileiro DOMINGO, de Fellipe Barbosa e Clara Linhart, mas lembrei também de um dos trabalhos mais verborrágicos de Olivier Assayas, HORAS DE VERÃO. Este FELIZ ANIVERSÁRIO, além de ter uma fauna de personagens muito interessante e um ótimo elenco, ainda traz um crescendo de perturbação que se mistura com um grau de tranquilidade com que a matriarca e aniversariante (vivida por Catherine Deneuve) sempre lida com os problemas. Emmanuelle Bercot está mais uma vez fantástica como a maluca da família. Entre os rostos novos, gostei da jovem Isabel Aimé González-Sola, que faz a namorada do personagem de Vincent Macaigne, ator que sempre conquista minha simpatia nos filmes. Certamente, muita gente vai se identificar com a família. Direção: Cédric Kahn. Ano: 2019.

O PROFESSOR SUBSTITUTO (L'Heure de la Sortie)

Um filme estranho. E por isso mesmo merece ser visto com atenção. No começo, parece um filme de professor como qualquer outro, ao vermos um profissional sendo confrontando pelas dificuldades impostas por uma turma de alunos da elite intelectual da escola. Pode não agradar um pouco como a narrativa se desenrola a partir de certo momento, quando o professor passa a seguir os passos dos alunos, para investigá-los, mas não dá para negar que, ao final, não é um filme que abandona o espectador ao fim da projeção. Isso é muito bom. Direção: Sébastien Marnier. Ano: 2018.

A REVOLUÇÃO DE PARIS (Un Peuple et Son Roi)

Em geral, esses dramas de época franceses são bem chatos e acadêmicos. Esse não foge à regra, embora tenha sido recebido com interesse por um público grande do Cinema do Dragão, que lotou tanto a sala, que teve gente sentado nos degraus. E olha que o ar condicionado estava com defeito. O elenco do filme é cheio de rostos conhecidos, de gente talentosa vista em tantos outros filmes. Mas quem brilha mais é Adèle Haenel, ainda que seu papel nem seja assim tão bom. A ideia de contar a história da Revolução Francesa pelo ponto de vista do povo não deixa de ser boa e funciona até certo ponto. Achei impressionante crianças participando de um evento tão sangrento. Direção: Pierre Schoeller. Ano: 2018.

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