Desde o final dos anos 1970 que Abel Ferrara vem construindo uma carreira de filmes notáveis. Porém, seus trabalhos foram cada vez se tornando menos acessíveis ao grande público, seja por certo hermetismo – ENIGMA DO PODER (1998) é um exemplo bem óbvio –, seja pela distribuição cada vez mais rara, não só no circuito brasileiro, mas em quase todo o mundo. Além do mais, existe também uma necessidade de conhecer um pouco mais de sua obra, de modo que determinados filmes sejam melhor compreendidos, como uma extensão de seu trabalho, de suas obsessões.
BEM-VINDO A NOVA YORK (2014) é uma ótima chance de ver uma obra sua no cinema. A primeira cena, pré-créditos, mostra Gérard Depardieu dizendo o quanto ele odeia atuar e como ele prefere, inclusive, personagens distantes de si, odiáveis até. Essa pequena sequência, que pode confundir Depardieu com um suposto personagem-ator numa brincadeira metalinguística, funciona também como um convite para que o espectador, sabendo que aquilo se trata de um filme baseado em fatos reais, também o pense como cinema, antes de encará-lo como uma fuga da realidade, como em geral acontece com obras de ficção mais convencionais.
Uma vez que sabemos disso, estamos preparados para conhecer esse tal personagem odioso, que na verdade nem é tão odioso assim. Os personagens de Ferrara cometem seus pecados como se estivessem atravessando uma espécie de via-crúcis rumo a uma redenção ou algo do tipo, como é o caso de Harvey Keitel em VÍCIO FRENÉTICO (1992), com seus excessos e seu vazio existencial.
O alto executivo Devereaux (Depardieu) também possui uma vida de excessos e de busca por prazer sem limites. No caso, ele é viciado em sexo e, como tem muito dinheiro para isso, faz, com frequência, maratonas sexuais com amigos e prostitutas em hotéis de luxo. O primeiro ato do filme apresenta-nos a esse homem muito grande e gordo que faz sexo urrando como um animal e que se mete numa encrenca ao tentar abusar sexualmente de uma senhora que trabalha como camareira.
Obviamente essa atitude do personagem pode ganhar a antipatia ou inimizade da plateia, mas, como a tendência de Ferrara é eliminar a presença do mal, como muito bem registra Marcelo Miranda em sua crítica na Revista Interlúdio, talvez seja um pouco difícil de o personagem ser encarado como um monstro ou algo do tipo. Tampouco como a vítima que ele acredita ser, principalmente ao vermos alguns flashbacks, um deles mostrando um quase estupro em uma jornalista que só queria entrevistá-lo. Interessante notar o quanto a dramaturgia de Ferrara, principalmente nesses flashbacks, se aproxima da de alguns cineastas europeus, especialmente franceses.
O filme ganha contornos existencialistas no terceiro ato, quando adentramos os pensamentos do personagem, que se confunde com o próprio pensar de Abel Ferrara. Caso do momento em que ele reflete sobre a existência e o cosmos, momento que aparentemente contrasta com o início e o desenvolvimento do filme, mas que é perfeitamente coerente com uma espécie de iluminação do personagem, ao dizer que não sente nada, primeiramente ao ser questionado por um psicanalista.
BEM-VINDO A NOVA YORK é tão rico em significados e significantes que seria preciso não só de uma análise mais aprofundada, mas também de alguém que conhecesse mais a fundo a obra de Ferrara. Há pano pra manga para falar sobre uma crítica ao american way of life, sobre questões éticas, mas acredito que o que mais importa é o fator humano e filosófico que perpassa o filme, bem como a própria natureza do cinema ferrariano.
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