
Os anos 2000 foram gloriosos para a Marvel. Até porque a editora vinha de uma quase falência e se reergueu quando passada para mãos que souberam muito bem o que fazer. Da equipe criativa, o grande nome da companhia que fez acontecer foi Brian Michael Bendis, que comandou os títulos dos Novos Vingadores, do Demolidor, da Jessica Jones (Alias) e do Homem-Aranha Ultimate, além de comandar sagas que foram geralmente mal-aproveitadas no cinema e na televisão, como Invasão Secreta, Dinastia M, Guerra Civil e Reinado Sombrio.
As ideias para os Vingadores que ele teve para os dois títulos dos maiores super-heróis da Terra, que funcionavam como eixo para os demais títulos, inclusive do Capitão América de Ed Brubaker e o Thor e o Homem-Aranha, ambos de Straczynski, entre outros, foram as mais utilizadas nos filmes dos estúdios Marvel. E continuam sendo, conforme pudemos atestar neste THUNDERBOLTS* (2025), assinado por um nome pouco conhecido, Jake Schreier, de CIDADES DE PAPEL (2015).
E que bom que desta vez a Marvel acertou, e justo quando menos esperávamos algo minimamente interessante, depois do horrível resultado de CAPITÃO AMÉRICA – ADMIRÁVEL MUNDO NOVO, o filme que daria um restart nessa parada estratégica da companhia. O último resultado realmente positivo havia sido com GUARDIÕES DA GALÁXIA VOL. 3, dirigido pelo cara que foi para a Distinta Concorrência. Agora o chefe de criação do estúdio precisou repensar muita coisa depois de ter pisado no freio e arriscou, quem diria, um filme sobre depressão. O que é algo que vai na direção contrária do tom geralmente mais engraçadinho do Universo Cinematográfico Marvel.
Não que não haja momentos para fazer rir, mas eles são eclipsados pela dor dos personagens, por seus traumas, que chegam, inclusive, a uma mente não muito saudável, que é de um personagem muito importante dos quadrinhos da Marvel dos anos 2000, e que aparece de maneira criativa em THUNDERBOLTS*. Como tenho percebido nas críticas que muitos estão evitando dizer quem é o personagem, então, vou tentar evitar algum spoiler, mas posso adiantar que, para quem gosta do personagem, e de como ele também veio de uma ideia genial de Bendis para os Vingadores, embora não tenha sido uma criação sua, o resultado no filme é muito satisfatório.
Não acredito que a escolha do diretor para o filme tenha sido pensando em sua obra pregressa. É possível que a Marvel tenha desistido de queimar muitos autores que são tolhidos de suas obsessões em prol de um filme para a indústria e em vez disso optam por uma pessoa que dê conta do recado, sendo comandado pelas rédeas dos produtores. Talvez o que conte mais seja o roteiro, que conta com a presença de Kurt Busiek, grande mestre das HQs, de obras como a longeva Astrocity e a marcante minissérie Marvels. Ou seja, é a Marvel do cinema precisando se render ao talento dos roteiristas dos quadrinhos até no resultado para o cinema.
Afinal, a fonte pode secar se as mais novas histórias da Marvel (dos quadrinhos) não se tornarem tão atraentes e boas quanto foram nos anos 2000, que ainda é, como pode se ver neste filme, a maior inspiração para a criação desses filmes – para os anos 2010, a Marvel ainda pode beber na fonte de quadrinhos do Surfista Prateado, do Imortal Hulk e do Gavião Arqueiro, se forem espertos o suficiente.
As cenas de ação de THUNDERBOLTS* são boas e não apelam para a montagem picotada, valorizando as cenas de combate corporal. Porém, os diálogos não ficam muito atrás: na verdade, eles são a base de sustentação do filme, são de onde saem as aflições de Yelena Belova, John Walker e do personagem de Lewis Pullman, entre outros. Ao que parece, filmes como os da franquia John Wick têm mostrado que aquele estilo de ação picotada não está mais sendo apreciada pelos espectadores, que querem assistir as lutas. Nesse sentido, Florence Pugh está mandando muito bem, assim como Sebastian Stan e Wyatt Russell.
Esses atores, inclusive, além do já citado Lewis Pullman, que faz o Bob, conferem um tipo de “realidade” que é muito bem-vindo a um subgênero de filme geralmente escapista. Não que você saia do cinema deprimido, como se sai com BATMAN, de Matt Reeves, esse sim um filme depressivo: THUNDERBOLTS* estaria mais naquele meio termo, em que somos lembrados dos demônios interiores, que nos arrastam para lugares terríveis da mente e até para a morte, em casos crônicos, mas que há no ar algo de doce. E está aí a força deste filme aparentemente mais modesto da Marvel: saber lidar com os tormentos da vida real, transferindo-os para personagens de um mundo colorido. Em certo momento, temos a impressão de estarmos vendo um filme de horror.
Eis um filme bem resolvido, bem orquestrado e que funciona tanto como obra à parte quanto mais um tijolinho nesse universo que a Marvel/Disney insiste em manter de pé. E com razão, se julgarmos o hype em torno de QUARTETO FANTÁSTICO – PRIMEIROS PASSOS, que vem aí em julho. E por falar nisso, não deixe de ficar até a última cena pós-créditos.
+ TRÊS FILMES
UNTIL DAWN – NOITE DE TERROR (Until Dawn)
Que bom que David F. Sandberg voltou para o terror depois de ter dirigido dois filmes do SHAZAM!, (2019, 2023). Ele ainda não é um diretor que tem um grande filme no currículo, mas curiosamente ele tem se especializado, por assim dizer, em adaptações ou continuações ou prequels. Casos de QUANDO AS LUZES SE APAGAM (2016) e ANNABELLE 2 – A CRIAÇÃO DO MAL (2017). Até considero o filme da boneca diabólica seu trabalho mais elegante e eficiente. Mas UNTIL DAWN – NOITE DE TERROR (2025) é bem interessante. Aproveita a ideia do game da Playstation e constrói uma espécie de slasher com uma história de loop temporal. Ou seja, desde o início já me ganha, e até os personagens são bem-desenvolvidos, até onde se pode desenvolver dentro de uma narrativa rápida, embora irregular. Sandberg sabe fazer uma boa conclusão, quando a repetição do loop começava a cansar. Gostei muito da scream queen Ella Rubin, que apareceu discretamente em ANORA. É uma moça que tem presença de cena e que deve ter um belo futuro.
A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS (La Plus Précieuse des Marchandises)
O mais bacana de A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS (2024), de Michel Hazanavicius, é que é um filme que talvez não funcionasse tão bem se não fosse apresentado assim, em animação, e usando um tipo de traço muito próprio, que enfatiza tanto o tom fabular quanto as imersões na realidade brutal, especialmente quando nos mostra imagens do holocausto. Desde o começo, o tom fabular se destaca, com a bebê surgindo para ser criada pela esposa do lenhador, que demoraria um tanto para aceitar a criança. Depois ficamos sabendo do contexto histórico em que a criança é judia, e portanto odiada pela população daquele vilarejo. Como a a história se passa durante a Segunda Guerra, é possível perceber que o antissemitismo já havia se instalado nas mentes daquelas pessoas. Gosto da conclusão, de como se reflete sobre a natureza verídica ou mítica de certas histórias.
BRUXAS (Witches)
Meu maior interesse pelo documentário BRUXAS (2024), de Elizabeth Sankey, foi pelo passeio pelas (belas) imagens de filmes que mostram a representação de mulheres como bruxas ao longo de várias décadas de cinema (e um pouco até da televisão). Tanto que quando o filme fica mais quadrado e foca na experiência da diretora com depressão pós-parto, a narrativa trava um pouco, perde um bocado da força, por mais que muitas das histórias e depoimentos sejam bem impactantes. De todo modo, gosto de como a terceira parte volta a se conectar com as bruxas e faz isso de maneira muito inteligente, e nos faz perceber o quanto o fato de haver uma alta taxa de suicídio de mulheres no Reino Unido pode estar associado a um passado de séculos de queima e suicídio de mulheres, de perda do papel da mulher como curandeira, enfermeira, parteira e detentora de conhecimentos milagrosos, a partir da chegada dos médicos homens profissionais, na transição do mundo medieval para o período moderno. Quanto às imagens apresentadas, sempre bom quando aparece um filme do Bava, ou uma relação com O MÁGICO DE OZ e outros tantos filmes, principalmente de horror e de fantasia.
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