Lembro-me com carinho de quando eu era criança e minha família se reunia para ver OS TRAPALHÕES na televisão. Quando meu avô paterno vinha nos visitar, ele também ria a valer do humor, um tipo de humor que era ingênuo e simples, muitas vezes herdeiro dos palhaços de circo. Também tive a sorte de minha mãe me levar ao cinema para ver os filmes dos Trapalhões quando criança. Não tenho tanta certeza, mas meu primeiro filme pode ter sido O TRAPALHÃO NAS MINAS DO REI SALOMÃO, de 1977 (perguntei à minha mãe e ela diz não se lembrar). Fazendo as contas, eu tinha cinco anos, é possível que tenha sido esse mesmo. Tenho uma rara lembrança de uma cena envolvendo joias preciosas. Esse filme, aliás, foi o maior sucesso de bilheteria do grupo.
Outra coisa de que me lembro, com relação aos filmes, é do quanto a Praça do Ferreira ficava cheia de cambistas, que compravam com antecedência os ingressos para revender mais caros para os espectadores que não queriam ficar por horas nas filas quilométricas. Isso quando o filme estava nas primeiras semanas de exibição, no Cine São Luiz, pois depois ele mudava com frequência para o Cine Fortaleza, uma sala bem menor, nas semanas seguintes.
Acho que deixei de me interessar pelo trabalho do quarteto, e até pelos filmes, já no finzinho dos anos 1980 e início dos 90, quando me tornei cinéfilo. Meus interesses passaram a ser outros. Já considerava tudo muito bobo ou muito infantil. Aliás, não me recordo de ver nenhum outro filme deles no cinema nesse período. Lembro de ter visto apenas a versão deles da peça do Ariano Suassuna na televisão, OS TRAPALHÕES NO AUTO DA COMPADECIDA, que já é de 1987. É uma boa adaptação e o personagem Didi Mocó combina com a figura do João Grilo, hoje muito mais lembrado pela interpretação de Matheus Nachtergaele, na minissérie de Guel Arraes, depois tornada filme.
Escrevi dois parágrafos e ainda não citei Mussum, que hoje eu e muita gente considera o Trapalhão mais engraçado e querido. Tempos depois, vendo entrevista no YouTube de Antônio Carlos Bernardes, ainda jovem, num especial da TV Cultura de 1972 dos Originais do Samba, fiquei maravilhado com a alegria de viver que aquele homem passava. É possível ver o programa inteiro na internet e ficar encantado com a simpatia e o encanto dele, e consequentemente adorar a música do grupo. Quem ainda não viu/ouviu, dê uma olhada ao menos em “Tenha fé”, composição do Jorge Ben, cantada por Antônio Carlos. Coisa linda, viu.
Quanto à cinebiografia de Mussum/Antônio Carlos, dirigida por Silvio Guindane, tem seus prós e contras. É difícil fazer cinebios de figuras muito famosas. Às vezes se acerta (NOSSO SONHO é maravilhoso, mas a história da dupla é menor, o que ajuda, embora o segredo do filme não esteja em roteiro ou estratégias de estrutura), às vezes nem tanto (MEU NOME É GAL). A cinebio do Mussum fica acima da média, muito pela excelente performance do xará Ailton Graça, que está tão bom na pele de Mussum que às vezes esquecemos que é um ator ali e não o próprio humorista e músico. Por outro lado, o que justamente nos tira um pouco do filme são alguns personagens que surgem orbitando a vida do protagonista em maior ou menor grau, como Chico Anysio, Cartola e os próprios Trapalhões. A gente compra o quarteto no filme quase como se estivéssemos assistindo a uma versão de uma Terra bizarra.
Outra coisa de que gostei foi do recorte temporal, da escolha do momento certo para o filme acabar. Nem sempre mostrar a morte é um acerto e, ao contrário do filme da Gal, este aqui não parece se atropelar na narrativa, ainda que ela se passe num longo período de tempo, com direito a três atores para interpretar o personagem. Gostei muito do foco dado à mãe de Mussum. Isso confere mais humanidade ao personagem. A mãe é a única constante das três fases dele (criança, rapaz e homem feito). É linda a cena em que ela (quando interpretada por Cacau Protássio) escreve seu nome pela primeira vez, com a ajuda do filho, que havia entrado na escola e estava disposto a alfabetizá-la.
Há coisas que ficam bem destacadas como típicas dos anos 1970/80, mas gosto como essas coisas aparecem de maneira orgânica, como o uso excessivo do cigarro, a bebida naturalizada em programas para toda a família e pensando principalmente no público infantil, ou as piadas com mãe. Não é um filme militante na questão racista, assim como Mussum também não o era. Além do mais, é preciso respeitar as escolhas das pessoas que escreveram e pensaram o filme. Sem falar que muito desse racismo fica subentendido nos diálogos (a própria lição da mãe, que quer que o filho estude e não se torne um preto burro, evidencia a cor da pele). Vale também destacar uma cena bem bonita, em que Mussum dá uma aula de vida para estudantes da Mangueira.
MUSSUM – O FILMIS (2023) já está indo muito bem na bilheteria. Trata-se da maior estreia nacional do ano, com R$ 640 mil apenas no primeiro dia de exibição. Até então, NOSSO SONHO segue sendo a maior bilheteria brasileira de 2023, mas, infelizmente, como não teve uma primeira semana muito boa, começou a ter menos sessões disponíveis. Pelo menos foi se recuperando com o boca a boca. Já o filme do Mussum, deve passar do número de 450.000 espectadores/R$ 7,5 milhões logo, logo. O cinema brasileiro anda precisando de uma ótima bilheteria já faz um tempo.
+ DOIS FILMES
MEU NOME É GAL
Não dá para negar que MEU NOME É GAL (2023), de Dandara Ferreira e Lô Politi, é um filme que diverte e é cheio de momentos interessantes, mas é uma pena que a maior parte do que há de melhor no filme esteja principalmente na força das canções do repertório de Gal Costa, naquela virada dos anos 1960 para os 70, no clima de ebulição provocado por uma ditadura que contrastava com o desbunde que aquela geração, principalmente os baianos, trazia para o Brasil e para o mundo, e tendo total consciência de sua grandeza, como bem disse Caetano Veloso (Rodrigo Lelis) em determinado momento, quando fala para Gal que eles são foda. Uma pena, porém, que o filme seja tão superficial e que tenha optado por contar essa história de maneira tão rápida, de modo que me senti atropelado por tantos eventos acontecendo quase simultaneamente. Não que sejam coisas não conhecidas, mas isso não justifica esse atropelo, numa tentativa de não deixar passar as coisas básicas mais importantes da história. Assim como não justifica buscar intérpretes para os personagens principais como se fossem caricaturas, casos das intérpretes de Maria Bethânia, Waly Salomão e Tom Zé. No mais, é bonito ver, ainda que de forma tão rápida um pouco do lendário show que Gal fez em 1971, que se transformou no melhor disco ao vivo já lançado no Brasil. Sophie Charlotte, apesar de muito frágil e doce para interpretar Gal Costa, defende bem o papel, até porque é ao redor dela que tudo orbita no filme. Nada mais justo que sua personagem seja a melhor desenvolvida, tanto física quanto emocionalmente.
UM FILME DE CINEMA
Thiago B. Mendonça tem uma trajetória muito interessante. Percebe-se que é um cineasta de paixões e de aceitação do acaso como elemento para seu processo criativo. Com isso, surgem pérolas como CURTAS JORNADAS NOITE ADENTRO (2021) e OS GRANDES VULCÕES (2021). E podemos agora ver seu projeto feito a partir da vontade de documentar suas filhas de 3 e 7 anos. Na trama de UM FILME DE CINEMA (2018), a filha de 7 anos do cineasta, Bebel, prepara um trabalho com seus coleguinhas para apresentarem em forma de filme na escola. Ela pede emprestada a câmera do pai e passa a criar seu filme a partir de seu universo (escola, casa, pessoas que encontra). O filme de Mendonça é bastante livre para trazer a história do cinema para o universo infantil, e homenagear obras do passado em trechos e caracterizações. Sinto que o filme tem uns problemas de ritmo próximo do final, mas é bem bonito.
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