quinta-feira, outubro 27, 2022

CURTAS JORNADAS NOITE ADENTRO



Acho que quem costuma ler meus textos por aqui sabe o quanto eu amo cinema, certo? E deve saber também de meu amor pelos livros, pela música, pelos quadrinhos, pelas séries. E por isso, com muita frequência, eu me vejo frustrado ao chegar em casa e nem sequer conseguir ver um filme completo devido ao cansaço – a vida de professor, mesmo quando o dia não parece tão puxado, é bem desgastante. Quando saio para ver um filme no cinema até que consigo, com a ajuda da imersão e de uma dose de um bom expresso, mas em casa raramente isso é possível.

Atualmente, com o retorno da prática da atividade física, de modo a melhorar minha saúde e também minha aparência (pois também sou um pouco vaidoso), o cansaço tem aumentado ainda mais. Sei que isso é um misto de falta de hábito de minha parte com um dos propósitos desses exercícios: o de trazer também um sono mais rápido. Mas isso acaba batendo de frente com a referida frustração. Ontem mesmo, para poder ver um filme de pouco mais de uma hora tive que recorrer a uma soneca na metade do filme e, ainda assim, terminei de vê-lo com sono e com pouca capacidade de percepção de suas ideias e de me sintonizar com os sentimentos que a obra poderia me proporcionar.

Por que falo isso? Falo, claro, como forma de desabafo, mas também para fazer um link com CURTAS JORNADAS NOITE ADENTRO (2021), de Thiago B. Mendonça, que me causou identificação em certos aspectos. Na trama, temos homens e mulheres que fazem parte de um grupo de sambistas pobres (há apenas uma moça burguesa na turma) que passam o dia trabalhando em empregos chatos ou miseráveis para encontrar nesses encontros regados a samba um sentido para a vida, um propósito para a existência, um prazer tão grande que faz valer até mesmo perder uma noite de sono. Lembrei-me de Carlos Reichenbach, que gostava de trazer à tona a valorização do tempo livre na vida de personagens que trabalham em fábricas, por exemplo. Carlão falava forte ao espírito daqueles que amam a arte, mas que precisam lidar com o trabalho, pois é dele que vem nossa subsistência. Além do mais, se não encontrarmos também uma forma de trazer prazer para dentro desse trabalho, estamos lascados.

Quanto a Thiago B. Mendonça, conheço pouco de seu trabalho. Só no IMDB, que costuma não ter tudo de diretores brasileiros, ele já possui 18 títulos, entre curtas, longas e séries. Tive contato com seu cinema primeiramente com o curta documental PIOVE, IL FILM DI PIO (2012), depois com o anárquico JOVENS INFELIZES OU UM HOMEM QUE GRITA NÃO É UM URSO QUE DANÇA (2016), mas o que mais me encantou mesmo foi seu projeto mais ambicioso, mas que infelizmente tem problemas para lançamento em circuito, por conta de questões com direitos autorais, que é o excelente OS GRANDES VULCÕES (2021), em parceria com Fernando Kinas.

No que se refere a CURTAS JORNADAS NOITE ADENTRO, uma das coisas que mais me chamou a atenção logo no começo foi o uso do som, que é brilhantemente trabalhado já na sequência inicial, com dois dos personagens numa casa humilde e com a porta e a janela abertas, onde se pode ouvir (e ver), além do som do violão, carros antigos trafegando pelas ruas. Mais à frente, em outras sequências com música, o som captará diferentes perspectivas, a partir de onde a cena está sendo filmada. Além do mais, nessa sequência citada, já se percebe o interesse de Mendonça pela beleza do quadro, pela imagem como uma pintura com som e movimento. Às vezes, um movimento sutil.

Eu, que não tenho muita identificação com o samba, gostei muito de escutar a riqueza da música produzida pelo grupo, até porque, dentro da sala de cinema, é muito mais possível perceber os pormenores. Além do mais, gostei muito da caracterização dos personagens, que parecem saídos de uma outra época e inseridos no nosso mundo contemporâneo – aliás, isso é outra semelhança que o cinema de Mendonça guarda com o cinema de Carlão, que adorava misturar o contemporâneo com imagens que lembram décadas passadas.

Numa das primeiras cenas, numa das rodas de samba, a câmera, quase sempre à mão, passeia pelos rostos dessas pessoas, flagradas com alegria nesses momentos de descontração, que só acontecem no meio da noite, embora às vezes essa alegria lhes seja negada. O mais velho do grupo, vivido por Carlos Francisco (MARTE UM, BACURAU), vive tendo que aguentar as reclamações da esposa, que, evangélica, pede para ele abandonar a vida boêmia e ir para a igreja. Ele, claro, sai pela tangente e vai fazer o que seu coração lhe pede. Além do mais, esse personagem está em liberdade condicional e isso acaba sendo um detalhe que vai trazer um dos momentos mais tristes do filme.

O próprio termo “liberdade condicional”, aliás, me parece valer tanto para o pesonagem de Francisco quanto para os demais, levando em consideração seus empregos. Um deles, inclusive, trabalha em uma penitenciária. Outro, tenta levantar uma casa em um espaço provavelmente ilegal com a ajuda dos amigos. Lembrou-me O TETO, de Vittorio De Sica, mas aqui o tom adotado por Mendonça é bem menos próximo do melodrama e um pouco mais seco, embora nunca despido de ternura. Detalhes como a visita de um personagem ao pai e ele depois acordando o amigo para entregar um prato de comida são representativos desse cinema de afetos.

Certamente é uma obra que mereceria um pouco mais de presença de público, mas falar isso é falar de mais de 90% das produções brasileiras atuais. Meu sonho é que isso um dia mude e que o nosso cinema possa alcançar mais e mais pessoas das mais diferentes classes sociais.

+ DOIS FILMES

BEM-VINDA A QUIXERAMOBIM

Um filme leve para dar umas boas risadas, embora já se deva esperar um tipo de humor mais grosseiro. Bem mais do que os outros longas anteriores do Halder Gomes, inclusive. Mas BEM-VINDA A QUIXERAMOBIM (2022) se justifica pois o cenário onde se passa boa parte da ação é um prostíbulo que funciona como pousada durante o dia. Monique Alfradique está muito bem como a influencer de instagram que perde tudo com a prisão do pai, empresário corrupto, e parte para reaver a casa da falecida mãe, em Quixeramobim. Muito boa a participação de Max Petterson. Ajuda a fazer a diferença em filmes que contam demais com a presença de Edmilson Filho. Aliás, eu até diria que o elenco de apoio está bem mais engraçado que o Edmilson. Pena que o filme tem umas gordurinhas e lá pelo meio já perde o timing bom do início. Ainda assim, representa um bom momento do cinema popular cearense, que aqui se abre para uma atriz do sudeste como protagonista. Mais ou menos como aconteceu com a série de televisão CINE HOLLIÚDY (2019).

VOCÊ TEM QUE VIR E VER (Tenéis Que Venir a Verla)

Depois do lindíssimo A VIRGEM DE AGOSTO (2019), fica difícil não ficar interessado na obra de Jonás Trueba. Este pequeno filme de pouco mais de uma hora de duração se passa durante a pandemia e é econômico na produção e no elenco - creio que um dia poderemos ver documentários sobre as características dos filmes nascidos no isolamento social de 2020/2021. Além do mais, como são poucos os filmes que tratam da leitura, não apenas mostrando personagens lendo, mas também discutindo sobre os temas lidos, esse já conquista a minha simpatia por essa razão. Inclusive, acho que o melhor momento do filme é a discussão na hora do almoço, quando os dois casais de amigos conversam sobre o futuro da humanidade, justamente quando estávamos passando por uma situação inédita em nossas vidas. A pandemia chegou para, supostamente, nos fazer pensar no mundo como um todo, mas parece que essa conscientização não chegou a muitos. O filme está em cartaz gratuitamente no Sesc Digital, durante a Mostra de São Paulo.

Nenhum comentário: