domingo, outubro 09, 2022

A FILHA DO PALHAÇO



Escrever sobre A FILHA DO PALHAÇO (2022) é também minha oportunidade de lembrar um pouco como foi a lindíssima noite de abertura do 32º Cine Ceará. Esta edição do festival é o retorno 100% presencial, depois de dois anos de pandemia que afetaram não só este, mas todos os demais festivais de cinema do país. O fato de estar sendo realizado em um momento político muito delicado e entre os dois turnos da eleição presidencial também propiciou declarações e manifestações acaloradas de apoio ao Presidente Lula, como única escolha possível no momento para derrubar o desgoverno vigente. Junte-se a isso o ataque sofrido pelo Bolsonaro ao Nordeste, eis que, cada vez mais, a classe de artistas e de amantes da arte se apresenta ainda mais disposta a batalhar pelo que ama e pelo que considera essencial. Afinal, viver sem arte é como viver sem sentido.

O primeiro grande destaque da noite foi a apresentação da Camerata da UFC, uma orquestra de cordas que trouxe três peças muito especiais e ligadas diretamente ao cinema: duas composições de Ennio Morricone, a música de abertura de TRÊS HOMENS EM CONFLITO, de Sergio Leone; um tema de CINEMA PARADISO, de Giuseppe Tornatore, e um lindíssimo arranjo para “Você Não Me Ensinou a Te Esquecer”, de Fernando Mendes, mas que foi lembrada por ser a música-tema de LISBELA E O PRISIONEIRO, de Guel Arraes, na arrebatadora versão de Caetano Veloso. Confesso que este que vos escreve chorou um pouco. De arrepiar e de trazer também de volta uma série de sentimentos do passado, embora também nos faça extremamente felizes com o presente. Afinal, por mais que estejamos em tempos difíceis, fazer parte da luta é recompensador.

Em seguida, depois da apresentação de um curta produzido por crianças de escolas da rede pública, chegou a aguardada homenagem a Camila Pitanga, que receberia o Troféu Eusélio Oliveira. Lembro que em 2019 a pessoa homenageada foi Fernanda Montenegro e foi muito emocionante, pois foi também outro daqueles momentos de resistência naquele primeiro ano de extrema direita no Brasil. Agora estávamos muito mais sofridos (pelo governo e pela pandemia), mas também muito mais esperançosos. Camila subiu ao palco com um lindo vestido vermelho e fez um dos discursos mais belos que eu tive lembrança de ter ouvido no festival. Foi um dos mais longos, falando inclusive de sua carreira como atriz, mas eu a ouviria por horas, com todo o prazer. “Faz o ‘L’!”, uma pessoa da plateia gritou, ela falou que nem precisava dizer. Em um trecho do discurso, ela disse: “A gente está vivendo um momento muito estranho e ele convoca a gente a arregaçar a manga e conversar sobre que projeto de país a gente quer. A gente quer o Brasil do ódio ou o Brasil do amor? Eu quero um Brasil diverso, que existe. Meu voto dia 30 é o voto do amor, da tolerância, da convivência".

Sabemos que a classe artística, em sua maioria, já tem a tendência de se filiar a projetos de esquerda, mas desta vez a situação nos leva a deixar ainda mais claro, dar o nome da pessoa, Luiz Inácio Lula da Silva. É ele que está juntando uma frente ampla democrática contra o fascismo e a destruição do país em todos os seus aspectos. Depois do acalorado e delicado discurso de Camila, sobe ao palco Fabiano dos Santos Piúba, o atual secretário de cultura do Estado do Ceará, com palavras tão pungentes quanto poéticas, inclusive com citação a Gilberto Gil. Infelizmente não gravei seu discurso, coisa que deveria ter feito. Mas só a frase “Nós vamos retomar o Ministério da Cultura no Brasil” dita por ele já foi motivo para todo mundo aplaudir com fervor.

E depois de tanta emoção, Pedro Diógenes, o diretor do filme da noite, sobe ao palco com toda a equipe presente de A FILHA DO PALHAÇO. Ver todas aquelas pessoas lutando pelo que acreditam e defendendo sua arte foi também muito lindo de ver. O filme começa e quem é de Fortaleza sente uma familiaridade muito especial, ainda que essa familiaridade, felizmente, já tenha se visto presente em outras obras do cinema cearense dos últimos 30 anos, um cinema que cresceu muito em força e representatividade.

O segundo longa-metragem solo de Diógenes é menos ambicioso que PAJEÚ (2019), uma obra mais profunda e que lida com a memória e o medo do esquecimento. Antes disso, Diógenes havia trabalhado em outros longas de importância fundamental para a arte brasileira. Eu adoro especialmente COM OS PUNHOS CERRADOS (2014), assinado junto com Ricardo Pretti e Luiz Pretti, que não costuma ser um dos mais lembrados de sua filmografia, e que é um grito de revolta e uma ode à liberdade que traz ideais anarquistas ao centro do debate.

Em A FILHA DO PALHAÇO temos uma situação mais simples, envolvendo um homem gay (Demick Lopes, de GRETA), que trabalha como humorista travestido de maneira espalhafatosa (como muitos humoristas da escola tradicional cearense) que se vê diante da filha adolescente surgindo para passar uns dias com ele. O personagem do humorista é diretamente inspirado em Paulo Diógenes, a Raimundinha, bastante conhecida da cena local, e parente do diretor. Essa informação, inclusive, já apresenta algo de muito pessoal ao filme e faz com que o olhemos de maneira ainda mais carinhosa.

Para aquele homem que não costuma ver a filha, a não ser nos dias de Natal, ter que passar aquele tempo com a menina acaba sendo uma tarefa a princípio desafiadora. Além do mais, há todo o sentimento de culpa que ele carrega pelos anos de ausência. O que o incomoda é ter sido um pai relapso, mas a garota está disposta a conhecer um pouco mais esse homem, apesar de tudo. O filme explora a beleza da noite fortalezense com uma fotografia que valoriza a plástica, mas que também traz um sentimento evidente de solidão.

Gostei muito da atriz que faz a filha adolescente, a estreante Lis Sutter. Além do mais, o filme ainda tem o luxo de contar com a participação sempre especial de Jesuíta Barbosa, no papel de um ator modesto. A força de Jesuíta em cena é tão grande que cada vez que ele aparece o filme se agiganta. Há uma cena em especial que eu acho linda, que é sua apresentação no teatro ao lado de Jupyra Carvalho. É curioso como uma cena mais teatral como essa, por mais que fuja deliberadamente do naturalismo, acabe por se distinguir como mais realista do que o tom geral do filme. Talvez por nos convidar a algum tipo de reflexão que nos traz de volta à realidade, na mesma medida que também imprime algo de mágico.

A FILHA DO PALHAÇO é um filme pequeno, mas com um senso de humanidade que combina com nossos desejos de um mundo mais diverso e empático.

+ DOIS FILMES

VICENTA B.

Terceiro longa-metragem de Carlos Lechuga e o segundo que chega à mostra competitiva do Cine Ceará - lembro que SANTA E ANDRÉS (2016) foi recebido com muito carinho por público e crítica. VICENTA B. (2022) tem a força de uma atriz extraordinária, Linnett Hernandez Valdez, que interpreta a personagem-título, uma mulher que ajuda as pessoas com o dom de ver o futuro através das cartas e de se comunicar com os espíritos. Sua vida passa por um momento desafiador quando o filho único sai de casa para iniciar sua carreira profissional. Percebendo que seu dom está desestabilizado, ela se vê impotente frente ao que aparece pela frente. Lechuga cria uma personagem encantadora e um universo fascinante, trazendo uma familiaridade com o Brasil, em especial com o sincretismo religioso baiano. Destaque também para a ótima fotografia de Denise Guerra, que esteve presente no festival para representar o filme.

O INVISÍVEL (Lo Invisible)

Para um filme que busca abordar com profundidade a depressão, em especial a depressão pós-parto, na maioria das vezes O INVISÍVEL (2021), de Javier Andrade, não parece ser bem-sucedido. Mas não dá para dizer que não seja um filme desprovido de grandes momentos. Adoro o final e há também outros ótimos momentos que o filme proporciona. Até diria que é uma obra que pode melhorar à medida que pensamos mais nela. O espaço onde se passa a ação é uma mansão habitada por uma família muito rica, servida por vários empregados, a maioria deles de pele mais escura ou aparência indígena, o que acentua o distanciamento de classes. Além da mansão, há também os espaços verdes ao redor, onde a protagonista (Anahí Hoeneisen), corre até cansar para tentar aplacar as dores da alma. O método de se machucar com cacos de vidro ou objetos cortantes também não é descartado. A fotografia um tanto esmaecida parece combinar com o sentimento de melancolia da personagem. De todo modo, o que mais me incomodou foi não ter me solidarizado com a heroína ao longo de praticamente todo o filme, nem de ter me contaminado com essa depressão. Mas não sei se agir apenas como observador faz parte da proposta.



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