quinta-feira, outubro 20, 2022

BLONDE



“A imagem que Marilyn Monroe deixou de si no mundo das imagens esconde uma alma que poucos suspeitavam existir. Bela, é uma alma que a psicologia, de barato, definiria como ‘neurótica’, como se podem definir ‘neuróticos’ todos aqueles que pensam demasiado, que amam demasiado, que sentem demasiado. O destino da sua vida a quis sobretudo imagem, um ícone como o rosto de Mona Lisa, atrás do qual não se sabe o que há.”
Antonio Tabucchi (em prefácio para o livro Fragmentos – Poemas, Anotações Íntimas e Cartas de Marilyn Monroe)

Lendo alguns poemas do livro Fragmentos, é possível perceber o quanto Marilyn Monroe foi tão sensível e com uma inteligência emocional tão fora do comum, mas infelizmente muito pouco valorizada naquele mundo misógino e que só queria explorar sua imagem. Pode ser problemático tratar desse assunto, uma vez que o trabalho que ela fez para o cinema foi muito importante. E às vezes, sob o calor da raiva que muitos tiveram de BLONDE (2022), é como se tudo que ela tivesse feito fosse apenas um produto de sua exploração e não tivesse um peso enorme para a cultura ocidental do século XX. Então, vamos com calma.

Demorei a escrever sobre BLONDE, a cinebiografia livre dirigida por Andrew Dominik, por pura falta de tempo também, mas porque talvez eu precisasse maturar o que achei do filme, que de fato não me fez amá-lo, mas sei o quanto certas imagens ficarão marcadas em minha memória de maneira forte. Às vezes apelando para o grotesco, Dominik faz uma espécie de horror psicológico sobre uma jovem mulher extremamente sensível que chega ao estrelato em Hollywood através de seu talento e de sua beleza inigualável, mas, infelizmente, também passando pelos abomináveis testes do sofá.

Norma Jean/Marilyn Monroe, abandona pelo pai e vivendo com a mãe com problemas mentais, vai parar num orfanato. As cenas que mostram sua infância são absolutamente cruéis. A tentativa da mãe de afogá-la na banheira, viver sozinha e imaginar a sombra do pai ausente, já sentir o peso da solidão e da crueldade do mundo desde pequena. E há aquela cena do incêndio em Los Angeles, que tem um impacto visual incrível. Talvez o melhor momento do filme para mim. Em seguida, é Ana de Armas que assume a tarefa de encarnar essa Marilyn tão sofrida em sua via crucis quanto o Jesus de Mel Gibson. Muitos ficaram indignados, pois a heroína está o tempo todo levando porrada da vida, das pessoas, especialmente dos homens, e dificilmente consegue finalizar um período, um raciocínio mais complexo, em sua fala.

Na verdade, acho bem difícil julgar ou criticar este filme. Até me remeteu a RÉQUIEM PARA UM SONHO, de Darren Aronofsky, pelo tom monocórdico de tragédias, traumas e horrores na vida de uma pessoa. O fato de ser essa pessoa Marilyn Monroe, que carrega uma aura mitológica de alguém geralmente sofredora e incompreendida, faz com que esse registro ficcional seja um convite para a compreensão de que o que é mostrado no filme seria a vida real da atriz.

Ana de Armas passa uma fragilidade necessária para a intenção do filme. E é uma fragilidade tão intensa que ela parece que vai afundar em vários momentos. Há questões paterna (do abandono) e materna (que traz uma lembrança ainda mais cruel) que funcionam como uma marca para quem ela seria e para os vazios que sentiria e que encontraria na figura de homens mais velhos.

A fragilidade também está presente no sistema de abuso sexual adotado em Hollywood para o casting e na questão dos abortos. A opção do diretor por diferentes janelas e diferentes cores funciona tanto para remeter aos filmes dos anos 1950, quanto para trazer diferentes tons de sensação da realidade. Destaque também para a trilha sonora de Nick Cave, que em alguns momentos emula Angelo Badalamenti, como forma de fazer uma conexão da heroína com a Laura Palmer de TWIN PEAKS. Podemos também facilmente pensar numa associação com outro filme de Lynch, CIDADE DOS SONHOS, que tem uma estrutura de horror e que também é sobre demolir sonhos e criar pesadelos.

A respeito de pesadelos, é difícil não lembrar da cena mais pavorosa do filme, que é o encontro de Marilyn com o presidente John F. Kennedy. Muito se especula sobre a relação que existiu entre os dois e não sei o quanto pôde ser provado, mas o que mais choca e incomoda nessa cena nem é exatamente a “contratação” de Marilyn para fazer favores sexuais para o presidente, mas o modo como a câmera se posiciona para mostrar uma cena de sexo oral, fazendo questão de explorar um tom de humilhação para a personagem. Eis a questão: o filme estaria mesmo sendo misógino ou aquilo seria uma maneira de denunciar a estrutura da sociedade da época, com tudo aquilo que havia de mais podre dentro da Hollywood do pós-guerra?

De uma forma ou de outra, o filme se assume como polêmico, e quer trazer isso para si de forma deliberada, não se importa em elaborar uma personagem à beira do colapso o tempo inteiro. Talvez os únicos momentos de maior tranquilidade para a personagem esteja na relação que teve com dois filhos de astros de Hollywood, os filhos de Charles Chaplin e Edward G. Robinson, quando houve ali um romance a três mais ou menos saudável. É diferente, por exemplo, da relação que ela teria, extremamente tóxica e agressiva, com o “ex-atleta” vivido por Bobby Cannavale. Apesar de não ter o nome citado, ele é Joe DiMaggio, jogador de beisebol que teria vivido maritalmente com Marilyn nos anos de 1954 e 1955.

Houve uma mudança bem distinta quando Marilyn/Norma passou a namorar e a viver com o dramaturgo Arthur Miller (vivido no filme por Adrien Brody), de 1956 até o ano de sua morte, em 1961. Ele seria, de um ponto de vista freudiano, a representação do pai que Norma não teve, que nunca encontrou. E é possível ficar irritado com as várias vezes que a personagem o chama de daddy em tom infantil. A questão sobre os abortos da personagem também chegam a ser incômodos, mas não deixa de ser marcante, como no momento em que ela tem uma conversa com um feto que seria uma reencarnação do feto perdido anteriormente. Trazer a culpa do primeiro aborto para a personagem talvez seja bem perverso, mas imagino que tenha a função de tornar seu inferno interior ainda mais intenso, o que é claramente uma intenção do filme como um todo.

Tudo isso é muito complicado, pois o cineasta, sendo ele um autor, é o deus de seu universo. Mas também pode ser alguém que se propõe a não romantizar o passado da atriz de forma alguma, deixando muito claro que sua cinebiografia é quase que totalmente livre. E nesse sentido os filmes que ela fez acabam sendo pouco importantes para a narrativa, ainda que vejamos várias cenas que enxertam Ana de Armas como Marilyn contracenando com os astros originais de filmes como OS HOMENS PREFEREM AS LOIRAS, O PECADO MORA AO LADO e QUANTO MAIS QUENTE MELHOR, talvez os três que melhor ajudaram a eternizar o ícone Marilyn Monroe.

+ DOIS FILMES

A ILHA DOS MORTOS (Isle of the Dead)

Tão importante quanto Jacques Tourneur para o ciclo de filmes de horror produzidos por Val Lewton, Mark Robson estreou na direção com a obra-prima A SÉTIMA VÍTIMA (1943), presente no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer. Em A ILHA DOS MORTOS (1945) faz seu quarto filme para Lewton, no mesmo esquema de baixo orçamento, muito clima, muita sofisticação e uma fotografia que valoriza as sombras. Na trama, Boris Karloff é um general durão que vai parar numa ilha grega que se vê contaminada por uma peste. Sua missão passa a ser: ninguém sai da ilha. Enquanto isso, uma jovem (a bela Elle Drew) é acusada de ser uma espécie de demônio vampírico do folclore grego chamado vorvolaka. É interessante ver o filme depois de termos passado por uma pandemia e a obra se tornar também espelho de um passado recente nosso. Grande momento do filme: a cena em que uma personagem é enterrada viva, e com resultados inesperados. Visto no box Obras-Primas do Terror 18.

AOS NOSSOS FILHOS

Acho muito tocante o interesse de Maria de Medeiros pelas dores que os brasileiros sofreram (e ainda sofrem) durante e após a ditadura militar. Seu longa anterior foi um documentário chamado REPARE BEM (2013), trazendo depoimentos da viúva de um homem que morreu nos porões da ditadura brasileira. Essa referida mulher, Denize Crispim, aparece em AOS NOSSOS FILHOS (2019) como atriz, em papel pequeno. Mas o filme é mesmo de Marieta Severo e de Laura Castro, principalmente. Duas mulheres, mãe e filha, vivendo momentos muito distintos de suas vidas. Severo cuida de uma ONG destinada a meninos órfãos soropositivos e lida com um passado traumático de tortura; Castro está tentando ser mãe junto com a companheira através de inseminação artificial e tem uma relação conflituosa com a mãe. Laura Castro é tão autora do filme quanto Maria de Medeiros, aliás. Ela é autora da peça que deu origem ao filme, além de fazer uma representação linda de mãe, do início ao fim do filme. Há também participações de José de Abreu como o pai carinhoso. Aliás, um filme que traz um elenco (e direção) tão orgulhosamente de esquerda já funciona como uma espécie de convite para adentrarmos uma casa confortável e acolhedora. Nesses tempos difíceis, isso faz uma diferença enorme.

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