domingo, novembro 12, 2023
VIVER (Ikiru)
Com frequência, eu acordo cedo para ir trabalhar e vejo um dos vizinhos, um homem aposentado de meia idade, sentado à sombra que o prédio do condomínio faz em frente à minha casa. Ele nada faz a não ser olhar para o movimento da rua. Parece estar em paz consigo mesmo, embora essa impressão seja errônea – inclusive, recentemente soube que sua esposa está muito mal: teve um AVC e está na UTI. Mas antes de saber disso, eu costumava olhar para ele e ficar irritado, depois de assistir ou ouvir um desses vídeos no YouTube sobre quadrinhos ou cinema enquanto tomava meu café-da-manhã às pressas. Irritado com o fato de eu estar com muita vontade de ler ou ver algo em paz, mas não me ser permitido, por causa do trabalho. Além do mais, depois do trabalho, com o cansaço, também não tenho muita disposição física para ver filmes ou ler. Logo me dá vontade de dormir. Por isso que às vezes acho melhor ir ao cinema, mesmo cansado, depois do trabalho
Corte para outro momento, desta vez no trabalho. Na sexta-feira passada, os professores organizaram uma festa para homenagear o diretor da escola - Dia do Diretor Escolar. Essa festinha foi feita pela manhã e também à tarde (à tarde, há professores que não vêm no período da manhã). Como pela manhã, eu estava com janela (ou seja, sem ter que entrar em sala de aula), à tarde eu também fui incumbido de pegar o bolo e os salgados. Quando voltei, com meu amigo e colega Roger para a escola, olhei brevemente para o céu. As nuvens formavam aquele aspecto escamado sob o azul ao fundo, que dá uma beleza muito particular. Comentei com o Roger, sobre como o céu estava bonito, e de que, como vivemos muitas vezes tão estressados ou tão focados no trabalho e em ter que cumprir horários, mal temos tempo de olhar para o céu, olhar para a beleza da natureza.
Há uma cena parecida em VIVER (1952), de Akira Kurosawa. Kanji Watanabe, o protagonista interpretado por Takashi Shimura, ator presente em outros filmes do diretor, como OS SETE SAMURAIS (1954), olha para o céu e fala sobre o fato de não ter visto o pôr-do-sol há trinta anos e de achar aquela imagem tão bonita. Naquele momento, Watanabe já sabe que tem apenas alguns meses de vida e sabe também que dedicou sua vida ao trabalho burocrático, não tendo faltado um dia sequer em 30 anos. O pior é que é um trabalho que não presta os serviços necessários à comunidade. Logo no começo do filme, vemos o escritório onde ele trabalha passar as responsabilidades para outros setores, de modo a não se envolverem. Aquela repartição municipal é mostrada como um lugar cheio de montanhas de papéis por todos os lados que não serve para nada.
Watanabe, depois que descobre o câncer fatal, passa a buscar um meio desesperado de compensar um pouco o fato de ter desperdiçado sua vida. No começo, acha que o caminho está na boemia. E sai pela noite com um escritor boêmio, que lhe apresenta a vida noturna daquele Japão urbano do pós-guerra. E o cenário nem sempre é muito agradável, ainda mais quando olhamos para aquele homem de olhos esbugalhados, ombros cansados e uma expressão doente frequentando lugares em que as pessoas se espremem para dançar ou conseguir um drinque.
Depois, o herói do filme, ao conversar com a jovem colega de trabalho que o encontra na rua, passa a acreditar que é possível encontrar um pouco do sentido na vida ao se aproximar de alguém tão jovem e que parece estar cheia daquela vitalidade que ele não tem. Mas é conversando com ela que ele tem uma ideia, que ele percebe que há ainda uma forma de ele encontrar um meio de ele dar sentido a sua existência. E ele pode fazer isso sem deixar seu trabalho. Ou seja, VIVER não é um filme que condena o trabalho nem o coloca como algo que suga a energia de viver – OS SETE SAMURAIS também é um filme sobre sacrificar-se num trabalho nobre. Watanabe percebe que é no fazer que ele encontrará o sentido para a vida, trazendo, inclusive, até mais forças para que consiga alcançar seu objetivo.
Há tempos eu me devia ver este filme de Kurosawa. Acho que ver a lista dos dez filmes favoritos de Martin Scorsese recentemente deu um empurrãozinho para que eu finalmente visse este que é um dos mais festejados títulos do mais popular realizador japonês. Não vou dizer que fiquei encantado pelo filme, pois minha relação com o Kurosawa ainda não é de paixão, mas gosto de muita coisa, especialmente das cenas pós-hiato, quando o narrador clássico é substituído por um estilo mais despojado e às vezes teatral de direção. Fiquei positivamente surpreso com o salto temporal de cinco meses que indica que o personagem está morto e que havia ainda muito de metragem pela frente. Toda a cena do funeral é composta por diversos pontos de vista que lembram um pouco CIDADÃO KANE, de Orson Welles, na busca por saber quem foi o morto. E a partir daí vemos o protagonista reaparecer em diversos flashbacks.
Um dos méritos do filme é que o diretor consegue driblar nossas expectativas. Enquanto se espera um melodrama tradicional sobre um homem com câncer terminal, seguido de um possível relacionamento do protagonista com uma mulher bem mais jovem, o que temos é outra coisa bem diferente. VIVER é, entre outras coisas, uma crítica à burocracia, à falta de iniciativa e à hipocrisia dos homens públicos. É também uma obra com traços fortes de melancolia, compreensíveis para um cineasta que tem um histórico de depressão e até a uma tentativa de suicídio em 1971, após o fracasso de DODESKADEN – O CAMINHO DA VIDA (1970).
Incomodou-me um pouco a interpretação de Tadashi Shimura, com seus olhos esbugalhados e fala rouca afetada, e achei que isso fosse culpa de minha pouca intimidade com a cinematografia nipônica e um estilo mais particular de interpretação. Porém, lendo o capítulo sobre VIVER no livro Os Filmes de Kurosawa, de Donald Ritchie, soube que o próprio cineasta não ficou tão satisfeito com a interpretação de Shimura. Em suas palavras: “Ele fez o papel tirando todas as pausas e eu teria preferido algo mais descontraído. É claro, nesse ponto, tanto eu como o roteiro tivemos culpa. Mesmo assim, eu gostaria de algo concebido de uma forma um pouco mais ampla, algo não muito tenso”.
Na primeira parte do filme, há umas cenas muito dinâmicas e que remetem a estilos e escolas diferentes de cinema (expressionismo, impressionismo, algumas fusões e outras experimentações) e com um fundo que destaca uma interessante profundidade de campo. VIVER é também uma obra que flagra um momento de bem maior ocidentalização do Japão do pós-guerra. Fiquei até surpreso com a cena do pianista tocando algo muito parecido com o que Jerry Lee Lewis faria ainda em alguns anos nos Estados Unidos. O rock já existia e já era internacional; apenas não tinha esse nome, na verdade.
Filme visto no box Kurosawa Essencial.
+ DOIS FILMES
A INCRÍVEL SUZANA (The Major and the Minor)
O curioso de ver esta estreia de Billy Wilder em Hollywood como diretor é que, em muitos momentos, parece haver algo de muito errado na relação de atração que nasce entre o oficial do exército vivido por Ray Milland e a mulher disfarçada de criança de 12 anos vivida por Ginger Rogers. Na época a atriz já estava nos seus 30 anos e aceitar o fato de que (quase) ninguém percebe que ela não é uma criança acaba funcionando como parte da graça do filme. Gosto muito do primeiro ato de A INCRÍVEL SUZANA (1942), no trem, mas o ritmo vai ficando um pouco prejudicado na academia de cadetes e ver Rogers se fazendo de criança para os outros acaba virando uma piada repetitiva, embora também funcione como uma espécie de obstáculo para o romance entre ela e o oficial, que só funciona para quem torce pelo casal, o que não foi exatamente o meu caso. Ainda assim, gosto da cena em que Milland conversa com a suposta mãe de Sue-Sue. Visto no box A Arte de Billy Wilder.
VIAGEM AO FIM DO UNIVERSO (Ikarie XB 1)
O que mais me encantou em VIAGEM AO FIM DO UNIVERSO (1963) nem foi sua trama, nem sua discussão humana a partir de preocupações sociopolíticas da época: foram as imagens em preto e branco, a incrível construção da nave a partir de uma inventividade surgida da falta de um orçamento milionário e a estranheza do corte nas cenas de conversas entre os tripulantes da Ikarie XB-1. Muito se fala que o filme foi um precursor e possível influenciador de 2001 – UMA ODISSEIA NO ESPAÇO, e de fato há algumas semelhanças. Mas comparar os dois filmes pode ser um pouco injusto com o trabalho de Jindrich Polák. Na verdade, há também muitas semelhanças com outras obras de ficção científica que surgiriam nos Estados Unidos, principalmente a série STAR TREK, que estrearia três anos depois. Na trama, uma tripulação multigeracional do ano 2163 faz uma viagem entre dois planetas da constelação Alpha Centauri. Muito interessante o quanto naquela época todo o aspecto tóxico e genocida do século XX é mostrado como um passado muito distante, mas ainda um fantasma que ronda, especialmente a partir do encontro com a uma nave abandonada.
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