sábado, dezembro 19, 2020

FIRST COW



Pode ser o início de uma nova era. E não me refiro, necessariamente, ao advento do Corona Vírus e suas consequências, mas à tendência atual do aumento do número de filmes dirigidos por mulheres. A presença feminina também tem aumentado em outras áreas, tanto culturais quanto na política e na ciência, mas vamos nos ater ao cinema. E começar lembrando que o filme em cartaz nas salas com maior interesse dos espectadores atualmente é também dirigido por uma mulher, MULHER-MARAVILHA 1984.

Recentemente, o crítico Chico Fireman comentou no podcast Cinema na Varanda que acreditava que, pela primeira vez na história, a lista dos indicados a melhor direção no Oscar pode conter de três a quatro mulheres entre os cinco candidatos. Isso se deve ao enorme sucesso de crítica de filmes como o ganhador do Leão de Ouro NOMADLAND, de Chloé Zhao, a sensação do cinema indie NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES, SEMPRE, de Eliza Hittman, e o nosso filme em questão, FIRST COW (2019), de Kelly Reichardt, que foi eleito melhor filme do ano pelo New York Critics Circle e pela revista Time, e apareceu em posições muito boas em votações de veículos como Sight & Sound, The Guardian, The Wrap, Hollywood Reporter, Los Angeles Times e Indiewire.

O caso de Kelly Reichardt é muito curioso, já que seus filmes nunca chegaram ao nosso circuito de cinema. No máximo, passaram em mostras internacionais. O que é algo muito estranho, levando em consideração o alto nível de seus trabalhos, e considerando os que eu tive a oportunidade de ver, como WENDY E LUCY (2008) e CERTAS MULHERES (2016), dois filmaços. Em FIRST COW, a diretora vai além do registro de pontos de vista de personagens femininas e conta uma história de amizade entre dois homens.

FIRST COW também já foi descrito como o filme de assalto mais sutil já feito, o que também diz muito do filme, assim como o modo como critica a agressividade masculina ao mostrar dois homens interessados em culinária, em decoração da casa e em trazer sofisticação para um mundo grosseiro de formação da civilização. A história se passa em Oregon, durante a corrida ao ouro nos anos 1820.

Assim como WENDY E LUCY, aqui também vemos uma discussão muito interessante sobre capitalismo. A começar pela pergunta: quão correto (ou errado) é roubar um pouco de um rico proprietário para sobreviver e/ou galgar uma posição mais confortável na vida e na sociedade? Isso, claro, lembrando que o fruto das grandes riquezas geralmente vem de roubo, assassinato e estupro.

O curioso de FIRST COW é que o primeiro encontro entre os dois homens, vividos por John Magaro e Orion Lee, é que um deles se encontra completamente nu. Cookie (Magaro) dá, então, vestimenta, comida e abrigo a King-Lu (Lee), que dizia estar com muita fome. Dentro daquele cenário de poucas opções de alimentação, Cookie fazia milagres. Ele era o cozinheiro de um grupo de homens em um negócio de peles de animais. Depois dessa amigável ajuda, os dois se reencontram, começam a morar juntos e têm a brilhante ideia de "pegar emprestado" o leite da primeira e única vaca da região para iniciar seu empreendimento.

O andamento lento do filme é cativante, ainda mais por que ele consegue trazer empolgação e também tensão, já que a empreitada dos dois homens é um tanto perigosa. E há também uma ternura que muito sutilmente vai aparecendo da amizade entre eles que é também algo muito poderoso. Assim como o cuidado com a imagem, que aqui adota a janela 1,33:1. Reihardt constrói sua direção de arte basicamente com a beleza da natureza.

FIRST COW é baseado no romance The Half Life, de Jonathan Raymond, amigo e colaborador da diretora em filmes como ANTIGA ALEGRIA (2006), WENDY E LUCY, O ATALHO (2010) e MOVIMENTOS NOTURNOS (2013).

Agradecimentos à Paula pela companhia à distância durante a apreciação do filme.

+ TRÊS FILMES

SOU SUA MULHER (I'm Your Woman)

Bom ver Rachel Brosnahan brilhando em um papel dramático depois da glória conquistada na comédia com a série THE MARVELOUS MRS. MAISEL. SOU SUA MULHER (2020), de Julia Hart, tem um gosto de Supercine, mas é um thriller bem eficiente e que vai ficando melhor em sua segunda metade. Na trama, Brosnahan é a esposa de um gângster que recebe do marido um bebê e depois precisa fugir de casa por causa de encrencas desconhecidas do sujeito. Há uma boa reconstituição de época (anos 70), uma boa perseguição e uma conclusão redondinha. Os dois atores de apoio são muito bons e ajudam muito a trazer humanidade e calor para o filme.

MULHER OCEANO

O trabalho de composição visual é o que há de mais bonito neste primeiro filme de Djin Sganzerla como diretora. Em MULHER OCEANO (2020), ela exerce dois papéis: o da escritora de livros de ficção e o da personagem do tal livro. A melhor parte do filme se passa no Japão. O visual do país (e não apenas a tecnologia e a arquitetura moderna, mas também a natureza) contribui muito para a beleza das imagens. E há também o sentimento de solitude da personagem, que resolve ficar distante da família e do marido para pensar em seu trabalho literário e também em sua vida, tudo no seu devido tempo. Não gosto tanto quando o filme volta para o Rio e mostra a história da personagem criada. É como se fosse outro filme, com outro visual e outro ritmo. Ainda assim, gostei bastante desse caminho diferente traçado por Djin, diferente do caminho da mãe e do pai.

AOS OLHOS DE ERNESTO

Belo filme sobre a solidão e a velhice, com excelente momento do uruguaio Jorge Bolani, no papel-título. Ele é um senhor que enxerga muito mal, que mora sozinho em um apartamento e que começa a fazer amizade com uma jovem talvez pouco confiável (Gabriela Poester). Ambos sentem a solidão de maneira forte, ainda que de forma muito distinta. E a melancolia de AOS OLHOS DE ERNESTO (2019) é um sentimento recorrente, ainda que haja espaço vez ou outra para um discreto humor. Temos Júlio Andrade no filme, mas infelizmente em um papel pequeno. A sorte é que Bolani é tão bom que leva o filme praticamente sozinho muito bem. Interessante ver Ana Luiza Azevedo (e Jorge Furtado, como corroteirista) saindo do universo juvenil de ANTES QUE O MUNDO ACABE (2009) e ingressando nos dilemas da terceira idade.

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