segunda-feira, dezembro 21, 2020
A BESTA HUMANA (La Bête Humaine)
Uma das coisas que eu tenho que agradecer muito a Fritz Lang é ter me aproximado mais de Jean Renoir, ainda que indiretamente. Graças às suas duas refilmagens de obras do cineasta francês em Hollywood, levando o trágico para o noir, eu fui me interessando e apreciando ainda mais as obras do diretor francês. Claro que já amava os clássicos A GRANDE ILUSÃO (1937) e A REGRA DO JOGO (1939), e havia gostado de sua versão de MADAME BOVARY (1934), visto na minha peregrinação pelas adaptações da obra-prima de Gustave Flaubert. Mas as coisas mudaram quando vi recentemente A CADELA (1931). Comecei a perceber que estava também diante de um diretor bastante interessado na condição degradante do ser humano, nas sombras.
E esse interesse pelas sombras está muito explícito em A BESTA HUMANA (1938), adaptação do romance de Émile Zola, na qual Renoir parece estabelecer as bases para o que viria a ser o filme noir, estilo adotado pelos cineastas da velha Hollywood na década de 1940. Esse filme antecipa o subgênero em aspectos fundamentais, como as já citadas sombras, os personagens com senso de moral duvidosa, crimes brutais e uma femme fatale capaz de convencer o amante a matar o marido.
Mas tem muito mais, já que o personagem de Jean Gabin é um sujeito que tem eventualmente surtos psicóticos que o tornam extremamente perigoso. Em visita que faz a seus familiares, ele encontra uma jovem por quem tem afeição e, depois de uns beijos, ele começa a estrangulá-la. Esse lado bestial vem e vai e a garota só é salva quando o homem escuta o apito do trem, que o acorda do transe.
O trem é o amor que faz bem a Jacques Lantier, o personagem de Gabin. Ele trabalha dentro da locomotiva, trabalho duro de usar carvão e também controlar o destino daquele transporte. Também é nesse trabalho que ele se sente bem, sentindo o vento bater no rosto quando o trem cruza cidades e túneis em alta velocidade.
Na luta por conter esse demônio interior, Lantier encontra alguma paz. Até que ele é picado pelo mosquito da paixão. A paixão na forma de uma mulher perigosa, ainda que também frágil e perturbada. Séverine, vivida por uma Simone Simon anterior a SANGUE DE PANTERA, é uma mulher que carrega lembranças pesadas da infância e tem uma relação bastante confusa com os homens. Ela parece ser livre ao se envolver com outros dois homens estando casada com Roubaud (Fernand Ledoux), funcionário da ferrovia. O marido tem uma crise de ciúme tão grande que resolve traçar um plano para matar o sujeito com quem ela se deitou, um homem bem mais velho e antigo patrão de sua mãe, talvez até seu próprio pai. E a leva junto para efetuar o crime.
A fim de evitar que Lantier, que a viu no corredor no momento seguinte ao assassinato, conte para a polícia sobre os dois, ela resolve se aproximar do homem, que aos poucos vai se apaixonando por aquela mulher de aspecto felino e um jeito delicado e sensual.
A BESTA HUMANA traz sequências de tirar o fôlego. Não exatamente pelo suspense em si, mas principalmente pelo sentimento intoxicante dos personagens. De Lantier, de Séverine, de Roubaud. O final do filme, ainda que deixe essa energia densa no ar, não deixa de ser uma espécie de alívio, frente às situações desesperadoras e trágicas da vida desses personagens.
Eis um filme que quanto mais eu penso mais eu gosto dele. Mal posso esperar para ver a versão de Fritz Lang.
+ TRÊS FILMES
O SONHO NÃO ACABOU
Um filme que já começa errado a partir do cartaz, que mostra Lauro Corona e Lucélia Santos, sendo que seus personagens são tão apagados que só mesmo a beleza do casal para vender o filme que mostra um grupo de jovens com pouca unidade que vive na Brasília da época do pós-punk. Há pouca coisa que funciona, muito pouca mesmo. E Miguel Falabella tem o hábito de pegar personagens detestáveis. O SONHO NÃO ACABOU (1982), estreia na direção de longa de ficção de Sérgio Rezende, é um desperdício de talentos. Felizmente, ele conseguiu fazer trabalhos bem melhores e com atores famosos ao longo das décadas. Não sei se foi por sorte ou se por ter influência no meio. Ao menos a preocupação social e política já se mostra presente.
O ROUBO DO SÉCULO (El Robo del Siglo)
O meu retorno ao cinemas depois de meses sem telona foi com este O ROUBO DO SÉCULO (2020), de Ariel Winograd, filme de assalto leve, mas baseado em uma história real ocorrida na Argentina, em 2006. Embora o roubo tenha mesmo sido espetacular e os atores principais tenham algum carisma, o filme tem um gosto um pouco requentado de outros tantos filmes do subgênero que já vimos. Eu, particularmente, fico sonolento com esses filmes que tratam o roubo de maneira muito leve e como algo fruto da inteligência de uma ou mais pessoas, que também precisam de outras para que a empreitada seja bem-sucedida. Prefiro os filmes de assalto mais tensos, violentos e dramáticos. Por isso, em determinado momento, eu acordei e me interessei, pois entra uma situação passional que traz uma reviravolta para a trama. De todo modo, é um filme por vezes divertido.
NÃO MATARÁS (Krótki Film o Zabijaniu)
Está longe de ser um filme que nos deixe feliz este NÃO MATARÁS (1988), de Krzysztof Kieslowski. A própria escolha por uma fotografia escura, muitas vezes deixando parte da tela sem que vejamos absolutamente nada, pode ser vista como uma técnica para nos engolfar nesta obra povoada por pessoas vivendo uma espécie de inferno na Terra. No caso, tanto o sujeito que comete o homicídio quanto o jovem advogado que tenta livrá-lo da pena de morte. Está muito longe daqueles dramas de pena de morte que Hollywood faz e deixa a gente chorando, como OS ÚLTIMOS PASSOS DE UM HOMEM ou À ESPERA DE UM MILAGRE. Aqui é muito mais seco, mais áspero, mais real, mais desagradável. Um baita filme.
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