sábado, agosto 05, 2023

BARBIE



Agosto chegou e com ele o retorno às atividades normais, às aulas na escola, depois do ótimo período de viagens e de socialização e relax nas férias de julho. Mas a única coisa que lamento, na verdade, é minha saúde. Não que ter problemas alérgicos quase todos os dias seja algo muito grave (muita gente tem), mas me deixa triste sentir essa sonolência, essa mudança de temperatura brusca no corpo, e essa falta de ânimo provocada pela garganta que parece estar quase sempre inflamada (ou algo assim). Isso tem influenciado praticamente tudo na minha vida: meu trabalho, minhas relações mais próximas e até meus prazeres estéticos, como ver filmes e ler livros e quadrinhos. Mas vivamos um dia de cada vez, sabendo que isso é passageiro, embora, infelizmente, esse tipo de problema surja com uma frequência muito maior do que eu gostaria.

Outra coisa que eu gosto muito de fazer, mas que não consegui nos últimos dias foi escrever para o blog. A última postagem foi sobre as viagens, mas o último filme comentado foi há quase 15 dias! Raramente passo tanto tempo assim sem postar sobre os filmes vistos de maneira um pouquinho mais aprofundada que o parágrafo que sempre escrevo para cada filme visto, no calor do momento, sem pesquisar e sem pensar muito. Então, levando em consideração a quantidade já grande de filmes vistos e não comentados, só me resta escolher um. E hoje escolho BARBIE (2023), de Greta Gerwig, o grande filme-evento do ano.

Acho que jamais passou pela cabeça de Gerwig que BARBIE seria esse fenômeno incrível de popularidade, uma verdadeira febre impulsionada por um marketing da própria Warner e dos entusiasmados pelo filme, antes mesmo dele estrear, e em estratégias de propaganda muito agressivas, como encher o Google de cor-de-rosa ou investir em caixas de boneca grandes paras as pessoas tirarem fotos de si mesmas dentro delas, de preferência vestidas com a cor predominante do filme. Quanto à bilheteria, BARBIE está se aproximando rapidinho de 1 bilhão de dólares – por enquanto, o único a passar essa marca em 2023 foi SUPER MAIOR BROS. – O FILME.

Por mais que seja uma obra que atingiu uma popularidade imensa – não lembro de ver algo parecido, em termos de publicidade, adesão e discussão –, para quem acompanha a carreira da diretora, atriz e roteirista, o filme representa uma continuação das discussões que LADY BIRD – A HORA DE VOAR (2017) e ADORÁVEIS MULHERES (2019) trouxeram. Do primeiro, há uma bonita questão envolvendo a relação mãe e filha; do segundo, há a discussão sobre ser mulher num mundo de homens. E Gerwig faz isso com muita inteligência e sensibilidade, às vezes até alfinetando levemente coisas que a própria Mattel (empresa da boneca Barbie) trouxe de negativo para a cultura e para a sociedade. Mas o filme passa rapidamente por isso e se concentra na jornada de uma Barbie perfeita (a chamada Barbie Estereotipada), vivida por Margot Robbie (radiante, como sempre), ao fazer questionamentos sobre a morte e passar pela experiência de visita ao mundo real.

Adoro a fala final da protagonista, que tem uma força feminina (e feminista?) incrível; gosto muito de todas as cenas de descoberta do mundo real de Barbie e Ken, da conscientização dos sentimentos e daquela conversa rápida com uma senhora num banco de praça – “você é tão linda!”, em vez de “por que você é diferente?”. E tudo isso dentro de uma dramaturgia quase anti-naturalista, que causa graça e estranhamento. Em alguns momentos, me fez lembrar o cinema de Wes Anderson, cineasta contemporâneo de Noah Baumbach, e atual companheiro de Gerwig. Tanto que esse estranhamento pode atrapalhar um pouco os momentos de riso da plateia. Mas não dá para não admirar o senso de humor, que mescla o bobo com o espirituoso.

Ou seja, por mais que o filme seja sobre um produto de mercado que apresente uma visão não-realista da mulher, e por mais que existam também bonecas mais diversas, inclusive Barbies gordinhas e Barbies cadeirantes (ambas apresentadas no filme), a diretora usa isso a seu favor, usa isso para a construção de sua trama, que apresenta essa personagem perfeita, vivendo num mundo “perfeito” e irreal, que se vê diante da realidade. Há uma cena que brinca, inclusive, com MATRIX, quando a protagonista é obrigada a optar entre a pílula vermelha ou a azul. Aliás, entre um sapato de salto alto ou uma sandália Birkenstock. Só que aqui a heroína não tem exatamente uma escolha, o que é outro elemento desconcertante desse tipo de jornada do herói.

BARBIE conseguiu ir muito além das discussões sobre a efetividade do filme, enquanto obra fílmica. O filme de Gerwig trouxe o universo feminino (de bonecas) de maneira extremamente bem-sucedida, dentro de uma estrutura que, até então, privilegiava o universo masculino – caso dos filmes de super-heróis, vindos de uma indústria que hoje em dia tenta se desvencilhar de uma cultura tradicionalmente machista. Também se viu como uma vitória o fato de que temos a maior estreia de um filme dirigido por uma mulher – até então, quem ocupava essa posição era CAPITÃ MARVEL, codirigido por Anna Boden.

Em contrapartida, BARBIE também vem trazendo questões sobre o poder do império das megacorporações americanas (casos da Warner e da Mattel), ainda que, em tempos de fracassos gigantes de bilheteria e previsões apocalípticas da morte do cinema, o filme tenha sido visto com um olhar mais carinhoso por boa parte dos cinéfilos, mesmo os mais críticos a esse tipo de dominação predatória. (Mas uma pergunta talvez pessimista: quanto do público de BARBIE vai voltar aos cinemas para ver outros filmes?) 

Enfim, as discussões que o filme vem trazendo são tantas que é admirável uma obra de apelo tão pop ser capaz de tal feito. Inclusive, alguns grupos de extrema direita têm odiado o filme, por causa de uma suposta (?) ridicularização da masculinidade, na representação dos personagens Kens, principalmente o Ken principal. Porém, mesmo que seja verdade, nada mais justo, se pensarmos nos séculos de humilhação das mulheres pelos homens, flagelados em diversas obras literárias e cinematográficas. Isso sem falar na influência das religiões monoteístas na cultura ocidental.

Bem que eu gostaria de ter escrito sobre o filme no dia imediatamente seguinte, mas, como não deu, saiu esse texto falando muito pouco da trama e das escolhas estéticas da diretora. Mas não deixa de ser um ponto positivo, já que temos aqui uma obra que tem muito a dizer e muito a provocar.

+ DOIS FILMES

CANÇÃO AO LONGE

Senti falta de me conectar melhor com o drama da protagonista, uma jovem que nunca conheceu o pai e que está passando por um processo de mudança em sua vida. Para isso, sair da casa da mãe se apresenta como um importante passo. Adorei o tom granulado da fotografia de Ivo Lopes Araújo e há algumas passagens musicais que são a cara de Caetano Gotardo (um dos roteiristas). Mas CANÇÃO AO LONGE (2022) dá a impressão de ser um projeto bem pessoal de Clarissa Campolina, em sua estreia na direção solo de longas-metragens, após a experimentação narrativa de ENQUANTO ESTAMOS AQUI (2019), codirigido por Luiz Pretti.

DOMINGO DESPERDIÇADO (Zabità Nedele)

Um desses filmes que me enchem de perguntas. Na verdade, me faltavam, e ainda me faltam, informações sobre as circunstâncias de sua realização e a história da obra em si, que foi confiscada pelo regime da época em 1969 e só foi lançado em 1990. É possível entender os motivos, já que a diretora faz várias provocações: principalmente aos militares e às autoridades, que são, com frequência, ridicularizados. Melhor exemplo são as cenas envolvendo as duas garotas que tomam banho de sol de topless perto do quartel. Há também inúmeras alfinetadas com a própria censura e um tipo de humor que pode ser melhor compreendido quando sabemos da história política do país. No mais, DOMINGO DESPERDIÇADO, de Drahomíra Vihanová, é também carregado de um tipo de melancolia pesada, já que o protagonista simpatiza com a ideia do suicídio durante boa parte do filme. O pior: sendo ele uma pessoa pouco simpática ou gentil (com as mulheres, principalmente), não temos pelo personagem algum tipo de empatia. Trata-se de mais um exemplo de cinema que carrega o espírito da época. Os filmes produzidos em fins dos anos 1960 têm essa característica de rompimento com a forma e busca de experimentações na linguagem.

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