Você quer viver ou morrer? Essa pergunta é feita por um dos vários personagens de BACURAU (2019), filme-coral de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, em uma de suas cenas mais intensas. Escolher entre viver é a ideologia dos habitantes da cidadezinha que dá título ao filme, um lugar que é um exemplo de resistência em um Brasil distópico futurista que guarda algumas similaridades com o momento atual.
O interessante é que Kleber Mendonça Filho tem dito em entrevistas e debates que não é separatista, apesar de enaltecer o Nordeste com entusiasmo em seu filme. Seu trabalho, ainda que exibido apenas em 2019, provavelmente não deve ter antecipado a eleição de Jair Bolsonaro, que não venceu nos estados da região Nordeste. E por isso tem havido um movimento, ainda que muito tímido e às vezes em tom de brincadeira, em memes, de separar a região do restante do Brasil.
Como BACURAU flerta também com os filmes do cangaço e há momentos de banho de sangue, a chamada para reagir de forma violenta pode ser uma mensagem e tanto. E eis o seu potencial de dinamite, até por se vestir de uma roupa de filme de gênero, que muito provavelmente agradará a um público muito maior do que seus dois trabalhos mais art-house anteriores, O SOM AO REDOR (2012) e AQUARIUS (2016). Assim, a ambição do filme não é apenas de natureza formal ou no trato com a mensagem, mas ao saber de seu maior diálogo com o grande público.
A história começa com a ida de Teresa (Bárbara Colen, ótima) ao povoado. Ela está de carona no caminhão-pipa e usando um jaleco. O que ela carrega são vacinas, como iremos saber mais adiante, quando ela chega ao velório de sua mãe, a matriarca do vilarejo. Até o momento dessa chegada, muitas informações nos são passadas. E o filme demora um bom tempo nessa apresentação de personagens, até entrar efetivamente no suspense, quando eles percebem que estão sendo atacados.
Sônia Braga é uma médica no vilarejo e aparece inicialmente bastante transtornada no velório daquela senhora tão querida. Mas aos poucos vamos notando que, mesmo com uma rixa ou outra, aquele pequeno pedaço de civilização é formado por pessoas bem próximas e unidas. E essa união se torna ainda mais intensa quando eles se percebem vítimas de um ataque. Para nós, espectadores, ao ingressarmos em um universo novo e em uma cidade à margem dos grandes centros e do que está acontecendo no resto do Brasil, cada detalhe é interessante e muito bem recebido.
Como os diretores optaram por fazer um filme de ação bem próximo do cinema oitentista (não faltam referências a John Carpenter), há um tanto de caricatura nos vilões, em especial o alemão Udo Kier, um ícone do cinema europeu, com uma filmografia invejável e muitos filmes de terror também no currículo (ele até já foi o Conde Drácula na produção de Andy Warhol). E é trazendo Kier para essa mistura maluca que BACURAU se mostra como uma obra com um inegável senso de humor. É como se pudéssemos ver o sorriso no rosto de seus diretores em várias cenas, principalmente as que envolvem os estrangeiros, os vilões.
Por isso é possível ver BACURAU como uma grande aventura de mocinho contra bandido, um western feijoada moderno. Dessas que inspiram palmas do público em determinados momentos da narrativa. Quase um RAMBO, só que com vários personagens. Aliás, se olharmos para o cartaz do filme após vê-lo veremos o quanto cada personagem é importante para o enredo.
Dentre esses personagens, ainda não citei o cearense Silvero Pereira, que interpreta o fora-da-lei Lunga, amigo do pessoal de Bacurau, mas que vive escondido das autoridades. Até o momento em que ele finalmente surge, com uma aparência muito curiosa, com um misto de macho com queer. Isso faz com que o filme se aproxime tanto dos dias atuais quanto dos heróis parrudos dos filmes da década de 1980.
Outro cearense que não tem sido mencionado com frequência nas críticas é Rodger Rogério, compositor e intérprete da primeira geração do chamado Pessoal do Ceará. Ele interpreta uma espécie de cantador que está presente em uma das cenas mais divertidas do filme, quando do aparecimento dos forasteiros sudestinos. O diálogo dele com essas pessoas é impagável.
Como se vê, há tanto o que se falar sobre o filme, sobre cada personagem/ator/atriz, que até pode-se imaginar que BACURAU é uma obra de trama intrincada. Na verdade, o plot é muito simples e parece muitas vezes feito com ar de brincadeira. Porém, em se tratando de Kleber Mendonça Filho e do momento político brasileiro, pode haver uma interpretação de convite à luta.
Se ARÁBIA, outro dos filmes recentes de nossa cinematografia que vem conclamado as pessoas à luta, é uma obra com um tom bem melancólico; BACURAU transforma a melancolia em raiva, em ação, em luta. Não que o povo de lá seja de guerra. Mas a placa já diz tudo: "Bacurau: se for, vá em paz".
+ TRÊS FILMES
ESPERO TUA (RE)VOLTA
Mais um documentário que ajuda a pensar e lembrar de eventos importantes da história política brasileira. Este filme muito bem editado foca na ocupação dos estudantes nas escolas públicas secundaristas quando da ameaça do fechamento de várias pela secretaria de educação do estado de São Paulo. O filme volta no tempo em alguns anos e tenta pensar o papel dos jovens na luta, de 2013 até o início de 2019, com a eleição de Bolsonaro. As melhores partes são dos embates dos jovens com a polícia. Ótimos registros. Direção: Eliza Capai. Ano: 2019.
PASTOR CLÁUDIO
Desses filmes que a gente assiste e não acredita, por mais que já saibamos dos horrores que aconteceram nos porões da ditadura. Mas ouvir e ver alguém que participou de execuções e de sumiços de corpos de pessoas contrárias à ideologia do Estado é aterrorizante. Por mais que Cláudio Guerra diga ser agora um pastor evangélico que reconhece os erros do passado e colabora com a comissão da verdade, como de fato vem colaborando, é muito difícil tanto para quem o encara quanto para ele mesmo ouvir/contar aquilo tudo. E há coisas que ele conta por alto, envolvendo sociedades secretas que ainda existem. A elite brasileira. E tudo passa a fazer sentido no que se refere ao apoio de um cara como Bolsonoro. O desejo de poder e o pouco caso pela vida do outro ainda impera. Direção: Beth Formaggini. Ano: 2017.
DIVINO AMOR
Um filme que despertou em mim sentimentos mistos. Embora tenha me incomodado o modo como eles retrataram os evangélicos, como, aliás, é natural de se ver na maioria dos filmes brasileiros (acho que a exceção que eu vi foi em uma cena de CARANDIRU, do Babenco), ainda assim, o encaminhamento do filme torna-o mais complexo e interessante. A segunda metade é melhor no que traz. Plasticamente é muito bonito e gosto da ousadia das cenas de sexo (BOI NEON já tinha uma cena ousada e boa). Ainda estou pensando nas alegorias com o Brasil da era Bolsonaro a partir do final, mas ainda não cheguei a uma conclusão. O que, de certa forma, é bom. Direção: Gabriel Mascaro. Ano: 2019.
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