terça-feira, março 19, 2024

CORISCO & DADÁ



A Mostra Retrospectativa 2024 foi uma das mais diferentes desde que o Cinema do Dragão ressuscitou quando o Governo do Estado do Ceará assumiu o equipamento. Achei mais diferente até do que aquela estranha edição de 2021, com apenas uma sala funcionando e ainda com menos lugares disponíveis, por causa da pandemia e do distanciamento social, que forçou as salas de cinema a adotarem medidas mais protetivas. O diferencial da edição deste ano foi um foco maior no cinema brasileiro. Senti muita falta de pré-estreias internacionais e de filmes estrangeiros com perfil de única sessão, mas foi também muito bom ver a pujança do cinema brasileiro contemporâneo, com sessões antecipadas de grandes filmes que ainda ganharão o circuito ao longo deste ano, casos de O DIA QUE TE CONHECI, SEM CORAÇÃO, ESTRANHO CAMINHO, QUANDO EU ME ENCONTRAR e MAIS PESADO É O CÉU (esses últimos, infelizmente, acabei não vendo, por motivo de força maior). Um exibido e que já ganhou circuito há algumas semanas foi LEVANTE, de Lillah Halla.

Entre as sessões de clássicos, um dos melhores momentos foi a exibição, em glorioso 4K restaurado, de CORISCO & DADÁ (1996), muito provavelmente o filme mais popular de Rosemberg Cariry, e que eu lembro de ter visto na noite de abertura do Cine Ceará de 96, com o Cine São Luiz lotado. Lembro de ter gostado do filme na época, mas, desta vez, na revisão, o hoje clássico de Rosemberg subiu muito mais em meu conceito. Vi finalmente o cineasta como o homem que tomou para si a tarefa de usar o cinema para falar da mitologia cearense e nordestina, o que, aliás, só me mostra o quanto ainda sou devedor da obra do cineasta, especialmente de seus filmes anteriores a este.

Num mesmo filme Rosemberg inclui não apenas personagens lendários como os cangaceiros Corisco, Dadá, Lampião e Maria Bonita, entre outros de seus bandos, mas também o Cego Aderaldo (que ganharia um filme do diretor em 2012), o cineasta Benjamin Abraão e menções a Padre Cícero e a Beata Maria de Araújo. E Rosemberg faz isso com uma elegância formal admirável, com uma poesia visual de dar gosto.

Adoro os planos em que ele usa lentes especiais para filmar o movimento nos espaços abertos, como na cena em que Corisco se aproveita pela primeira vez do corpo da jovem Dadá, recém capturada da casa dos pais, com apenas 12 anos de idade. A violência é não apenas bastante presente no filme, como também é crescente na jornada de descida aos infernos de Corisco, à medida que ele vai ficando mais sedento por sangue. 

Eu estava curioso com o modo como o filme se insere nos dias de hoje, em que as pessoas estão muito mais atentas e talvez mais sensíveis à violência cometida contra a mulher e como isso se inseriria dentro de uma visão de certa forma romântica que muitos têm dos cangaceiros. Mas Rosemberg já deixa bem claro em sua obra o caráter trágico de seus heróis. Eles podem ser vistos como espíritos vivendo numa espécie de purgatório, que é o deserto nordestino da primeira metade do século XX, infestado por policiais em seu encalço, muita fome e gestações interrompidas pela situação em que viviam. 

Tanto Dira Paes quanto Chico Diaz estão fabulosos na caracterização de seus personagens e no modo como apresentam suas visões de mundo com palavras que oscilam entre a desesperança e a força de vontade de agir no meio daquele deserto. As cenas em que os personagens aparecem em espaços totalmente vazios, seja na caatinga ou próximos a um rio, acentuam o teor mitológico da história e daqueles personagens, como se o cineasta quisesse trazê-los de volta à vida com a força do cinema. E os traz.

No mais, ainda quanto à violência (mais uma vez), eu não estava preparado (não recordava, na verdade) para uma cena tão brutal, como uma que envolve a personagem de Virginia Cavendish. Na referida cena, um dos cangaceiros descobre que a esposa o está traindo e, segundo o código de ética deles, esse homem terá direito de matar a mulher. No caso, ele o faz a pauladas. E o diretor faz algo incrivelmente bonito e carregado de tristeza e dor, como se estivesse em prantos ao mostrar tal cena, especialmente no momento em que pétalas de flores brancas caem sobre o corpo morto da mulher.

Se CORISCO & DADÁ ainda não é considerado um dos grandes filmes do cinema brasileiro (o filme não comparece na lista de 100 melhores da Abraccine, por exemplo), acredito que um dia será devidamente percebido como a obra-prima que é.

+ DOIS FILMES

KILA & MAUNA

Acho que o que eu mais gostei de KILA & MAUNA (2023), de Ella Monstra, foi de seu visual a serviço do sentimento das personagens. A começar pelas primeiras imagens de uma delas que encontra, com ajuda de uma tecnologia (futurista?) uma amiga desaparecida. Para isso ela entra em contato com outra amiga em comum para ambas partirem numa missão. Não sei onde o filme foi rodado, se aqueles desertos foram filmados em alguma praia do Ceará ou se é computação gráfica, mas o que importa é que funciona. Pena que lá pelo final, talvez por estar um pouco disperso, tenha me desconectado com a trama, que tem ares lynchianos.

SOB A TERRA DO ENCOBERTO

O curioso deste SOB A TERRA DO ENCOBERTO (2022), de Libra e Xan Marçall, é que o filme bem que poderia aumentar uns três minutinhos de sua metragem para se adequar a um formato de longa-metragem, mas que prefere ser assim, marginal como um média-metragem. É um quase longa. É um filme que considero irregular em sua disposição de apresentar personagens trans ou travestis de diferentes partes do Brasil, enquanto também busca um lugar de cinema-poesia, a partir de construções visuais muito bonitas (direção de arte, figurinos, criação) que nunca deixam de ser essencialmente queer (ou talvez outro adjetivo seja mais apropriado). Entre as personagens do filme, gosto muito do jeito atrevido da travesti do Maranhão, e achei interessante o modo como o filme usa um único homem trans para representar vários. Pareceu pouco e talvez desproporcional, mas a escolha talvez tenha sido acertada, para que o filme flua melhor na duração escolhida.

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